MECANICISMO: CONSTRUÇÕES DO DIAGNÓSTICO, TRATAMENTO E PROGNÓSTICO

A principal diferença entre a medicina-oficial (reconhecida pelo Estado), cujo represente é o médico, das praticadas pelos curadores de todos os matizes, seja as inseridas nas estratégias de catequeses das ideias e crenças religiosas (medicina-divina), cujos representantes, entre muitos outros espalhados nos cinco continentes atados às respectivas culturas, são padres, pastores, médiuns, benzedores, pais e mães de santo, e as dos conhecedores do saber historicamente acumulado (medicina-empírica), com o pajé sendo o agente mais importante, reside no fato de a medicina-oficial estar assentada em torno de processos teóricos que constroem o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico.
Um desses processos teóricos ? o mecanicismo ? teve profunda influência nas práticas médicas oficiais a partir do século 16. Um pilar dessa mudança pode ser sentida nas palavras de Galileu Galilei (1564-1642): “Aquilo que acontece no concreto, acontece no mesmo modo no abstrato, os cálculos e raciocínios feitos com números abstratos devem corresponder aos cálculos feitos com moedas de ouro e prata. Os erros não estão no concreto ou no abstrato, na geometria ou na física, mas no calculador que não sabe calcular”.
Essa afirmação de Galileu retrata muito bem o pensamento dominante no Renascimento europeu: o progresso da ciência estava nas mãos dos homens. O conceito de máquina substituiu o de fábrica nos tempos de Galeno, na Roma do século 2. Desse modo, entre os séculos 16 e 17, os homens e mulheres da ciência começaram a medir a “máquina humana” em níveis nunca antes imagináveis.
Os antigos conceitos dos fenômenos fisiológicos e anatômicos de Hipócrates e Galeno foram criticados e substituídos com base na nova concepção científica. O corpo foi desvendado, dividido em partes e estas comparadas com o fole (pulmão), dentes (tesoura), filtro (rim) e outros. Apesar dos exageros, estava aberto outro caminho na compreensão do diagnóstico, tratamento e prognóstico.
O médico Santório (1561-1636) foi um dos primeiros a aplicar na medicina-oficial as novas concepções de medidas. Esse homem extraordinário mediu o ritmo por minuto da respiração e do coração, as quantidades diárias de saliva, urina e fezes. Comparando com o peso do alimento ingerido, concluiu que o corpo deveria eliminar por outras vias, parte do que era ingerido. No século seguinte, esses estudos serviriam de base para a primeira ideia daquilo que seria conhecida por metabolismo basal (conjunto de reações químicas endógenas para a produção de energia indispensável à vida).
A produção de Santório, publicada, em 1614, no livro “Distatica Medicina”, descreveu com incrível clareza a construção teórica comparando o corpo humano como uma fábrica, com os acontecimentos biológicos, longe de serem mágicos, seriam reproduções dos fenômenos físicos.
Nesse conjunto efervescente de saberes e dúvidas, se destacou Marcelo Malpighi, o precursor do pensamento micrológico, com a magistral descrição do invisível aos olhos, usando a lente de aumento: “Contemplei inúmeros animais pequenos com admiração infinita: entre eles, a pulga é horrível; o mosquito e a traça, os mais belos e com grande contentamento vi como fazem a mosca e outros pequenos animais para caminhar”.
Os mecanicistas não estabeleceram relação coerente entre as partes, isto é, entre outros exemplos, como a coração se relaciona com o rim e pulmão. Essas dúvidas seriam parcialmente aclaradas no século seguinte com os estudos experimentais de Claude Bernard.

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