DOUTORES FRITZ

A antropóloga Maria Andréa Loyola após pesquisa realizada em Nova Iguaçu e Santa Rita (RJ), entre 1976 e 1979, estabeleceu importantes relações entre a busca de saúde nos hospitais e ambulatórios púbicos e a dos curadores por ela denominados “especialistas não reconhecidos” (rezadores, padres, freiras, pastores, benzedores, pais e mães de santos) e por mim caracterizados “doutores fritz”.
Os resultados desse trabalho estão publicados no livro “Médicos e curandeiros: conflito social e saúde”, em 1982, onde a pesquisadora esclarece que a procura do tratamento fora das instituições públicas representa reconstruções pessoais e coletivas, para superar a absoluta ausência do Estado, na atenção médica primária, a penúria social, certeza do abandono e, especialmente, o descrédito nos médicos e hospitais. Os “doutores fritz” possibilitam reinserções sociais por meio de outros sistemas de poderes locais relativamente autônomos que permitem aos suplicantes afirmarem as identidades e pensarem ser possível possuir lugares no mundo.
Existem pontos que podem ser questionados tanto na elaboração quanto na reprodução da liberdade com que os “especialistas não reconhecidos” ou “doutores fritz” se multiplicam e atuam nas igrejas ligadas às muitas tendências religiosas. O início da discussão pode ser a partir do pressuposto de alguns segmentos dos poderes políticos usarem esses curadores como anteparo às pressões coletivas frente às dificuldades do atendimento médico no sistema público. Dito de outro modo, sem esses “especialistas não reconhecidos”, a insatisfação popular cresceria gerando conflito e desgaste político.
Nos anos 1970, apareceu no Rio de Janeiro um “doutor fritz” autodenominado “sete da lira”. Esse personagem, durante alguns meses, sem ser importunado pelas autoridades sanitárias, atendeu milhares de pessoas no subúrbio de Campo Grande. Desgastado pelos incontáveis insucessos, esvaziado, restou o enorme patrimônio econômico da “fundação que administrava os dons mágicos do curador.”
Não é adequado rejeitar ou criticar a priori os “doutores fritz”. É importante que essa discussão tome maior corpo nas universidades, inclusive na Disciplina História da Medicina, onde os pesquisadores sociais, como a antropóloga Maria Andréa Loyola, continuem as analises e divulguem os resultados.
No livro “Medicina e religião: conflito de competência”, 2a. edição, que eu publiquei pela Editora Valer, em 2005, mantive a ideia de a importância mais imediata do sagrado continuar sendo a coisa sagrada, onde o conjunto que encanta e reproduz possui um ou mais objetos de fixação, do culto do corpo santo às relíquias, das imagens às oferendas nas encruzilhadas, gerando consciência e resposta, ajudando os suplicantes acharem e ocuparem os lugares no mundo.
Historicamente, a maioria dos cultos de conjuração é terapêutica, para amenizar a dor da pobreza ou a cólica menstrual. Essa forma de atuar na saúde e na doença, por ser mágica, sem passar por médicos e hospitais desacreditados, é a mais comum e toca fundamentalmente no cerne da existência humana na ambição de recuperar a saúde e evitar a morte precoce.
Os inaceitáveis indicadores que continuam contribuindo para a reprodução dos “doutores fritz” começam no atual modelo de desenvolvimento, gerador dos enormes desníveis socioculturais e se consolidam na ausência de uma política voltada para a atenção primária da saúde e da infância nos países onde os atendimentos médicos primários são frágeis ou inexistentes.

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