O PODER POLÍTICO DOS CURADORES

A existência de pessoas portadoras do dom de curar, fora das construções da ciência, rejeitando a morte e empurrando os limites da vida, tem acompanhado sociedades-culturas, desde tempos ancestrais, entre ricos e pobres, numa dimensão e repetição que não podem ser atribuídas somente ao ordenamento social.
A maior parte da comunicação religiosa entre curador e suplicante se realiza em torno da regra binária do prêmio-castigo, onde a divindade principal recompensa os obedientes com a bonança e pune os faltosos com a dor eterna na vida após a morte. O aliado do divino dominante que cura a doença e o infortúnio representa a própria divindade. Ao contrário, o curador não alinhado, mesmo que sare e adivinhe com a mesma competência, é impedido do renascimento bondoso.
A maior clareza dessas associações ficou mais transparente a partir da leitura da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontradas nos sítios arqueológicos, assírios e babilônicos, no intrigante sinônimo das palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento. De modo semelhante, o sacerdote, médico, adivinho e o escriba receberam o mesmo nome.
A posse do dom de curar oferece mais poder ao detentor. Coloca-o em destaque na comunidade porque cura a doença ou o infortúnio. É frequente encontrá-lo na História como intermediário das divindades. Na prática, pode utilizar esse enorme poder político como forma de aglutinar ou dissolver partes do grupo.
Parece ser no conflito social que se percebe melhor a força explícita dos curadores. Pode aparece quando o poder dominante tenta impor outra abordagem escatológica e eliminar as heteropráxis, como etapa indispensável da substituição cultural. O deus babilônico Baal, cujo culto era difundido, desde as regiões sírias até o Egito, foi combatido tenazmente pelos profetas do Antigo Testamento para, enfim, ser humanizado e destituído de todos os atributos divinos por Euzébio.
O destaque social curador pode ser utilizado como instrumento do poder dominador para convencer quanto a utilidade do projeto político, a mudança do antigo pelo mais recente. Contudo, deve trazer a mensagem de esperança requerida pelos anseios coletivos mais atuais. A sedução exercida pela nova proposta está inserida no surgimento de imagens metafóricas de novos curadores que defendem outros conceitos de salvação pessoal e coletiva. Dessa forma, os novos curadores garantem a perenidade das promessas de vida mais fácil.
Como exemplo dessa ruptura entre curadores aliados e inimigos, é possível citar Astarte, mencionada no Pentateuco, como deusa da vegetação e da sexualidade, cultuada na Mesopotâmia e no Oriente Médio, acabou como símbolo do infortúnio e da doença porque não era alinhada do povo de Israel. Do mesmo modo, em diferentes períodos, os demônios bíblicos, retratados como símbolos de falsos curadores, participaram do movimento de resistência ao poder de Israel.

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