A DOENÇA COMO MAL

A DOENÇA COMO MAL

 

MÁSCARA PARA RETIRAR O MAL ESPÍRITO DO DEONTE, ÁFRICA CENTRAL, SÉCUO XX

            “Näo säo os que têm saúde que precisam de médico,mas sim os doentes.”

                                   Mateus  9,12  ‑  Marcos  2,17  ‑  Lucas  5,31

 

 

Prof.Dr.HC Joäo Bosco Botelho

 

 

            O corpo,visto e sentido como expressäo de vida,impulsiona o ser,pensante e finito,a buscar explicaçäo das mudanças produzidas nele interpretando‑as como antecipaçäo da morte.

            Ao chamarmos “paciente” o homem doente,basicamente para diferenciá‑lo do sádio,é inevitável aceitar uma dupla emoçäo determinada pelo choque entre o real e o imaginário que a doença causa nele.A primeira é realçada pelo visível e está em relaçäo com a enfermidade (o tumor,a mancha,etc.)  e a segunda no exercício mental procurando interpretar a alteraçäo. 

            A experiência ou a possibilidade de sentir dor,serve como exemplo.O desconforto doloroso é o componente real.A explicaçäo dela,nascida no sofrimento,é profundamente mesclada pelas raízes sócio‑culturais integrantes do imaginário do doente.

            O conjunto simbólico trabalha para dar sentido e unir o objetivo ao subjetivo.A elaboraçäo lança mäo de mecanismos cere­brais,ainda muito pouco conhecidos,capazes de engendrar respostas mentais intimamente relacionadas com o universo mítico do doente.  O processo fisiológico determinado pela dor,invisível à macrosco­pia,acaba consoante à mitopoiese.

            Entre as muitas respostas para superar o sofrimento,está a organizaçäo do  MAL formando a objetividade da doença como pre­cursora da morte.Deste modo,é viabilizada uma resposta de grande importância: o invisível se torna visível.

            De maneira semelhante,a saúde é transformada em BEM e colo­cada em oposiçäo frontal à doença.

            O movimento dialético entre ser e näo‑ser (aqui compreendi­dos como correspondentes aos binômios saúde e doença,vida e morte) se faz sempre vinculado às forças contrárias (cósmicas,morais e naturais) que se opöem ao ideal do projeto existencial ou da ordem ético‑social.

            O MAL é sempre o outro,localizado fora da ordenaçäo deseja­da,que näo o próprio ser.

            Os modelos socias colocaram o outro,sempre absoluto e sobre­natural,acima e abaixo da terra.A desordem aparece como consequência direta das transgressöes do rítimo podendo ter natureza cósmica,moral e natural.

            A alternância entre  ordem (BEM) e desordem (MAL) produzindo doença é o ponto fundamental e o limite que continua permitindo a construçäo do saber médico fora da subjetividade.

            Foi assim que o homem edificou o conhecimento do corpo,desvendando lentamente o escondido atrás da pele.

            O processo tornou indispensável a presença do agente espe­cializado  para observar e interpretar o MAL,tanto no espaço real como no imaginado.

            Esse personagem,essencialmente normativo,historicamente tem se comportado como elo entre o MAL e o BEM.Já que é através da cura que se dá a passagem de uma situaçäo à outra,passaremos a chamá‑lo de AGENTE DA CURA.

            Entretanto,quando a ligaçäo se faz,é organizado simultanea­mente um espaço antropológico ético e moral de reciprocidade entre o agente da cura e o seu paciente.

            A capacidade de desvendar a doença,tornando‑a objetiva e visível,dá ao ato algo de mágico porque está sempre ligado às emoçöes causadas pelo subjetivismo do MAL como antítese da vida.Este é e será sempre o principal problema da medicina.

            A ambiguidade do saber do agente,técnico em relaçäo a doença e mágico com o paciente,dá a medicina um discurso bitonal capaz de ser utilizado também como instrumento de dominaçäo.

            Isto ocorre porque a doença,por mais insignificante que seja,representa sempre a antecipaçäo da morte.O curador,como dono do saber técnico,se coloca entre a vida e a morte.

            O principal instrumento legitimador do poder é o diagnóstico.É a precisäo para transformar o subjetivo em objeti­vo,o imaginário em material,que ampara a medicina.É assim que o poder médico,a serviço da conquista,tem amplitude suficiente para dar resposta à transgressäo dos valores dominantes.

            É através do diagnóstico que o agente identifica o MAL para,em seguida extirpá‑lo.

            A medicina se fez como especializaçäo social decifrando a metafísica do corpo em permanente transformaçäo,tanto no espaço observável quanto no imaginável.A maior valorizaçäo de um ou de outro segmento depende do conhecimento historicamente acumulado e dominante da sociedade

            O médico ao diagnosticar um câncer antes de operá‑lo e o pajé reconhecendo o espírito malfeitor para exorcizá‑lo,represen­tam duas medicinas que atuam exatamente com o mesmo objetivo e em espaços diferentes: afastar o MAL.

            É por esta razäo que a História da Medicina permite validar o saber médico a partir da semiologia das naturezas mítica,ética,moral e sócio‑política que o homem dá à doença.

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