A MÃE TERRA DESLOCANDO O SENHOR DO ANIMAL: OUTRO HORIZONTE MÍTICO DO CURADOR

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

     “O mito da criação do homem começa com a descrição das dificuldades dos deuses para arranjarem pão.  Nutrição é a maneira con­creta de exprimir a possibilidade da existência.  Não se pode separar esta daquela. ” (K.  Kerényl)

     As mudanças climáticas ocorridas por volta de 12000 anos AP (Antes do Presente) na Europa, proporcionaram incríveis transformações nas relações sociais dos caçadores‑coletores. O recuo das geleiras provocou a migração da fauna em direção às regiões setentrionais,  com substituição das estepes pela floresta, obrigando‑os a se adaptarem à nova fase.

     Os elementos sagrados continuaram a acompanhar o homem na sua nova trajetória de conquistas. O espaço foi deslocado, efetivamen­te, em direção das terras férteis próximas aos rios e lagos.

     O lago de Stellmoor, perto de Hamburgo, na Alemanha Ocidental,  foi um marco deste período. Muitos objetos, aparentemente sagrados, com datação de 8. 000 anos assegurada pelo Carbono 14, foram encontrados no seu leito. Um deles chamou particularmente a atenção: a estaca de pinho com um crânio de rena na sua porção mais alta, feita por caçadores que tinham neste animal a principal fonte de sobrevivência.

 Em outra área de pesquisa arqueológica neolítica, não muito distante da anterior, foi resgatado um tronco de salgueiro com mais de três metros de comprimento, grosseiramente esculpido, percebendo‑se a cabeça e o pescoço de uma figura humana.  O simbolismo expressado nos totens está claramente configurado na convivência de dois momentos distintos do universo metafísico da humanidade:a divinização do bicho e a do próprio homem. Parece lógico pensar que não é difícil para quem já tornou sagrado o circundante, tomar para si a sagração.

 A última grande modificação climática do planeta, resultante do deslocamento das geleiras, interferiu na passagem do antepassado caçador‑coletor para caçador‑plantador. Tal fato foi de tamanha importância que pode ser compreendida como fase intermediária para a humanização. Foi quando as comunidades neolíticas optaram pela vida francamente sedentária, ao contrário das anteriores que eram nômades.  Esta transformação social que ficou conhecida como Revolução Agro‑pastoril do Neolítico se processou como o produto final de combinações circunstânciais que levaram o homem a tirar da terra parte do seu sustento.

 É certo que não podemos estabelecer limites rígidos no tempo para situar esse aspecto civilizatório para as diferentes culturas. Contudo, é possível assimilar que os povos situados em diferentes continentes viveram situações semelhantes em fases diversas, variando de 10. 000 na Mesopotâmia a 7. 000 anos atrás no planalto mexicano.

 A medicina, já definida como especialidade social nessa fase do desenvolvimento, sofrerá definitivamente a influência da nova deificação da natureza incorporando no seu bojo toda a estrutura mítica anterior ligada à vida e à morte, à saúde e à doença. Foi iniciado um complexo sincretismo das crenças herdadas do nomadismo com as outras, mais recentes, do sedentarismo.

 As dezenas de milhares de anos que os caçadores / coletores permaneceram em relação direta com a natureza animal, deixaram traços bem definidos na sua nova adaptação frente às mudanças provocadas pelo cultivo da terra e pelo pastoreio.

 A divisão de trabalho que se seguiu, interferiu decididamente no tipo de doença que o homem passou a ter como consequência da aquisição de novos hábitos sociais e da sua maior intimidade com a terra, onde vivem quase todos os pequenos vermes que continuam parasitando o homem.

 As relações míticas do homem com o animal que predominaram no universo mítico da maior parte da história do homem pré‑histórico foram modificadas com a agricultura cultivada.

 A ordem religiosa anterior foi substituída pela solidariedade mística com o vegetal. O osso e o sangue foram deslocados pela terra e pelo esperma. Ao mesmo tempo, ocorreu a ascensão da mulher no novo espaço social, porque passou a ser reconhecida, tal como a Mãe‑Terra reproduzia o alimento indispensável à vida, como a reprodutora do homem no seu próprio corpo.

 Essa mudança está muito forte na arte rupestres dessa fase que assumiu um aspecto naturalista, ao contrário da precedente que era predominantemente esquemática e geométrica. O simbolismo sexual se tornou evidente nas muitas esculturas dos instrumentos para arar a terra em forma de falo e das figuras femininas obesas com enormes mamas, conhecidas como Vênus pré‑históricas. O pênis ao penetrar na mulher para fecundar passou a ser comparado com o arado rasgando a Mãe‑Terra para germinar o alimento.

 Os vestígios históricos da esperança da vida após a morte que ficaram evidenciados na cultura neolítica foram sincretizados com os novos valores oriundos da terra cultivada e renovada periodicamente pelo ciclo eterno da natureza.

 A antiga dispersão das idéias religiosas é agora concentrada em espaço definido: a aldeia. Apareceram os primeiros lugares urbanos consagrados exclusivamente à Divindade ‑ o templo ‑ cujos responsáveis detinham o conhecimento historicamente acumulado para intervir no curso da natureza e se portavam como intermediários do transcendente.

 Pode ter sido nessa sequência de transição para sedentarizar o homem que tenha se dado a consolidação das idéias religiosas, não só pelo fenômeno empírico do cultivo da terra de onde saía o alimento, mas também no mistério do nascimento e pela consciência coletiva do tempo‑espaço visível,  identificada no ritmo da vida dos vegetais, num processo eterno de renovação do mundo.

 Existem muitos exemplos de mitos que relacionam o homem com o produto da terra que garante a sua vida. Pertencem ao universo mítico de diferentes culturas, algumas distantes muitas centenas de quilômetros entre si, mas que guardam significativos elos de ligação.

 Os nativos da ilha do Ceram, na Nova Guiné, onde do corpo retalhado de uma jovem semi‑divina Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas que oferecem o alimento necessário para as pessoas viverem. Com concepção semelhante, o mito amazônico do guaraná, do vale dos rios Andirá e Maués, descreve o drama da morte do filho da índia Onhiamuacabe e do seu renascimento através dos olhos plantados na terra molhada, dando origem do esquerdo ao falso guaraná uaraná‑hôp e do direito ao verdadeiro guaraná uaraná‑cécé que seria usado para alimentar e curar as doenças.

 A significação dos mitos nascidos da relação do homem com a terra é clara: os alimentos são sagrados por derivarem do corpo da divindade Mãe‑Terra e devem ser utilizados na manutenção da vida. Como a vida só pode ser assegurada sem doença, esta também passa a ser enfrentada com a ajuda do vegetal,  que em algumas elaborações míticas é associado à vida eterna.

 Com a sagração de alguns vegetais, eles foram incorporados à coisa sagrada que ficava fora do alcance dos simples mortais. Desta forma, o intermediário da Divindade passou a ser o responsável maior pelo seu conhecimento e uso.

 Milhares de anos depois do processo de elaboração dos primitivos mitos relacionados com o SENHOR DO ANIMAL,  surgiram formas sincretizadas com a MÃE‑TERRA cujo simbolismo é muito semelhante.

 O povo que elaborou o Antigo Testamento (AT) situou o pão, principal fruto da intimidade do homem desse grupo com a terra, como um dom do Deus único e fonte de todas as forças (Sl 104, 13‑15), um meio de subsistência tão essencial que a falta dele significava ausência de tudo ( Gn 28, 20 e Am 4, 6 ).

 Após a consolidação do cristianismo no Ocidente, o pão continuou a ter o mesmo significado simbólico, associando ao desejo de comer no Reino de Deus ( Lc 11, 3 ), com a palavra de Jesus (Mc 6, 41‑42) e culminando com o rito da eucaristia, em Jo 6, 48‑52 : “Eu sou o pão da vida. Vossos pais no deserto comeram o maná e morreram. Este pão é o que desce do céu para que não pereça quem dele comer. Quem comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo. “

 As práticas médicas, surgidas nas sociedades ágrafas, feitas por elementos especializados ‑ os curadores ‑ continuaram e se consolidaram nos aldeamentos. Não resta dúvida de que eles também sofreram a influência da passagem da oralidade para a escrita, favorecendo a guarda e a reprodução do saber construído empiricamente. Do mesmo modo, absorveram as modificações causadas no corpo pela melhor oferta do alimento e pelo aparecimento de uma população urbana e outra rural.

 Nessa fase do processo civilizatório, quando começou a aumentar a segurança do grupo, a luta pelo poder oriundo do cuidado com a saúde determinou os primeiros conflitos de competência entre a religião e a medicina. Os curadores, donos do conhecimento empírico repassado pelo núcleo familiar,  e os sacerdotes, proprietários exclusivos da coisa sagrada, iniciaram a disputa que se arrasta até hoje.

 Desde o tempo em que o hominídeo, há 45. 000 anos, fez a ação médica mais antiga que conhecemos ao amputar o braço direito de outro membro da comunidade, até o aparecimento da figura social do médico,  nos primeiros documentos escritos na Mesopotâmia, a medicina esteve ligada com a religião de modo tão nítido que as suas práticas trazem sulcos profundos dessa situação.

 A Epopéia do Gilgamesh constitui um dos mais fantásticos elos dessa ligação cheia de conflitos entre a medicina e a religião, onde o homem não satisfeito com a sua realidade de mortal tenta mudar, sem conseguir,  a sua condição humana de mortalidade determinada pela divindade com a ajuda do vegetal vindo do mar. Gilgamesh, o herói mítico, rei de Uruk, que parte na busca da imortalidade depois de sentir o peso da morte indesejada do seu amigo querido e depois de alcançar a planta marinha que rejuvenesce, perde para a esperta serpente que a come, restando a Gilgamesh presenciar a renovação da serpente ao perder a pele.

 Os mitos suméricos, nos quais se inclui a Epopéia de Gilgamesh, reproduziu o pensamento dominante do homem daquela época sobre a vida, a morte, a doença e a justiça, onde a importância do vegetal já tinha substituído o animal nas mentalidades.

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