O ABORTO SOB A VIGILÂNCIA CRISTÃ NO SÉCULO 20

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

            A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético e moral, escrito nos anos 100: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascido”. O filósofo cristão Tertuliano (190‑197) também adotou a mesma posição: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida ou se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer”.

             A partir do século 4, o aborto provocado passou a ser associado à idade fetal. Nesse sentido, São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes Doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, sustentou: “Os semens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a importância da separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a Lei não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos”.

            A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou os séculos. O magnífico São Tomás (1225‑1274) sustentou que só o aborto do feto animado seria homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram, na Idade Média, no afrouxamento da proibição do aborto. O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.

A partir dos primeiros anos do século 20, houve claro endurecimento das autoridades eclesiásticas em relação ao aborto provocado, retornando aos rigores do cristianismo primiti­vo do Didaqué.

Essa posição eclesiástica parece conter dois componentes: o teológico e o político. O primeiro, promovido pelo papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado, de certa forma retomando a posição de Aristóteles. O segundo, relacionado com a industrialização crescente, no Ocidente, e a imperativa necessidade de mão de obra, já que, historicamente, o aborto provocado em condições precárias e as suas trágicas conseqüências, como controle da natalidade, alcançam muito mais as pobres.

O Papa Pio XI, no seu famoso discurso, dirigido às médicos obstetras, em 1951, negou completamente a estrutura do pensamento de São Tomás de Aquino, em relação a humanização do feto, foi enfático ao atribuir vida intra-uterina plena antes do nascimento, em qualquer fase da gestação, e condenar o aborto enquanto morte do inocente: “…Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus…Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, genética, econômica, social e moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberada­mente de uma vida humana inocente…visando sua destruição.”

O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis”.

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