MEDICINA COMO ESPECIALIDADE SOCIAL – PARTE 2 INTERVENÇÃO CURADORA DO HOMEM NO HOMEM

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

A palopatologia dos fósseis mostra que os homens e mulheres pré-históricos estavam sujeitos a diversas doenças semelhantes as que nós, homens modernos, continuamos enfrentando nos dias atuais. Não é demais repetir que a fratura traumática constituiu uma das doenças mais freqüentes nos fósseis estudados, em algumas delas, foram confirmados sinais evidentes

de infecção do osso, a osteomielite, lembrando as encontradas nos hospitais de hoje.

Do mesmo modo, foi possível estabelecer a existência de doenças sistêmicas, não traumáticas, como a denominada gota das cavernas, uma espécie de reumatismo do homem pré-histórico.

Com exceção do corpo congelado de um caçador, que viveu em torno de 6.000 anos, encontrado nos Alpes, na Suíça, as pesquisas arqueológicas jamais encontraram outros corpos ou órgãos anteriores a essa época. Por outro lado, foram identificadas várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O

pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica no homem atual, existe desde o Pleistoceno Médio, isto é, há mais de 100.000 anos. A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico freqüente nos países subdesenvolvidos,

foi documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico dessa doença.

A ocorrência de moléstias na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para controlar

a dor, conservar a saúde e empurrar os limites da vida. Certos autores, especializados em História da Medicina, articulam respostas em comparação com o comportamento de certos animais, quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem limpeza mútua e comem plantas eméticas. É provável que o homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira: lambendo a área ferida e pressionando o local para parar a hemorragia.

Perdura a questão da existência de ritual mágico, na préhistória, ligado às concepções míticas da natureza circundante, na busca de cura das doenças. Na gruta de Trois Fréres, nos Pirimeus franceses, está a pintura de um personagem em movimento de dança, datando de 10.000 anos, travestido de cervo, em atitude que sugere uma espécie de ritual com a intenção de curar, semelhante à dança dos bisões, praticado pelos índios do norte dos Estados Unidos, e a dos índios tukanos, no norte do Amazonas, ambos em cerimônias simbolizando o poder animal na cura das doenças.

O conjunto das informações paleopatológicas, no Neolítico, em torno de 10.000 anos, sugere fortemente a afetiva incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem. Essas atitudes, algumas vezes foram muito agressivos, como a trepanação do crânio com instrumentos suficientemente fortes para cortar regularmente os ossos do crânio em formas geométricas bem definidas. Essa extraordinária prática é facilmente comprovada por meio do estudo dos fósseis. E mais, alguns desses homens pré-históricos que sofreram essa cirurgia sobreviveram muito tempo após a sua realização, o suficiente para favorecer o crescimento do osso cortado.

O conjunto das informações paleopatológicas do Neolítico, em torno de 10.000 anos, também sugere fortemente a incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem.

É interessante assinalar, sem que existam explicações plausíveis, que as craniotonias, difundidas, no Neolítico europeu, também foram executadas, até o século 16, por sociedades que não tiveram contato interétnico, como as da Polinésia francesa e as que floresceram no altiplano peruano nos tempos pré-coloniais.

Restará sempre a dúvida de por que essas craniotomias terem sido realizadas. De qualquer modo, não há como negarque, mesmo tendo sido esse o objetivo da intervenção do homem sobre o homem, representou algo absolutamente extraordinário, na medida em que uma parte do corpo, o conteúdo do crânio, foi exposta intencionalmente, isto é, desvendando e materializando o escondido atrás da pele e do osso.

É possível que o curador pré-histórico tenha exercido, simultaneamente, funções de liderança. Essa demonstração explícita de poder – um homem mortal igual aos outros, intervindo dentro do corpo desconhecido de outro homem – resultaria em grande destaque no grupo social.

Respeitando as devidas proporções, essa relação de dominação do curador sobre o objeto da sua prática – o doente –, sob alguns aspectos, perdura até os dias atuais. Esse poder do curador, na pré-história como nos dias atuais, poderia aumentar o nível de persuasão sobre o doente, tendo como base dois dos pontos de maior sensibilidade humana: a atávica fuga da dor e a preservação da vida.

Esse processo complexo pode ter sido um dos pilares sustentadores que edificaram o homem primitivo no processo de assimilação do conhecimento para evitar a dor e a morte, capaz de impulsioná-lo para desvendar as dúvidas do visível, como primeiro passo a o aperfeiçoamento da linguagem e da transmissão dos saberes.

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