CÂNCER: A PARTITURA DESARMÔNICA DA VIDA
Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
As pessoas continuam, com justa razão, alertas contra o câncer como a mais importante doença da atualidade. Por outro lado, os recursos médicos disponíveis não oferecem, na maior parte dos casos, respostas convincentes.
É provável que a enfermidade cancerosa seja o saldo de muitos distúrbios do equilíbrio celular, provocados por múltiplos fatores internos e externos à célula, ainda desconhecidos.
Os determinantes intrínsecos seriam representados pelos códigos genéticos específicos para cada tipo de câncer na estrutura do genoma (como o teclado de um piano) e os extrínsecos pelos incontáveis fatores físicos, químicos e biológicos que poderiam estimular a chave genética (atuando repetidamente no teclado produzindo sons desafinados).
Funcionaria, mais ou menos, assim: cada ser humano teria o seu próprio teclado de informações genéticas produzindo partituras harmoniosas e seqüenciadas em estrito equilíbrio dinâmico com os elementos circundantes externos. Em determinado momento, o teclado ao ser tocado de forma incorreta, possivelmente por influência de um ou mais fatores extrínsecos, forneceria um som estranho à partitura da organização da vida, dando como resultado o câncer.
Isso deve acontecer muito mais vezes do que supomos. Estatisticamente é pouco provável que as milhões de combinações físico‑químicas efetuadas de uma só vez, a cada segundo, não comportem erros. Todos os dias o homem produz uma fantástica quantidade de ADN (ácido desoxirribonucléico) capaz de, se colocado em linha reta, alcançar várias centenas de quilômetros de comprimento.
Certamente que estamos submetidos, durante toda a vida, ao processo canceroso. A grande dúvida é saber porque as defesas imunológicas do corpo conseguem bloquear a maior parte dos cânceres e perde a capacidade para outros.
As experiências, feitas sob rigoroso padrão de controle, comprovam que quando é injetado dez células cancerosas em animais de laboratórios, não ocorre nenhuma alteração. Porém, se a quantidade é elevada para dez mil, todos morrem. Este fato pode explicar porque nas necropsias (todo paciente que morre no hospital deveria obrigatoriamente ser submetido à necropsia) de doentes falecidos de outras causas, são comumente encontrados vários tipos de cânceres não diagnosticados ao exame clínico.
Muitos dos mais respeitados cancerologistas, como o pesquisador francês Dominique Stehelin, um dos responsáveis pela descoberta do oncogene (o fator intrínseco contido no teclado do piano) afirma que o câncer é a doença mais complicada do homem.
O exemplo mais marcante e socialmente importante é a relação entre o hábito de fumar cigarros e a neoplasia de pulmão. As pesquisas realizadas pelo Instituto de Câncer de Amsterdã (Holanda), mostraram o mesmo defeito no gene K‑Ras em trinta e nove pacientes fumantes.
Certos componentes da fumaça do tabaco alcançariam o décimo segundo aminoácido do gene humano (cada gene é formado por milahres de aminoácidos) causando o câncer pulmonar. Contudo, uma pessoa pode fumar a vida inteira e não morrer de câncer. Como se o seu teclado, por mais que seja estimulado, não forneça o som desarmônico.
O enfoque mais atento dos componentes sociais do câncer, na década de 70, fez com que a política de saúde pública de muitos países, inclusive o Brasil, começasse as campanhas públicas para tentar modificar os hábitos sociais comprovadamente relacionados com a incidência dos tumores. Uma das mais importante foi a guerra contra o cigarro. Não existe dúvida de que a ação antitabagista conseguiu reverter a curva de mortalidade do câncer do pulmão. Pela primeira vez, em 1989, após várias décadas, o Jornal do National Cancer Institute publicou a comprovação epidemiológica da diminuição das mortes por ano causadas pela neoplasia pulmonar.
Como ainda não dispomos de tratamento eficaz para a maior parte dos cânceres, a política publica de saúde está voltada para o reforço do diagnóstico precoce e para as campanhas de alertas contra os fatores externos relacionados com o aparecimento de certos tipos de tumores.