O QUE A CENSURA NÄO PODE ESCONDER: O CÓLERA É A MORTE ANTECIPADA PELA MISÉRIA SOCIAL

Prof.Dr.HC Joäo Bosco Botelho

 

A MISÉRIA CENSURADA ‑ O Amazonas acordou lendo nas páginas de A CRíTICA o indicativo do govêrno federal para iniciar uma rigorosa censura sobre as notícias da disseminaçäo do cólera.

Os poucos registros da nossa História que resistiram à vergonhosa pilhagem das bibliotecas e arquivos públicos,nos últimos cinquenta anos,säo suficientes para fazer uma leitura crítica e protestar,de modo veemente,contra o cerceamento das informaçöes que podem alertar à populaçäo dos riscos que todos estäo sujeitos a partir de agora.

O COTIDIANO DA MISÉRIA ‑ O escritor Gabriel Garcia Marques,autor do livro “O amor nos tempos do cólera”,prêmio Nobel de Literatura,conseguiu retratar numa pequena frase a fealdade da desgraça social que ronda os povos latinoamericanos:

“O cólera se transformou em obcessäo…De modo que quando voltou a sua terra e sentiu a vinda do mar a pestilência do mercado,e viu os ratos nos esgotos expostos e os meninos se revolvendo nus nas poças das ruas,näo só compreendeu que a desgraça tivesse acontecido como teve a certeza de que se repeti­ria a qualquer momento.”

Os amazônides vivem,no momento e pela segunda vez,o terror da chegada do cólera a partir da fronteira peruana.Lá,como aqui,existem as condiçöes necessárias para concretizar o terror infecto‑contagioso  ‑ a ausência do saneamento básico,a fome,a miséria,a água insalubre e a desinformaçäo.

O CONHECIMENTO ANTIGO ‑ A doença é  conhecida desde muitas centenas de anos antes do cristianismo.Os comerciantes que per­corriam os caminhos marítimos dos grandes rios da Åsia ­meri­dional a sabiam como sinônimo de sofrimento.

O TERROR DA MORTE ANTECIPADA ‑ O pavor gerado pela impotência frente à morte coletiva antecipada torna propícia a prática das insanidades coletivas.O povo acuado e desesperado perde rapidamente as linhas mantenedoras do Direito.

O poder,pressionado pela opiniäo pública,tenta manter a todo o custo a organizaçäo social falseando e censurando informaçöes valiosas.

Por outro lado,as religiöes aproveitam a insegurança da maioria para reafirmar os seus próprios valores ético‑morais de salvaçäo e fomentar a catequese.

O EPIDEMIA DE 1855 ‑ O êxodo rural em direçäo as grandes cidades européias,no século XIX,suprindo a necessidade de mäo‑de‑obra para a industrializaçäo emergente,favoreceu o surgi­mento de grandes contingentes de trabalhadores vivendo em condiçöes subumanas nas periferias ubanas.

Foi nessas condiçöes que o cólera se disseminou,em 1854,em várias cidades da Europa.As notícias alarmantes,vindas de Portugal,chegaram no Governo Imperial do Brasil.

A gravidade do quadro foi censurada e elaborado um PLANO SECRETO tratando o conjunto de medidas higiênicas e profiláticas.O Imperador assinou um Decreto Confidencial e o mandou às autoridades provinciais.                 O presidente da Província do Pará,em despacho datado de 24 do mesmo mês,determinou a sequinte medida: ”  Que os navios considerados suspeitos pelo Provedor de Saúde do porto ou que viessem diretamente dos portos infeccionados,fossem obrigados a quarentena defronte da ilha de Tatuoca”.

A CHEGADA DO CóLERA NO PARÅ ‑ O segredamento de nada adiantou.O cólera chegou no Pará,em 15 de maio de 1855,a bordo da galera portuguesa Defensor.Durante a viagem entre a cidade do Porto (Portugal) e Belém,morreram trinta e cinco pessoas a bordo.

O secretário da Provedoria da Saúde,depois de ter constatado que alguns passageiros estavam infectados,determinou a bloqueio do navio lusitano

Para entender a tragédia resultante da rápida disseminaçäo da moléstia na Amazônia brasileira,é necessário analisar os registros disponíveis para comprovar o quanto pode custar,em vidas inocentes,a irresponsabilidade, a incompetência e a cumplicidade da autoridade pública.

Apesar de todas as evidências de que as mortes dos passageiros do Defensor estavam relacionadas com o cólera,o provedor da Comissäo de Higiene Pública näo levou em consideraçäo o relatório do seu secretário e baseando‑se exclusivamente nas informaçöes de um passageiro médico,liberou o livre trânsito da galera lusa.

O provedor afirmou,no depoimento perante à Comissäo de Higiene,que os óbitos verificados durante o trajeto tinham sido em decorrência das péssimas condiçöes de higiene que o navio oferecia,da fome e dos maus tratos do comandante.

Enquanto a autoridade portuária punia o comandante autoritário,estava iniciado o alastramento no interior do Pará.A primeira cidade a sofrer  foi Obidos ao receber com festa,vindos de Belém no vapor Tapajós,os trinta e dois colonos imigrantes,alguns já com a manifestaçäo clínica.

A CUMPLICIDADE DO PODER ECONôMICO ‑ É possível que a Companhia de Comércio e Navegaçäo do Alto Amazonas,proprietária do Tapajós,detendora da exclusividade da rota pelo rio Amazonas,tenha pressionado para minimizar o quadro.

É claro que a notícia alarmaria os colonos estrangeiros chegados em Belém.O pânico seguido da fuga implicaria em grandes prejuízos para a Companhia do Visconde de Mauá,um dos principais representantes dos interesses da Inglaterra no Brasil.

É importante relembrar que o fluxo migratório europeu para a regiäo amazônica começou em 1854,um século depois do fracasso do Diretório Pombalino e dez anos após a Diretoria dos Indios.

A vinda dos trabalhadores foi coordenada pela Companhia Mauá com o objetivo principal de substituir a escassa mäo‑de‑obra indígena,destruída pela política colonial, e melhorar a produçäo agrícola regional.A estratégia acabou näo dando resultados efeti­vos porque a maior parte dos estrangeiros näo ficou nas colônias agrícolas.Eles preferiram participar do extrativismo que oferecia melhores lucros.

A TRAGÉDIA ‑ Com o aumento das mortes,o governo näo tinha mais como esconder os fatos.Os jornais locais começaram a publicar os números assustadores.

A populaçäo de baixa renda,historicamente sempre a mais sacrificada,abandonada e sem recurso para aviar as receitas extravagantes dos poucos médicos,recorreu aos antigos tratamentos pelas ervas tirados da floresta,gravados na memória coletiva,dos purgativos e vomitórios.

Mesmo com toda a evidência de uma calamidade pública,foram poucas e ineficazes as medidas tomadas pelo gover­no.

Em novembro do mesmo ano,portanto seis meses depois da chegada da galena portuguesa,foi publicada a primeira cartilha dirigida à populaçäo.Nesta época,dois terços dos vinte mil habi­tantes de Belém tinham sido contaminados com mais de dois mil casos fatais.

A devastaçäo nos povoados distantes  näo foi menor.Na localidade de Cametá,com sete mil pessoas,houve mais de cinquenta óbitos por dia.

O Presidente da Província alarmado com o agravamento do pânico em algumas vilas,inclusive em Cametá,resolveu verificar pessoalmente os acontecimentos.Ele morreu na viagem de volta à Belém,no paquete Rio Negro,vítima do cólera.

A RELIGIÄO E O CONTROLE SOCIAL ‑ Os momentos difíceis vividos pelo homem quando ameaçado na segurança comum,têm motiva­do o empenho das religiöes para ressaltar a importância da ética ligada ao controle social e à catequese de conversäo.

A doença compreendida como  mal é trabalhada pelos representantes  da divindade (sacerdotes) como  castigo pela transgressäo das regras divinas.

O bispo de Belém entendendo que a fúria do céu só pode­ria ser aplacada com reza e penitência,com a autorizaçäo do Presidente da Comissäo de Higiene (o mesmo que assinou o livre trânsito do navio português contaminado),promoveu concorridas peregrinaçöes que acabavam constituindo em mais um agravante.

A CHEGADA DO CóLERA NO AMAZONAS EM 1855 ‑ O cólera seguiu viagem e penetrou em terras amazonenses a bordo do mesmo vapor Tapajós,aportado em Manaus trazendo quarenta soldados do 11  Batalhäo de Caçadores,no dia 9 de junho de 1855,três semanas depois da partida de Belém.

A epidemia foi confirmada,infelizmente tarde demais,pelo alerta do cirurgiäo do Corpo de Saúde do Exército comunicando que dois dos militares estavam contaminados.

Foi um ano de temores.O abrandamento chegou com a notícia do presidente da Província do Amazonas,em relatório dirigido à Assembléia,em 8 de Julho de 1856,anunciando o fim da epidemia.

Nesse documento consta que cento e oitenta e oito pessoas adquiriram a infecçäo e houve uma morte.As autoridades reconheceram também quatorze óbitos em cinquenta doentes de Itacoatiara e vinte e um infectados em Silves que resultaram em dois casos fatais entre os meses de janeiro e fevereiro de 1856.

É pouco provável que os números  divulgados pelo gover­no tenham sido verdadeiros.O artigo publicado no jornal “Estrela do Amazonas” no dia 25 de agosto de 1855,um ano antes do relatório do Presidente da Província,dá um outro aspecto da questäo ao noticiar a construçäo de lazaretos para isolar as vítimas.Esta atitude näo teria sido pensada se o total de pessoas doentes näo fosse grande a ponto de näo ter aonde  alojá‑las.                O povo amazonenese,desgraçadamente abandonado,também atendeu com fervor ao chamamento eclesiástico.O correspondente em Manaus do jornal paraense “Treze de Maio”,em 9 de julho de 1855,descreveu do sequinte modo a fé das massas: ” … o povo reconhecia na terrível peste um castigo do céu e que o melhor remédio para combatê‑lo era a penitência e a humilhaçäo.”

A EPIDEMIA DE 1991 ‑ O primeiro alerta de nova epidemia colérica na América Latina,vinda da Åfrica  e do Sudeste Asiático,afundados na desgraça social de dezenas de milhöes de pessoas vivendo em condiçöes subumanas,foi dado pelo pesquisador Jean Michel Fournier,do Instituto Pasteur (Paris),no dia 10 de fevereiro passado.

As autoridades sanitárias do Pacto Andino,reunidas em Lima,no dia 28 de fevereiro deste ano,reagiram do mesmo modo que em 1855,atenuaram a tragédia eminente.

O ministro Alceni Guerra manteve a mesma postura na entrevista,feita no auditório da Base Aérea de Manaus (A Crítica,02.03.91),ao afirmar que o perigo näo tinha chegado à fronteira brasileira.Contudo,temia ser IMPOSSíVEL controlar o cólera em Manaus,onde näo existe a mínima estrutura sanitária.

A dificuldade reside exatamente no incalculável bolsäo de miséria das periferias urbanas  da nossa cidade,onde vive 95 % da populaçäo.

É uma fantasia pensar que a enfermidade näo esteja entre nós  muito tempo antes do anunciado oficialmente.A porta de acesso  foi a  fronteira desabitada com o Peru e o caminho consu­mado pela calha do rio Solimöes.

No dia 14 de março último,o barco peruano “Inca Pacha­cutec”,vindo da área francamente contaminada,aportou em Manaus.Apesar da possibilidade de haver portadores do bacilo aparentemente sadios,näo foi determinado nenhum cuidado especial à embarcaçäo e aos passageiros.O  livre trânsito foi baseado exclusivamente na ausência de manifestaçäo da patologia entre as pessoas que estavam a bordo.

Do mesmo modo,como em 1855,quando näo foi mais possível escamotear a realidade.Os responsáveis pela saúde pública passam a admitir publicamente a tragédia: “O CóLERA PODE CHEGAR AMANHÄ A QUALQUER PARTE DO BRASIL !”   (Folha de Säo Paulo 17.04.91)

A TRISTE LIÇÄO DO PASSADO ‑ O poder público deve lem­brar que o amazônide continua sem saneamento básico,com fome,sem água potável e sem acesso à educaçäo fundamental,exatamente como há cento e cinquenta anos atrás.

Säo estas as condiçöes que transformam o cólera em ameaça mortal e que a censura nunca poderá esconder.

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