DIA DO MÉDICO: O MARCO DA RESISTÊNCIA

 

 

Prof.Dr.HC Joäo Bosco Botelho

 

“Como o médico Asclépio,filho de Apolo,fizesse tais progressos em sua arte,que chegou mesmo a ressuscitar vários mortos,Zeus,temendo que a ordem do mundo fosse transtornada,ful­minou‑o.”

Junito de Souza Brandäo

 

As modificaçöes propostas pela Nova História fizeram surgir a valorizaçäo das manifestaçöes sociais coletivas no coti­diano dos homens.

A história da medicina, antes exclusiva dos relatos factuais e épicos pessoais,passou a analisar mais amplamente os conflitos que se manifestam nas mentalidades frente aos desafios impostos pela sobrevivência.

A complicada tentativa de empreender a busca dos elos distantes da medicina com o social,deve necessariamente estar contida nessa representaçäo dinâmica.

A humanidade sempre conviveu com a certeza da doença e da morte.Nas poucas dezenas de anos que o homem consegue vi­ver,gasta grande parte do tempo na procura incessante do seu conforto,aqui compreendido no conjunto de situaçöes,de lugares e coisas que däo prazer,saciam a fome e a sede,protegem do frio e e prolongam a vida.                      O aprendizado,de modo geral,foi elaborado em dois espa­ços diferentes e,até certo ponto,relacionados: o profano,de natu­reza empírica,fruto do aperfeiçoamento da técnica,e o sagrado,de origem religiosa,dependente da divindade.

A inteligência humana conseguiu elaborar,no espaço sagrado,muitas idéias para justificar  agonia do frio,da fome,da doença e da morte.A partir de uma fase,cujo início é impossível de precisar,predominou aquela que projetava a ambicionada felicidade na imaginável vida depois da morte.

Se considerarmos a fraçäo de tempo que já passou,milha­res de anos desde o início primordial dessa abstraçäo,e o atual estado de miséria  em que vive a maior parte da populaçäo do mundo,é evidente que as mudanças näo foram muitos.Em consequência da realidade que perdura,a maior parte dos homens  continua valo­rizando a frágil esperança do renascimento,como forma de superar a rudeza do desconforto terreno.

A epopéia edificada na busca da  imortalidade, repre­sentou um dos principais fatores para o aparecimento dos agentes da cura,do curandeiro ao médico,e forneceu os subsídios para a materializaçäo da medicina como especialidade social.

Mesmo com a certeza presumida de que as agruras terre­nas,inclusive a morte,dependeriam da divindade,a organizaçäo coletiva foi se impondo,pouco a pouco,para superar as dificulda­des  materiais surgidas.

Os registros da paleopatologia mostram a existência de uma prática médica,como conhecimento empírico,em comunidades ágrafas de caçadores‑coletoras.Vários ossos de hominídeos foram achados apresentando sinais de fraturas consolidadas.Os ferimen­tos näo teriam curados sem a cooperaçäo de vários indivíduos do grupo para imobilizar o membro fraturado, fornecer o alimento e ajudar na locomoçäo do doente.

CURAR é uma palavra mágica porque interliga o sagrado com o profano.O ato de curar traz na sua essência o poder (ou a sensaçäo) de vencer o maior de todos os obstáculos da vida: a morte como manifestaçäo do poder transcendente.

A história das mentalidades evidencia um passado comum entre a medicina e a religiäo,ambas disputando a competência da CURA,adiando a morte.

Este é o ponto básico da principal resistência humana à vontade divina: vencer a morte.

O fato está claro na mitologia grega.A data atual de comemoraçäo do dia do médico ‑ 18 de outubro ‑ corresponde,à época em que era celebrada a festa do filho de Apolo,ASCLÉPIO,o deus da medicina grega.

Asclépio foi educado pelo centauro Quiräo para ser médico.Outros discípulos famosos do centauro foram Jasäo e Dioní­sio.O primeiro,diretamente ligado à medicina pela raiz etimológi­ca do seu nome de origem indo‑européia que expressa a idéia de curar, e o segundo,associado à metamorfose e à vegetaçäo.

Para compreender a medicina,a partir da Grécia anti­ga,tentando superar o destino mortal dos homens,é necessário que a análise começe pelos elos rompidos entre o pensamento mítico grego,inovador e questionador,e a mitopoiese exclusivamente opressiva dos egípcios e babilônicos.

O estudo da representaçäo social de Asclépio e Dioní­sio, no panteäo grego, é capaz de identificar um ponto comum na relaçäo entre os mundos sagrado e profano : a insubordinaçäo à ordem divina.

Enquanto Dionísio provocou resistência e perseguiçäo aos seus seguidores por oferecer  uma prática religiosa que con­frontava com o estilo de vida e universo de valores da pólis,As­clépio causou medo aos deuses do Olimpo porque curava as doenças e evitava a morte,fazendo com que eles se sentissem ameaçados.

Asclépio conquistou uma fama inimaginável.Tinha a deli­cadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirur­giäo.Todos os doentes que näo obtinham cura em outros oráculos procuravam os serviços médicos de Asclépio.Mais cirurgiäo do que médico,ele criou as tiras,as ligaduras e as tentas para drenar as feridas.Chegou a ressuscitar os mortos e por essa razäo foi ful­minado por Zeus com os raios das Cíclopes.Zeus matou o filho de Apolo porque temia que a ordem natural das coisas fosse subverti­da pelas curas e pela ressurreiçäo dos mortos.

O episódio da morte de Asclépio,motivada pelo ciúme de Zeus,retrata o marco da resitência contra os deuses.Mesmo depois de morto,o seu culto continuou vivificado na memória coletiva,im­pondo a certeza de que a renúncia à vida näo faz parte da nature­za do homem.

O deus da medicina grega deixou duas filhas ( Hígia e Panacéia ) e dois filhos (Machaon e Podalírio ).As duas mulheres se notabilizaram pelos conhecimentos empíricos ligados à higiene e às plantas medicinais.Os dois homens ficaram de tal modo famosos como médicos guerreiros praticando a cirurgia,na guerra de Tróia,que foram citados nominalmente por HOMERO (Ilíada,830).

Muitas esculturas e afrescos retratando Asclépio,feitos entre os 2.500 e 2.000 anos AP (Antes do Presente),contêm uma serpente enrolada em um bastäo.

O conjunto de influências da cosmogonia  grego‑romana,nascida na filosofia pré‑socrática  e modificada pela força platônico‑aristotélica, recebeu o impulso de um dos mais importantes símbolos míticos da antiguidade ‑ A CRUZ ‑ adotado pelo catolicismo.

O poder da divindade,artisticamente construído,mantendo a primazia sobre a morte,foi revigorado pela gradativa consolida­çäo do cristianismo como religiäo dominante.O calendário cristäo manteve o dia 18 de outubro como o registro festivo para marcar o nascimento de Lucas,o evangelista médico.

A serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristä e formou um dos mais belos sincretismos religiosos da história.A primeira,símbolo da imortalidade embaixo da terra,e a cruz como a representaçäo do inatingível acima da terra,fecham o ciclo mítico pendular entre o desconhecido  situado acima da cabeça e abaixo dos pés do homem.

Portanto,näo é sem razäo nem simples coincidência que os médicos comemoram,muitos sem saberem porque,o dia 18 de outubro como marco da resistência à morte inevitável.

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