ECOLOGIA E PODER: da foice e do martelo ao arco‑íris

 

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

 

Durante muito tempo,no Ocidente,o mito foi equivocadamente compreendido como um conjunto da linguagem,oral ou escrita,repro­duzindo a fábula.Ao contrário,em outras sociedades,era o retrato de uma estória verdadeira,plena de significado religioso e sim‑bólico,relacionada com as proteçöes pessoal e coletiva,em torno das divindades e da posse do território.

Os estudos teóricos foram iniciados por Xenófanes de Colofäo (570‑528 a.C.),da escola eleática,precursor do pensamento em conceitos.Ele investiu firme contra as representaçöes mítico‑teológicas de Homero e Hesíodo,contribuindo para sedimentar a grande rachadura entre o mito e o logos.

As mentalidades do Ocidente,nos séculos sequintes,influen­ciadas pela forte herança cultural grega,adotaram o  logos como o oposto ao mito.Este último,acabou significando a antítese da realidade.Como espaços em confronto,têm servido,como instrumen­tos,às crenças religiosas e às idéias políticas para deslocar os inimigos e enfrentar a resistência.

A cristianizaçäo reforçou essa abordagem e continuou alimen­tando o mito,quando interessava aos objetivos de dominaçäo,como sinônimo de falsidade.

 

A partir desses pressupostos,näo existe a diferença preten­dida entre logos e mito.Os dois estäo profundamente interligados e dependentes;säo estados alternados da mesma realidade.

Nessa perspectiva,as propostas políticas estäo em profunda ligaçäo com os mitos de origem; o antigo sob roupagem nova.Os políticos sobem nos palanques,colocados acima das multidöes,e prometem a salvaçäo.

É reconhecido por alguns historiadores que Carl Marx utili­zou um dos grandes mitos da escatologia do mundo asiático‑medi‑terrâneo: o papel do justo sacrificado (entendido pelos marxistas na figura do proletariado) para justificar a mudança ontológica do mundo.A sociedade sem classes,pretendida pelo  socialismo marxista,pode ser comparada,à idade do ouro cantada desde os tempo de Ovídeo.

É  estreita a correlaçäo entre os mitos engendrados para aprimorar a posse da terra.O funçäo soteriológica do proletaria­do,proposta por Marx e Engels,näo escapa à regra.Incorporou uma grande parte da ideologia messiânica judaico‑cristä,simulando a luta do bem ‑ o comunismo ‑ atacando impiedosamente para desapa­recer o mal ‑ o capitalismo ‑ da face da Terra.

Os diálogos  entre os teóricos marxistas,na época da Tercei­ra Internacional,e os filósofos historicistas,evidenciaram o quanto pesou na disputa travada entre eles tornar exclusivo,na práxis,a objetividade do social pelos primeiros e a  subjetivi­dade,na produçäo das idéias,pelos últimos.

O marxismo,como qualquer outro conjunto ideológico,só exp¨e o que interessa à estratégia dominadora.Na realidade,o jogo da mudança do velho pelo novo está recheado da manipulaçäo do poli­ticamente correto. A verdade näo faz parte dos objetivos maiores.

Chama a atençäo do investigador social a marca da milenar luta mítica do bem contra o mal,presente nos noticiários atuais.

Todos estäo tendo a rara oportunidade de presenciar o movi­mento da coesäo social,para manter a posse do território.O embate voltou à cena do cotidiano político,no Ocidente capitalista cristäo,travestido dos novos personagens.

O mal,antes simbolizado pelo comunismo,foi dicotomizado em dois elementos:o lado maléfico ‑ a  droga ‑ e o benéfico ‑ o verde.

É  fantástico como os ideólogos do capitalismo näo só conse­guiram desmontar o rigor da abordagem política do marxismo, como também deram aos desiludidos marxistas uma opçäo para continuar falando.

É indispensável manter viva a resistência,de preferência quando näo oferece mais risco para a ordem.Näo foi sem razäo que Säo Paulo (1Cor 11,19) disse:É preciso que haja até mesmo cis¨es entre vós,a fim de que se tornem manifestos entre vos aqueles que säo comprovados.

Existem fortes parâmetros reforçando essa leitura.Foram mais de cinco anos para difundir a nova idéia pela grande mídia arti­culada,facilitando a assimilaçäo do inevitável:a dissoluçäo da URSS.

O espectro noticioso foi precedido de sinais muito claros da ineroxabilidade dos acontecimentos.A primeira meta foi  desmora‑lizar o comunista‑inimigo,acentuando as contradiçöes internas e externas, naquele momento insustentáveis,através do renascimento dos degradados e  dos contestadores.

O povo curvado,em dócil genuflexäo,perante os altares,das igrejas, e dos palanques,dos partidos políticos,raramente sabe do sangue derramado para manter o culto protegido.De igual maneira,a desinformaçäo tende considerar os homens e deuses perdedores como mentirosos e demonios.

Todos os enfoques posteriores foram simples conseqüências:a mudança do papel dos curadores na repressäo do Estado,a fuga das massas amedrontadas pela possibilidade de repetir o sofrimento, identificaçäo dos novos símbolos,difusäo de notícias que fortale­cem a nova ordem,ressuscitaçäo dos mortos ligados ao novo ideário e a  necessidade de pulverizar a estrutura do poder responsável pelo fracasso.

Simulando um passo mágico,depois que o comunismo deixou de representar perigo aos valores capitalistas,foi identificado o novo inimigo comum ‑ a droga ‑ e o mais forte aliado ‑ o verde.

Ao mesmo tempo,uma série de declaraçöes sincronizadas das principais autoridades mundiais,deslocou a atençäo para os riscos ecológicos da industrializaçäo.A integridade do verde planetário foi embutido no ideário capitalisma.

A entrevista do diretor do FBI,durante a passagem por Säo Paulo,em 1991,foi muito interessante.De acordo com o policial,os comunistas deixaram de ser preocupaçäo do governo americano do norte.A prioridade atual é o combate às drogas.O caso está sendo encarado como uma verdadeira guerra com todos os envolvimentos conceituais,econômicos e estratégicos.

Até poucos anos atrás,näo havia interesse em reprimir,com violência,o narcotráfico.Ao contrário,prevaleceu  a proteçäo descarada do traficante em nome da luta contra o comunismo inter­nacional.Foi este o cenário vivido,durante mais de uma década,pelo ex‑ditador do Panamá. Enquanto recebia dinheiro do narcotráfico, trabalhava para a CIA e para a Casa Branca.

O rápido e,até certo ponto,previsível,desastre social do desmonte da ordem comunista,impôs à ideologia dominante vencedo­ra,o capitalismo transnacional,a necessidade de apressar o movi­mento mítico de coesäo social em outra vertente.

A cruzada mundial,com amplo espaço na imprensa,empreendida pelo casal Reagan,ainda na presidência dos EUA,contra as drogas, em maio de 1988,está embutida nesse contexto.Naquela ocasiäo,foi noticiado o resultado de uma grande pesquisa nacional de opiniäo evidenciando que sessenta e três por cento dos americanos consi‑deravam a droga como o principal problema,contra vinte e um por cento que atribuia o perigo ao comunismo.Trinta dias depois da célebre entrevista dos Reagan,em outra pesquisa,encomendada pelo Congresso norte‑americano,mostrou que as drogas já preocupavam oitenta e sete por cento da populaçäo.

O sagrado,como o profano,para sobreviver,reforça as alianças étnico‑históricas e acompanha,com competência inusitada,o movi­mento mítico da coesäo social.

O papa Joäo Paulo II,a autoridade máxima da religiäo mais bem organizada e com maior número de fiéis no mundo,acompanhou o presidente americano,enfatizando a magnitude da luta comum contra as drogas.

Com o apóio das autoridades eclesiásticas,o Vaticano sediou,em 1991,uma conferência internacional,reunindo uma centena de países,para definir os rumos da ONU frente ao narcotráfico.As substâncias estupefacientes estäo passando,pouco a pouco,para o extenso rol das artimanhas da anti‑divindade para atrair os descrentes.

Seguindo na antiga estrada  da luta do bem contra o mal,para os representantes da divindade dominante,a falta do verdadeiro Deus é a causa de todos os males.

O rápido processo de busca do elo aglutinador,do comunismo à droga,foi muito bem percebido pelo  ditador Fidel Castro.A capi­tal, Havana,foi coberta de amplos cartazes contendo a bandeira e os dizeres sabremos lavar ejemplarmente esse ultraje,contra os oficiais envolvidos com o tráfico de drogas.

Quando o mundo tomou conhecimento,em 1989,que o general Arnaldo Uchoa,histórico revolucionário e comandante das forças de ocupaçäo em Angola,era narcotraficante,um tribunal de ética militar o condenou,em processo judicial sumário (lembrando a ética stalinista,onde o acusado entrava na corte sabendo previa­mente da sentença condenatória) à morte por fuzilamento.

Os valores da revoluçäo comunista,na pequena ilha,preservados sob a ameaça do medo e ajudados pela barreira natural do mar,näo poderiam ser confundidos com o novo inimigo mundial: a droga.

Contudo,é improvável que o ditador‑general‑presidente cuba­no,dominando com mäo de ferro,as informaçöes e o aparelho repres­sor do Estado e  as forças armadas (o comandante militar é Raul Castro,irmäo de Fidel Castro),näo soubesse das atividades ilíci‑tas do ex‑herói.

Ao mesmo tempo em que a ordem marxista estava desmoronando, nos anos oitenta,os orgäos de saúde pública,da maior parte dos países industrializados,identificava o preocupante aumento do uso dos estupefacientes,entre a populaçäo jovem.

As notícias divulgadas contém uma parcela do que interessa à informaçäo consentida,nos moldes daquelas do perigo comunista,nas décadas de cinquenta,nos Estados Unidos da América,e do demonio capitalista,no Leste europeu.

Ao mesmo tempo,seguiram‑se as justificativas científicas, com a ajuda dos curadores oficiais,amplamente divulgadas,para legitimar a aliança comum na nova luta e convencer os incrédulos.

A atitude grosseira,vinda das ordens médica e policial, empenhadas no controle social,acaba alcançando somente os social­mente excluídos.

Os movimentos míticos de coesäo social näo movem‑se ao sabor do acaso.Na mesma época,em que ocorria a substituiçäo do comunis­mo pela droga,iniciou‑se,também com o apóio da grande mídia internacional capitalista,a adoçäo dos novos símbolos de salvaçäo coletiva.

Para a maioria das pessoas,é muito difícl entender aquilo näo  materializado no pensamento;poucos conseguem  abstrair onde os sentidos näo alcançam,isto é,demonstrar a concretude material do intocável.Os esforços para manter a marcha dos novos parâmetros da vida e da morte fracassariam caso faltasse o ponto referencial da reflexäo crítica.

Aos poucos,o efeito estufa,uma coisa ainda pouco esclareci­da,mas consistente no significado,foi interligada com a possibi­lidade de contribuir para abreviar a vida coletiva e colocada no centro das discussöes.

A questäo näo era nova.Tinha sido levantada,no século passa­do,apoiada na dúvida  sobre o destino final dos gases,resultantes da combustäo de matéria orgânica,acumulados na atmosfera. Em 1972,houve a primeira Conferência Mundial sobre o Meio Am­biente,em Estocolmo.Representou as sementes do atual movimento mítico de coesäo social.

Novamente,os mitos de origem,lembrando a cooperaçäo dos tem‑pos arcaicos,foram reacesos pela linguagem superficial refeita.

A máquina da comunicaçäo de massas,azeitada para readaptar o pensamento coletivo no politicamente correto,é muito competente.O jornalismo científico e a arte,sensíveis às mudanças,estäo enga­jadas  na nova ordem estética.

O verde deslocou as ligaçöes incômodas,associadas aos exces­sos do capitalismo,sem mudar absolutamente nada na essência ideológica.Já está em marcha para tornar‑se o novo lado bom do movimento mítico de coesäo social.

Os políticos,sem compromissos com os destinos na naçäo,a longo prazo,ignorando a sutil engrenagem das lutas ideológicas para expandir o território,reproduzem as previsöes apocalíticas caso as ordens näo sejam obedecidas.Os curadores oficiais,confir­mam  o castigo,vindo com as doenças.

O Terceiro Mundo,débil nas respostas frente às dominaçöes e à guarda da terra,curva‑se ante à pressäo e adere,sem esforço,à nova ordem mundial.

A II Reuniäo dos Presidentes dos Países Amazônicos, substi­tuiu o comunismo pela droga como o principal inimigo da sociedade latino‑americana e elegeu o verde como o novo bem a ser alcan‑çado.A ECO 92, reunindo os principais líderes do mundo,consolidou o novo movimento mítico de coesäo social e outras formas de poder,sem a multidäo perceber claramente.

Despidos de outra opçäo para sustentar o discurso,näo deverá parecer estranho se o general‑ditador‑comunista cubano,capitalis­tas e socialistas de todos os matizes e os leitores das orelhas dos livros de ciência política esqueceram as querelas da recente pregaçäo revolucionária marxistaleninista,nas fábricas e salas de aula,pretendendo alterar a posse da terra,e, para manterem as posiçöes,aliarem‑se em torno do verde para  defender,com ardente paixäo,a ecologia do planeta.

O Partido Comunista do Brasil (PCB),o partidäo,depois de mudar o nome para Partido Popular Socialista (PPS),abandonou a foice e o martelo e,inspirado (quem diria!!!…) no Gênesis,do Antigo Testamento,adotou o arco‑íris como o novo símbolo (Jornal do Brasil, 27.6.92).

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