JESUITAS: A MEDICINA COMO INSTRUMENTO DE CONQUISTA

JESUITAS: A MEDICINA COMO INSTRUMENTO DE CONQUISTA

 

Prof.Dr.HC Joäo Bosco Botelho

 

A assistência médica foi uma das mais poderosas armas com que contou o jesuíta para o trabalho da catequese.Por meio dela os padres captaram as simpatias dos indígenas,confundiram os ardilosos pajés e redimiram milhares de moribundos…”

 

Lycurgo Santos Filho

Os jesuítas comemoraram,no dia 27 de setembro passado,os 450 anos de atividades.A fundaçäo da Companhia de Jesus,ocorrida no papado de Paulo III ,atendeu à proposta de Inácio de Loyola (1491‑1550).

Loyola,nasceu em Castela,na Espanha,filho de família nobre,foi militar até ser ferido gravemente em combate.Foi trata­do e curado por um dos muitos padres‑curadores que exerciam a medicina dentro dos monastérios.Após o período de convalescência,dedicou‑se exclusivamente a religiäo e escreveu “Os Exercícios Espirituais”

A Ordem sempre se distinguiu das outras congêneres.Os ri­gores impostos aos seus membros ( hierarquia de caserna,casti­dade,pobreza e obediência ao papa ) e os treze anos de estudos obrigatórios contribuíram para os inacianos formarem um dos importantes esteios da Contra‑Reforma.         As transformaçöes sócio‑políticas seguidas à decomposiçâo da sociedade feudal infligiram violento descrédito no cristianismo e afrouxaram os antigos laços de dependência Igreja‑Estado.

O movimento reformista penetrou rapidamente em diferentes países da Europa com os chamamentos de Martinho Lutero (1483‑1546),Ulrich Zwingli (1484‑1531) e Joäo Calvino (1509‑1564).

O luteranismo sustentava que Deus näo precisava de intermediários para alcançar os homens;repudiava o culto das imagens e dos santos,a genuflexäo,o sinal da cruz,o altar,o purgatório e,principalmente,admitia o lucro como graça divina.

Todos os pontos levantados pelos luteranos eram de fundamen­tal importância para a sustentaçäo dogmática cristä.

A resposta da alta hierarquia romana veio com a Contra Re­forma.Uma das armas utilizadas foi a renovaçäo interna da Igreja para fazer frente às mudanças socias em curso e manter a suprema­cia do poder do papa.

Grande parte dos instrumentos legais para combater o protes­tantismo nasceu no Concílio de Trento.A Igreja reafirmou a condenaçäo dos sequidores de Lutero como heréticos e o papa foi declarado como a suprema autoridade em matéria de fé.

O processo renovador imposto pelas pressôes sociais fez aprovar rapidamente,em 1540,o regulamento da Companhia de Jesus.O ideário da açäo catequética,proposto por Loyola e seus companhei­ros,foi integrado no conjunto das decisöes políticas emanadas de Roma.

Ao contrário das outras ordens religiosas, fundadas no século XVI,optantes do enclausuramento protegido dos mosteiros,os jesuítas foram mandados para as novas terras recém‑descobertas das Américas,da Åsia e da Åfrica.Passaram a ser denominados “novum militantis Ecclesiae Subsidium”.

A estratégia dos militantes eclesiásticos valorizou especificamente duas formas de comunicaçäo para seduzir as sociedades conquistadas: a medicina e o ensino.

Os seguidores de Inácio de Loyola enviados para o Brasil,partiram de Portugal,no dia 29 de março de 1544,junto com Men de Sá.O superior do grupo,Manoel da Nóbrega, estava acompan­hado dos padres Joäo Azpilcueta (linguísta),Leonardo Nunes (sem profissäo definida),Antônio Pires (arquiteto),Diogo Jacome (carpinteiro) e Vicente Rodrigues (mestre‑escola).

Alguns meses após a chegada,fundaram os primeiros colégios do Brasil Colônia,na cidade de Salvador (Bahia) e Säo Vicente (Säo Paulo).

O grande impulso da açäo inaciana foi dado pelo padre José de Anchieta.Com admirável conhecimento filosófico‑teológico,tra­çou as diretrizes ideológicas dos jesuítas no Brasil,impos uma medicina a serviço da catequese e elaborou a primeira gramática tupí‑guarani,de valor fundamental para a substituiçäo linguística.

A Companhia se multiplicou no Brasil Colônia.Atuou em difer­entes regiöes,mas foi no Sul que os objetivos foram alcançados em grande escala.

Os padres aglutinaram as diferentes naçöes indígenas guaranís nas aldeias (pueblos) e,com a disciplina férrea,introdu­ziram o modo de produçäo despótico‑comunitário.Em pouco tempo transformaram em pó a herança cultural sedimentada ao longo de milhares de anos.

Alguns grupos de índios resistiram fugindo para áreas de difícil acesso.Outros,liderados pelos grandes pajés, empreenderam movimentos messiânicos,reunindo milhares de pessoas,em direçâo ao Leste,na busca da TERRA SEM MAL,onde encontrariam a paz da vida eterna e abundância de alimentos.

Os estudos mais recentes do universo mítico guaraní revelam que as migraçôes nâo estavam contidas só na compreensâo espacial‑material da recompensa.Na realidade,a mola propulsora era o anseio coletivo de mudanças tâo radicais que impunham,inclusive, a auto‑dissoluçâo da sociedade anterior.Para alcançar a TERRA SEM MAL nâo bastava querer;viajar significavaa aceitar a proposta.Os silvícolas sabiam que a morte da cultura era o preço a pagar pela vontade de compartilhar da intimidade dos deuses.

Os cainguás (= gente da floresta),como eram denominados os que conseguiram escapar,retardaram a destruiçâo vinda com os brancos.Os apapocuvas,descendentes dos cainguás,foram estudados por Nimuendaju no início do século.Naquela época eram pouco mais de três mil indivíduos,hoje estâo praticamente extintos.

A área da influência jesuítica,distribuídas em terras do Brasil,Argentina,Uruguai e Paraguai,chegou a reunir,no século XVIII,mais de cento e trinta mil índios.Só o padre Antonio Muniz Montoya,o mais conhecido evangelista dos guaranís,fundou onze reduçöes em sete anos.O aldeiamento forçado permaneceu até 1759,quando os jesuítas foram expulsos do Brasil pelo Marques de Pombal.

Os sacerdotes perceberam que a principal barreira à conversâo era o pajé.O caminho encontrado,no primeiro momento,foi a obrigatoriedade para que todas as aldeias dispusessem de enfer­marias para tratar os índios doentes; além de servirem também como unidades de repressäo mítica e simbólica.

Pelo estudo das cartas enviadas aos provinciais europeus,foi possível levantar parte da nosologia brasileiras nos dois primei­ros séculos da colonizaçäo.As epidemias de varíola,sarampo,sífi­lis,tuberculose,gastroenterites e outras doenças infecciosas, trazidas pelo elemento colonizador, foram descritas com detalhes.      A correspondência deixa transparente o empenho dos jesuítas para destruir o principal agente de coesäo da sociedade indígena: O PAJÉ.

No livro “Conquista espiritual”,Montoya colocou a questäo no mesmo nível da luta entre a divindade e a anti‑divindade.O verda­deiro Deus era o inspirador dos padres‑curadores e os pajés eram o símbolo vivo do Satanás.

O feiticeiro,dono do conhecimento historicamente acumula­do,näo estava preparado para enfrentar as novas enfermidades trazidas pelo europeu.A impotência em face ao grande número de mortes causadas pelas epidemias foi suficiente para enfraquecê‑lo.

Os padres‑curadores,mais de duzentos entre os séculos XVI e XVII,ocuparam os espaços surgidos com a desmoralizaçäo do pajé e reproduziram a prática médica hipocrático‑galênica,em voga na Europa setecentista,das sangrias e vomitórios.

A uso da medicina como instumento de conquista está transpa­rente nos relatos do padre José de Anchieta:

Já näo ousas agora servir‑te de teus artifícios      perverso feiticeiro,entre povos que seguem

     a doutrina de Cristo: já näo podes com mäos mentirosas

     esfregar membros doentes,nem,com lábios imundos

     chupar as partes do corpo que os frios terríveis

     enregelam,nem as vísceras que ardem de febre…

     Lobos raivosos e traiçoeiros.Se te prender algum dia

     a mäo dos guardas,gemerás em vingadora fogueira

     Ou pagarás em sujo cárcere o merecido castigo

Os poucos guaranís sobreviventes na serra da Juréia (talvez remanescentes dos que migraram na busca da TERRA SEM MAL),a 150 quilômetros de Säo Paulo,conseguiram no mesmo ano dos festejos da Companhia de Jesus,o reconhecimento legal da demarcaçäo da reser­va com exíguo mil hectares (Jornal do Brasil,04.02.90).O velho cacique Antonio Branco,com 90 anos,é a testemunha viva da longa agonia proprocionada,em grande parte,pela catequese de conquista: “Passei a vida inteira correndo atrás da legalizaçäo dessa terra.”


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