MILAGRE COMO PRÅTICA DE CURA: O INVISÍVEL SIMPLIFICADO

 

 

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

 

“No mundo dos seres vivos como em toda a parte,trata‑se sempre de EXPLICAR O VISíVEL COMPLEXO,PELO INVISíVEL SIMPLES.Mas nos seres como nas coisas,é uma invisibilidade em encaixes.Näo há uma só organizaçäo dos seres vivos,e sim uma série de organizaçöes embutidas umas nas outras como bonecas russas.Atrás de cada uma se esconde a outra.”

 

François Jacob

 

 

Constitui um equívoco essencial associar o milagre somente ao cristianismo.A convivência do homem crente com os fatos ex­traordinários ‑ OS MILAGRES ‑ materializados a partir  da Divin­dade é,na realidade,uma história de longa duraçäo.

Os cultos terapêuticos dos povos que habitaram as terras férteis das margens do Indo,do Nilo e da Mesopotâmia eram fortes e muito utilizados.Naquelas culturas,algumas com mais de 6.000 anos de existência,a doença estava invariavelmente ligada ao pecado e à açäo da anti‑Divindade.

A cura,sempre de natureza religiosa,era obtida quando o curador identificava o anti‑Deus antes de expulsá‑lo do corpo doente ou quando o enfermo,depois de confessar o agravo cometido,pagava certos tributos nos rituais de purificaçäo.

O agente da cura era também sacerdote e atuava como represen­tante do sagrado.Os povos da antiguidade estavam repletos de entidades taumatúrgicas.Entre as mais famosas figuram o deus Mitra celebrado em muitos templos espalhados no Egito e Asclé­pio,adorado em uma das mais belas edificaçöes do mundo grego antigo,em Epidauro,na ilha de Cós.Em ambos os casos,durante cen­tenas de anos,muitos peregrinos se dirigiram a estes santuá­rios à procura da cura milagrosa.

É no Antigo Testamento (AT),notadamente no Pentateuco,que o milagre apareceu como SINAL, ligado à fé monoteísta, em contrapo­siçäo ao politeísmo dominante.

O fundamento da fé,para a liturgia judaica,näo é o simples milagre,mas sim a Criaçäo como a existência concreta e estrutura  da moral.Ela foi realizada acima de todas as leis da natureza,sendo o primeiro e o mais importante de todos os SINAIS.Assim Iahweh estabeleceu o rítmo das estaçöes ((Ge 8,22),o curso das estrelas (Sl 148,6),o movimento dos mares (Jó 38,10),as leis do céu (Jó 38,33) e da terra(Jr 33,25).

A herança do judaísmo observa duas tendências nainterpreta­çöes  dos milagres.A primeira admite a Bíblia cheia deles,devendo constituir fonte de reflexäo à pequenez do homem.A segunda está relacionada com as interpretaçöes místicas do judaísmo contidas no Zohar ( ou livro dos Esplendores,escrito em torno do século XII,na Espanha ).Nesta última,os rabinos näo aceitaram a necessi­dade do SINAL porque existe harmonia absoluta entre o Criador e a sua obra.

A tradiçäo semita também compreendeu a enfermidade como castigo pelas faltas cometidas contra a Lei (Ex 4,6) e a saúde ligada à intervençäo divina (Sl 38,2‑6).

Os primeiros padres da cristantade fizeram uma fantástica reelaboraçäo teória dos SINAIS do AT.Os milagres de Cristo,des­critos pelos quatro evangelistas,assumiram grande importância na apologética da nova religiäo.

O tomismo compreendeu a importância do milagre na fé como  um FATO EXTRAORDINÅRIO PRODUZIDO POR DEUS.Contudo os anjos bons e os Santos poderiam ser instrumento na promoçäo dos acontecimentos situados à margem das leis naturais.Por outro lado,distinguiu o milagre do prodígio.Este último,simples simulacro,näo era fruto do poder divino.

Estabelecendo o juízo de valor,THOMÅS DE AQUINO dividiu o milagre em: absolutos ou de primeira ordem e relativos ou de segunda ordem.Todavia,só reconheceu o primeiro como verdadeiro porque superando,em si mesmo,todas as concepçöes da natureza criada,só Deus seria o autor.O relativo,ao contrário poderia  ser determinado através das forças  do universo sensível ligadas à anti‑Divindade.

O milagre apologético,sempre de primeira ordem,é aquele que serve de louvor.Deve ser perceptível e confirmar a origem teísta da revelaçäo.Tem particular interesse o seu aspecto físico porque é observável nos corpos.Logo, a cura de uma doença,considerada fatal e irreversível,pode ser entendida como milagrosa e um SINAL de Deus.

A abordagem tomista foi duramente criticada por diversos filósofos.VOLTAIRE e RENAN argumentaram que sendo as leis natu­rais,criadas pela Divindade,absolutamente coerentes,é falso supor que possa existir qualquer açäo física contrária a elas.            SPINOSA,de maneira semelhante,recusou a existéncia do milagre apoiado na premissa de que a criaçäo näo tendo sido li­vre,mas feita pela necessidade da sua natureza transcendente,era impossível a intervençäo extraordinária para mudar o seu curso.

O golpe mais forte recebido pela compreensäo cristä do SINAL foi sustentado pelo  agnosticismo kantiano firmado contra o de­terminismo absoluto.De acordo com KANT,näo existem leis fixas e constantes porque a estabilidade provém exclusivamente do nosso aspecto subjetivo de conhecê‑las.É incognoscível porque näo temos como distinguir as formas variáveis e extraordinárias de agir da natureza.

A resistência refutando a natureza divina do SINAL contri­buiu,de certa forma,para o milagre perder o valor ontológico e argumento apologético,conservando somente o aspecto simbólico da fé.

Com o intuito de reforçar o conjunto do questionamento,pode­mos lembrar a imutabilidade das leis matemáticas regendo a essên­cia da coisa,expressando o modo de ser.Assim,em nenhuma hipóte­se,nem por milagre,o triângulo poderá deixar de ter os três angulos.

Por outro lado,se considerarmos a necessidade hipotética das leis para reger as relaçöes físicas entre as coisas,hoje compre­endidas a partir das três forças (gravitacional,eletromagnética e nuclear),os acontecimentos  situados fora delas estariam obri­gatoriamente contidos em outra manifestaçäo,ainda desconhecida,da natureza invisível.Assim,se um fogo näo queimar,um homem morto voltar à vida ou um enfermo incurável recuperar a saúde numa fraçäo de segundo podem estar somente evidenciando os aspectos incognoscíveis da matéria.

Baseado nesses pressupostos,entendemos que os mecanis­mos produtores da doença devem ser compreendidos como expressöes da vida em profundo dinamismo com a totalidade transformadora.O gradual conhecimento deles,processado à margem do espaço sagra­do,continua servindo de estímulo para continuar a caminhada para decompor a comlexidade  do invisível.

O homem crente,alimentado pela formidável herança historica­mente acumulada, continua buscando o milagre como prática de cura.As sociedades,amparadas por essa necessidade coletiva,orga­nizaram com competência o espaço sagrado das divindades taumatúr­gicas.

No Ocidente cristäo medieval,os santuários curadores de Compostela (Espanha) e Jerusalém viveram vários séculos de glória recebendo peregrinos de toda a cristandade.Na atualidade, os de Fátima,em Portugal,e de Lourdes,na França,säo os mais procura­dos.Mais recente,surgiu o de Medjugorje,na Iugoslávia.Os três sítios tem como expressäo de fé,justificando a santidade,a con­vicçäo dos fiéis na materializaçäo,circunstancial e imprevisí­vel,da Virgem Maria,a Mäe de Jesus.

Para evitar os excessos dos fiéis bem intencionados,foi criado,em 1882,uma comissäo formada de médicos e religiosos,para analisar a veracidade dos SINAIS ocorridos em Lourdes.Apesar das milhares de curas descritas pelos peregrinos,a igreja católica anunciou,recentemente,a ocorrência do 65  milagre (Folha de Säo Paulo,07.07.89 ).Trata‑se de uma jovem siciliana de 25 anos,por­tadora de uma forma incurável de câncer ósseo no joelho.Em 1976,depois de ela permanecer uma semana próxima do santuário,um ano depois,houve o completo desaparecimento da lesäo.

Existe uma complexa associaçäo entre o sentimento  de fé que envolve o peregrino  e a medicina popular vivenciada por ele com a forte influência da religiäo.No Brasil,nos estratos sociais privilegiados de tradiçäo cristä,säo mais enfocadas as procuras de Lourdes,Fatima e Medjugorje.Porém,existem outros locais de perigrinaçäo,como a  basílica de Aparecida,a estátua do Padre Cicero,os centros de umbanda,as igrejas protestantes e grupos kardecistas,todos recebendo um número muito maior de crentes,vir­tualmente agregados aos mesmos componentes de fé e religiosidade

Nos últimos anos,as igrejas fundamentalistas,ao utilizarem o milagre como prática de cura coletiva,conseguiram obter maior chamamento de conversäo e estäo ameaçando o catolicismo apostóli­co romano.

A perda do monopólio do milagre,como prática terapêutica institucionalizada,tem preocupado seriamente as autoridades acle­siásticas.O tema já foi abordado pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos,pela XX Assembléia do CELAN,em Säo José da Costa Rica,em março de 1985 e expressado claramente no Observatório Romano (Jornal Oficial do Vaticano),em 29 de junho de 1986: ” Numerosas deficiências ou insuficiências de adaptabilidade na vida da Igre­ja … podem tornar mais fácil o sucesso das seitas.”

A nossa análise aponta a certeza histórica de que a cura milagrosa excede a religiäo organizada.A fé que a forma e guar­da,ajusta a seduçäo na eficiência simbólica dos ritos envolvendo palavras,gestos e objetos  metamorfoseados na temporalidade dos processos de organizaçäo social.

Deste modo,é possível perceber o elo comum entre todos os milagres,considerados como SINAIS da Divindade,na simplificaçäo do invisível funcionando como instrumento legitimador do espaço sagrado.


 

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