NATAL: O MITO PRIMORDIAL

Prof.Dr.HC Joäo Bosco Botelho

 

            “Cada vez que a roda do tempo ‑ e especialmente a do tempo litúrgico ‑ traz de volta o ADVENTO,é sempre oportuno lembrar que esta expressäo significa A VINDA DE JESUS CRISTO.É essa vinda que o TEMPUS ADVENTUS quer comemorar,ao preparar,durante quatro semanas,a festa do Natal.”

                        Dom Lucas Moreira Neves,Cardeal Primaz do Brasil.

 

 

            A cultura material é,sem dúvida,muito mais transformável do que a mentalidade.

            Este pressuposto fica mais claro quando entendemos a estrei­ta dependência entre elas.A primeira,ligada ao conforto (aqui entendido como a fome e a sede saciadas e o abrigo contra as intempéries),tem relaçäo com a natureza,o homem e os produtos.A segunda,muito mais complexa é fruto do intrincado mecanismo neurobiológico,ainda desconhecido,da relaçäo entre o ser e  o objeto ‑ A IDÉIA.

            Após conhecer os fantásticos avanços da engenharia genética,näo temos como deixar de considerar a possibilidade das idéias,mais antigas e significativas,relacionados com a sobrevivência,localizadas na memória,tenham deixado marcas específicas no genoma  (gens controladores da herança genética) durante o processo evolutivo.

            Parece lógico supor que a força da atitude mental frente à matéria reside exatamente na característica de reprudutividade.Seria passada através das geraçöes,sofrendo a influência decisiva do sistema sócio‑cultural,de forma semelhante às qualidades somáticas.

            Assim poderíamos explicar as agruras do poder político para obter uma mudança revolucionária nas crenças e idéias religiosas.As tentativas conhecidas foram acompanhadas de oposiçäo do povo frente à autoridade contrária ao pensamento dominante.

            O desmoronamento,incrivelmente rápido,do comunismo no Leste europeu também mostrou,de modo insofismável,esta assertiva.Os ideólogos marxistas,após valorizarem exclusivamente o modo de produçäo e as lutas de classes,ficaram marcados pela dificuldade de passar das infraestruturas para as super‑estruturas.

            O arcebispo albanês Simon Jubani,encarcerado durante vinte e dois anos por ter desobedecido o ateísmo de Estado decretado pelo ex‑presidente Enver Hoxha,celebrou a primeira missa do seu país livre,na capela do cemitério da cidade de Shkoder,assistido por mais de cinco mil fiéis (Folha de Säo Paulo 17.11.90).Milhares de albaneses,libertos das amarras  implacáveis do patrulhamento ideológico,retornaram aos templos,antes transformados em viveiros de patos e räs,com a fé renovada e tornada pública pela segurança física.

            Aquele ato de fé evidenciou que a humanidade,ao longo da transformaçäo sócio‑cultural,tem realmente mantida acesa a chama dos rítmos cíclicos da natureza visível.

            Podemos imaginar o que representou para as pessoas que viveram em regiöes com inverno rigoroso,há milhares de anos atrás,o aparecimento do Sol resplandecente para aquecer os corpos e a terra.    

            A lenta mudança dos costumes,consolidada na luta pela procu­ra do nutriente,impulsionou o homem em direçäo da justa coerência entre o seu imaginário e as suas necessidades.

            Os acontecimentos seguidos à sedentarizaçäo dos caçadores‑coletores estäo contidos no mesmo contexto de memorizaçäo.O laço anterior com os outros animais foi substituído,pouco a pouco,pela nova intimidade com a terra cultivada.

            A ocra,pintada nos ossos descarnados como marca do sangue,simbolo da vida,achada em numerosos esqueletos pré‑históricos,foi deslocada pela semente e pelo esperma.A mäe‑terra,sulcada pelo arado e fertilizada pelo raios solares,era festejada do mesmo modo da mäe‑mulher,penetrada pelo pênis e germinada com o sémem.

            O alimento,indispensável à vida,sempre representou mais do que a coisa material; era a comunhäo do homem com a terra,produ­tora do päo,saciador da fome,e do vinho,fonte dos sonhos acalen­tados.

            As celebraçöes religiosas,como a missa cristä,milhares de anos depois continuam guardando um lugar de destaque às refeiçöes,onde o päo e o vinho,ambos filhos da mäe‑terra,estäo sempre presentes.

            Os incas do altiplano boliviano,sobreviventes de uma das mais brutais conquistas que o mundo conheceu,depois de quase quinhentos anos de humilhaçöes,continuam resistindo ao ­cristia­nismo e  rendendo graça à bondade da Pachamama,a imemorial mäe‑terra da cultura andina.

            Os estudos arqueológicos atestam,com larga margem de segurança,que esses símbolos faziam parte da cultura dos povos agrários desde as suas origens.

            É evidente que as concepçöes metafísicas do mundo arcáico ágrafo nunca foram formuladas em linguagem teórica.Contudo,o mito e o rito,expressando o elo entre os sistemas de valores,foram reproduzidos através dos séculos com poucas mudanças.

            É por esta razäo que as mentalidades refletem continua­mente,através da memória historicamente acumulada,as açöes já vividas pelo outro.A vida é,em grande parte,a repetiçäo dos atos passados.

            A ciência das religiöes,unida ao saber antropológico,conso­lidada nos fins do século XIX,mostrou que o ritual precede e enraíza uma das mais fantásticas elaboraçöes da idéia ‑ O MITO.

            A concepçäo  mítica da realidade parece ter funçäo ­seme­lhante aos instintos do animal homem e reflete o equilíbrio da comunidade.Todos os historiadores admitem o corpo mítico como uma história global de longa duraçäo.

            Desta forma é possível compreender porque a teologia tem na sua cosmovisäo certos ritos,mitos e símbolos oriundos da origem comum.

            Infelizmente,nos poucos anos em que o ser humano consegue viver,só muito raramente existe o testemunho da passagem do banal em mito.Este encontra ressonância na medida   em que o evento adquire utilidade.

            Existe na cidade de Newgrange,na Irlanda,um túmulo que serve de orientaçäo climática para os agricultores da regiäo.Na década de 60,os astrofísicos da Universidade de Dublin,comprovaram que o local,construído há mais de cinco mil anos,é o mais antigo ­ali­nhamento astronômico conhecido (Jornal do Brasil 08.02.89).

            A sepultura pré‑histórica foi construída por um povo agrário desconhecido.A característica fundamental do bloco lítico está na abertura de vinte centímetros existente no teto,por onde,no solstício do inverno,a luz natural penetra e chega exatamente onde deveria estar repousando o morto celebrado. 

            É particularmente expressiva a festa  do nascimento do Sol Invicto (Dies Solis Invicti Natalis),comemorada na Roma antiga junto com a saturnália.Quando o astro parecia dirigir‑se para o Norte,os trabalhos sofriam interrupçäo,as casas eram decoradas com árvores,os parentes trocavam presentes e intensificado o culto ao deus asiático Mitra (Natalis Solis).

             As religiöes monoteístas e politeístas mantiveram um ­su­bstrato comum a esse respeito.O vedismo (Bahagavad‑Gita 15,6) tem ensinamentos equivalentes aos da tradiçäo judaico‑cristä (Is 40,10‑11 e Jo 21,15‑17).

            O cordeiro e o Sol säo descritos nos livros sagrados com a clara interdependência das duas fases da humanizaçäo.O primeiro,oriundo da primitiva relaçäo do homem com os outros animais,representa a unidade do rebanho domável da divindade dominante e o segundo,herança do sedentarismo,é a condiçäo insubstituível da sobrevivência.

            Existem várias evidências de que o cristianismo,nos primei­tos tempos,foi realmente confundido com o culto solar,tanto na elite como no povo iletrado.

            Os maniqueos afirmavam que Cristo era o próprio Sol.Dois dos mais importantes ideólogos cristäos,Cirilo de Jerusalém e Teodo­ro,fizeram a mesma associaçäo.

            A fé religiosa näo é expontânea na sua manifestaçäo; está atada à heterogenicidade sócio‑cultural.Esta premissa justifica,por si mesma,o cuidado dos sacerdotes com o comporta­mento dos fiés.

            A estratégia de conversäo está embutida na seduçäo ­propor­cionada pelo advento,isto é,a chegada da divindade como marco do novo tempo de mudança.

            Os doutores da Igreja Católica,durante vários séculos,fica­ram preocupados com a data do nascimento  de Jesus Cristo.Em 194,Clemente de Alexandria propôs o 19 de novembro do ano 3 a.C.,enquanto Epifânio lutou pelo dia 30 de maio.Na realidade,näo existe qualquer comprovaçäo de que Cristo tenha nascido neste ou naquele dia.  

            Foi Dionísio,em 525,quem colocou um ponto final na questäo fixando o advento no dia 25 de dezembro de 754 depois da fundaçäo de Roma (ab urbe condita).

            A rendiçäo da alta hierarquia romana frente ao símbolismo do solstício do inverno nas massas populares,gerou protesto entre os católicos armênios e puritanos inglêses.Ambos afirmaram ser heresia imperdoável associar o culto de Jesus à adoraçäo pagä.

            A querela foi gradativamente vencida porque näo existe lugar para a historicidade factual na eclosäo do pensamento religioso.A metamorfose dos simbólos,amparada pelo processo social transfor­mador,assegura a perenidade da crença ao transformar o invisível em visível com nova roupagem.      A humanidade,inexoravelmente marcada pelo passado remoto,sempre encontrará nas relaçöes sociais renovadas o espaço para comemorar o mito primordial ‑ O NATAL ‑ oriundo da marca essencial da natureza observável na memória coletiva,como mensa­gem de bem‑aventurança. 

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