II. INSTRUMENTOS CURADORES DAS MSGs NEO-CORTICAIS

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

  1. INSTRUMENTOS CURADORES DAS MSGs NEOCORTICAIS
  2. LINGUAGEM

  A neurofisiologia continua com muitas dúvidas de   como ocorreu, no ST, processo de adaptação que culminou na guarda e na reprodução do conhecimento historicamente acumulado por meio da linguagem.

Os obstáculos continuam sendo os mesmos que envolvem o neocórtex: estabelecer as correlações entre a forma e a função, no sistema nervoso central, em níveis macroscópicos (órgão), microscópico (célula), ultramicroscópico (molécula), atômico e subatômico.

Dito de outro modo, se a observação empírica é suficiente para comprovar que o ser humano é capaz de falar e escrever, torna‑se obrigatório existirem áreas anátomo‑funcionais, nos níveis acima mencionados, responsáveis por aquelas ações.

 A convicção de um evoluir temporal impõe, de modo contundente, o estudo das mudanças corporais estendidas no tempo. Assim, sob a guarda da anatomia, no nível macroscópico, e da fisiologia do sistema nervoso central (SNC) humano, é possível ensaiar, através da paleopatologia, com razoável margem de acerto, a análise das impressões determinadas pelo cérebro dos hominídeos, na face interna dos crânios fósseis.

As transformações sofridas na forma do sistema nervoso central (SNC), há milhares de anos, e, consequentemente, o modo como o órgão se mantinha, em contato com os ossos do crânio, estão, sem qualquer dúvida, relacionadas, também, com a atual capacidade de falar e de escrever.

Alguns antropólogos15 afirmam que as moldagens endocranianas da espécie Homo eretos, evidenciam, na superfície cortical, marcas das áreas identificadas, hoje, como responsáveis pela linguagem falada. Nesse sentido, é razoável pensar que esse antepassado humanoide já possuísse algum tipo de linguagem oral.

Os atos de falar e de escrever estão unidos em complexa ponte, envolvendo a maior parte do SNC com a vida de relação, principalmente certos segmentos do córtex16,17, identificados com a capacidade de imaginar e representar a ficção, isto é, a coisa não percebida na materialidade espacial.

 Um dos principais alicerces da ponte entre o passado muito antigo, contido no cérebro primitivo, oriundo da filogenia comum, e o cérebro atual, resultante do processo evolutivo é a insubstituível polaridade entre a dor e o prazer1. Deste modo, a linguagem é o principal instrumento de comunicação para que o ser possa instrumentar a fuga da dor ou a aproximação do prazer.

 Até hoje, não foi possível separar a linguagem emocional (choro, riso, gestos, postura corporal, a mímica do prazer e da dor, o olhar, etc.), com origem, predominantemente, límpida, da linguagem voluntária, cuidada no vocabulário, armazenado no neocórtex.

A retirada cirúrgica bilateral da parte anterior dos lobos temporais, em macacos Réus, lesando hipocampo, giro parahipocampal e corpo amigdaloide, causou mudança na linguagem, já que alterava, definitivamente, as emoções:

  1. A agressividade foi substituída pela passividade;
  2. Passaram a comer alimentos antes recusados;
  3. Incapacidade de reconhecer objetos, como ferro em brasa, e outros animais, como escorpiões e cobras, antes, determinantes de dor física e medo;
  4. Aumento da atividade oral levando todos os objetos à boca, mesmo aqueles que poderiam causar a morte;
  5. Aumento desordenado da atividade sexual, levando os animais a tentarem o ato sexual com parceiros de outras espécies e a de se masturbarem continuamente.

Logo, a linguagem e a emoção estão atadas como partes de um todo muito mais complexo.

Fora da conhecida conjunção genética, sem que saibamos por quê, a lateralização funcional dos hemisférios cerebrais indica o esquerdo, nos indivíduos destros, como o predominante na linguagem e no controle da atividade gestual proposital.

O hemisfério cerebral direito é o responsável pela apreensão viso espacial, pelas atividades musicais e pelo reconhecimento da forma fisionômica. Assim, identifica e classifica, através da análise da forma, sem que o nome do objeto, na linguagem oral, ou a palavra, na linguagem escrita, necessitem ser expressos.

Nos primatas, a vocalização organiza‑se na face interna do lobo frontal. No rastro da ontogênese, esse controle se torna, gradualmente, mais complexo e é possível, no homem, determinar uma área especializada, na convexidade do córtex frontal, mantendo conexões sinápticas, no sentido crânio‑caudal, no nível rinencefálico, reticular peduncular, bulbo e órgãos fonadores.

Graças a essa interligação, entre outras determinantes, os humanos são capazes de reagir, seletivamente, ao sinal emitido pelos semelhantes e reproduzir, pela imitação, a mensagem ouvida.

Como sequência, as linguagens oral e escrita guardam, nas origens, a profunda marca da vida afetiva, onde as emoções sentidas ou friccionadas são armazenadas numa memória, infelizmente escondida nas dimensões molecular e atômico‑corpuscular.

Um dos produtos finais da interligação das estruturas cerebrais com a vida vivida é reproduzida na consciência de si mesmo, impondo aos homens a incrível condição de depositário e herdeiro das gerações anteriores, transmitida inicialmente pela oralidade e, depois, seguida pela linguagem escrita.

A maior parte dos pesquisadores concordam em que a linguagem, para se manifestar, estabelece estreitas correlações sinápticas em todo o encéfalo, passando no neocórtex associativo, com o objetivo de manter ativa a percepção do circundando e a expressão das emoções vividas na interpretação do ato apreendido.

Na dimensão macroscópica (órgão), os pontos cerebrais em torno dos quais se organiza a linguagem são a área de Broca, a área motora responsável pelo controle fonético da expressão, e a zona de Herschel, de natureza receptiva, onde a mensagem é decodificada.

Os dois hemisférios cerebrais não participam, igualmente, desse complicado mecanismo neurofisiológico. A dominância do esquerdo, como nas atividades manuais, é programado, geneticamente. Por outro lado, sabe‑se que o hemisfério cerebral direito não é desprovido de função linguística. Apesar de não ter acesso à palavra, é capaz de manter a informação em torno de frases curtas e pode decifrar a linguagem escrita.

Sem que possamos estabelecer as causas, o hemisfério direito, mesmo anatômico e funcionalmente menos adaptado para exercer o domínio da linguagem, poderá substituir o esquerdo, no caso de uma lesão irreversível, antes da idade de cinco anos.

Talvez essa similitude escondida na forma e trazida à tona na necessidade da função suprimida por causas não congênitas, esteja relacionada com certos aspectos moduladores do discurso que interagem os dois hemisférios cerebrais, traduzidos na linguagem escrita, com os advérbios e as locuções exprimindo reserva e acentuação.

Do mesmo modo, é razoável supor, mesmo não sendo ainda possível realizar demonstração em laboratório, que o processo evolutivo determinou também modificações fundamentais a nível celular e molecular capazes de ajustar as funções cerebrais às necessidades sociais.

Essa afirmativa é incisiva e incontestável em outras partes do corpo. Por exemplo, a diminuição gradativa da arcada dentária em função do menor uso do esforço mastigatório. A partir do uso do fogo domado (Leroi-Gourhan, 1981; Leroi-Gourhan, 1987), ocorreu um conjunto de fatores, incluindo o cozimento dos alimentos, tornando‑os mais macios, ocasionando a redução da potência da musculatura mastigatória e, em consequência, do tamanho e número de dentes reptos, na maturidade. Essa seria uma explicação dos terceiros molares permanecerem inclusos.

É inconcebível pensar no ato de escrever ligado somente às trocas metabólicas físico‑químicas, no nível biológico‑molecular, ou na exclusiva origem social. Força mental que impulsiona a repetição da linguagem moldando a ação do ST é muito forte para ser exclusivamente social.

O conjunto das reações neuroquímicas, ligando o ST ao objeto, só é consolidado nas mentalidades   quando for elaborado em estreita consonância com as necessidades pessoais e coletivas, requeridas no processo societário.

  A vida de relação, registrada no ato de escrever, está sob o constante crivo neurológico‑funcional. Não existe qualquer dúvida das conjunções anatômicas e funcionais, unindo como gêmeos xifópagos, a forma e a função, mesmo que até hoje não estejam bem explicadas.

Entretanto, estão identificados, pela cirurgia experimental, alguns centros neurológicos específicos, relacionados com o comportamento emocional. Quando estimulados artificialmente por corrente elétrica, nos animais de laboratório, são capazes de os impelir às expressões de sono, agressividade e medo ou fazer o animal assumir posição de cópula ou de choro.

Há de existir algum tipo de coerência funcional a nível celular, molecular e em dimensões ainda menores, na conjunção massa-energia, no interior do átomo, ligando o ST ao objeto, transcrito no ato de falar e escrever. Logo, a capacidade individual para sentir e expressar as emoções, nas linguagens, nasceriam como consequência das MSGs.

Vez por outra, o lento desvendar avança, apoiado no estudo dos achados acidentais. Foram descritos dois casos clínicos, na literatura especializada, relacionados com os núcleos cerebrais da linguagem, atendidos por pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e do Hospital Maggiore, Bolonha, na Itália.

No primeiro, um homem com 62 anos, depois de sofrer um derrame cerebral, não conseguiu mais escrever as vogais. As palavras eram escritas em perfeita simetria com o pensamento expresso oralmente, porém só com as consoantes. O paciente não conseguia simbolizar as cinco letras. Não resta mais dúvida de que a escolha dos caracteres, para compor a linguagem escrita, está contida num segmento específico do cérebro.

O segundo relato diz respeito ao paciente do sexo masculino, 32 anos, norte‑americano, que depois de ser acometido por acidente vascular cerebral, perdeu a familiaridade com o inglês, sua língua materna, e passou a acrescentar vogais às palavras, resultando num sotaque escandinavo. A cura do distúrbio deu‑se na medida da recuperação da área cerebral danificada pela isquemia.

É precisamente nessa convergência, entre o físico presente na estrutura celular e o crivo do sócio genético, dando forma à função, que ocorre a maravilhosa e intrigante materialidade da ideia invisível, capaz de nominar, desvendar, criar e transformar o objeto.

Por essa razão não existe discurso sem a linguagem impregnada do saber acumulado historicamente (Prigogine e Sengés, 1984; Skirbekk, 1987). No contexto da multidisciplinaridade, as gramáticas são, na essência, ideológicas, porque expressam um tipo de posse do real e as características pessoais que marcam, profundamente, nos corpos, os prazeres e as dores sentidos e imaginados.

Por essa razão, a busca da verdade opera‑se no conflito entre o objetivo e o subjetivo (de certa forma, confundindo‑se com o sagrado e o profano), refletindo o estado da coisa numa determinada temporalidade. A variante do tempo impõe‑se, por estar contida na essência que torna perceptível a forma e a função do ser vivente.

O objetivo primário da ação neurológico‑motora (a ideia seguida do movimento do corpo), motivada pela mensagem atávica‑social, responde, por si mesmo, ao mais fundamental sentimento mantenedor da sobrevivência: a cooperação unindo os grupos para fugir à dor e desfrutar do maior prazer. Repetindo o antes posto: trata-se da crítica da proteção pura.

Todos os seres vivos, sem exceção, desejam o abrigo protetor. Não se trata, exclusivamente, do viver. O morrer pode representar, em certos instantes, o ato cooperativo dominante e, nesse caso, a morte representará a proteção pura.

O anseio para compreender as diferenças entre o constatado pelos sentidos (objetivo) e o imaginado extra‑sensorial (subjetivo), propiciou interdependência muito forte entre elas. Em certas etapas do processo, é impossível saber onde começa uma e termina a outra.

Não existiram partidas independentes. A realidade, vivida pelos humanos com os outros animais, dividindo o meio ambiente comum, contribuiu para fortalecer profundas imitações simbólicas, presentes como marcas profundas do tempo passado, na consciência coletiva.

Muitos inventos e expressões estéticas, no passado e no presente, projetadas pelo aprimoramento da técnica, acabam sendo facilmente identificadas no meio comum partilhado.

O ímpeto para reproduzir os elementos visíveis, tirando deles a utilidade para sustentar o conforto influenciou as primeiras interações entre o pensamento, a linguagem, o ato e o social.

O fato dos nossos ancestrais longínquos terem aprimorado as cópias do perceptível na natureza circundante (Rigaud, 1990), animais e coisas, nos abrigos das cavernas, há milhares de anos, representa mais uma certeza da profunda coerência entre a forma e a função no corpo.

  1. SER-TEMPO (ST) E O SER-NÃO-TEMPO (SnT)

No intervalo de tempo entre os dois pontos polares da consciência do tempo, o início e o fim da vida, o homem convive com a certeza da doença e da morte.

Nas poucas dezenas de anos em que as pessoas conseguem viver, gastam a terça parte dormindo e o restante, na procura incessante do conforto, da saúde e da justificativa mais coerente da imaginável vida após a morte.

Depois de estabelecer, ao longo de milhares de anos, as relações entre a DP e o prazer, a saúde e a doença e a vida e a morte, a espécie Homo desenvolveu e acumulou, historicamente, conhecimentos objetivando vencer a DP, aumentar o prazer e prolongar o tempo de vida.

A grandeza biológica das MSGs   humana sobre a de todas as outras espécies se completa com a idealização do ser-não-tempo (SnT) e a consequente esperança do renascimento após a morte.

Não se trata, absolutamente, de demonstrar neste ensaio teórico, o real ou o falso do SnT. Ao contrário, estes pressupostos pouco importam. O essencial repousa na concretude da ideia, transformando-a em realidade vivida e sentida.

A busca da imortalidade atada à vontade dos SnT é tão antiga quanto os registros paleou-antropológicos que chegaram dos nossos ancestrais mais distantes. Pode ter sido a responsável pelo aparecimento da especialização social que deu origem a procura sistematizada do conforto físico e da saúde e também forneceu as bases teóricas da prática médica como nós a entendemos hoje, isto é, onde predomina a suposição de que a cura está, intrinsecamente, dependente da vontade de um ou mais SnT dominantes em determinado grupo social.

Se a estrutura básica da sobrevivência de todas as espécies e, em especial, da Homo, está contida na rejeição ao sofrimento e a certeza da existência do SnT ou de qualquer outra imagem simbólica que o substitua, como a do líder carismático, oferece um caminho na busca do prazer, não há porque duvidar de que as complicadas relações com os SnT estejam contidas na mesma função sócio biológica: fugir da dor.

A crença no ser imortal – SnT – gerou a dualidade matéria-espírito para transpor a inexorabilidade da putrefação do corpo desmemoriado.

O SnT de natureza intemporal em si mesmo, como ficção, prolonga até o infinito a vida das pessoas queridas, oferece sentido coerente ao renascimento e serve de elo entre o visível e o invisível, rejeitando a morte.

Por outro lado, o ser-tempo (ST) amarrado à finitude da vida, utilizando o SnT como parte instrumental da fuga permanente da DP, estabeleceu dois nexos concretas como símbolos da garantia da vida, na comunicação explícita com os SnT: o sangue que coagula e a terra cultivável.

Ao invocarem o sangue coagulável que sai do corpo vivo como garantia da vida, traduzem na vida de relação, as MSGs que marcaram as primitivas relações com os outros animais.  Ao contrário, o menstruo incoagulável, sempre representou a anti-vida e, por essa razão, subentende a impureza ou a contaminação.

O gradativo sedentarismo, a partir do Neolítico, estabeleceu outras MSGs às já existentes e ligou a reprodução sexuada à fertilidade da terra.

Os dois artifícios de linguagem que o ST tem utilizado para comunicar-se com os SnT, o sangue e a terra, servem como pontos de apoio para superar o medo da morte e da doença, admirar o intocável pelas mãos, especular o invisível, acumular e reproduzir os saberes empurrando as próprias fronteiras do conhecimento.

Como o pensamento está, sem dúvida alguma, dependente da natureza circundada, do social e da História, os homens e as mulheres têm grande dificuldade para articular a linguagem fora do conhecimento patrocinado pelas MSGs.    Deste modo, os SnT (deuses, duendes, demônios, almas, espíritos), mesmo recheados de variações, são vistos e sentidos com cabeças, braços e pernas.

As evidências apontam para supor que os SnT foram formados à semelhança dos corpos visíveis dos ST, desta forma, dotados de comunicação, movimento, pureza e impurezas, ordem e desordem.

É impossível imaginar a existência do ST fora da natureza, da História, do social e da herança genética. O homem e a mulher estão há muito, muito tempo, atados ao conjunto gregário, augurando o ideal deslocado, pela força da ficção, para o SnT. Nunca deixaram de amar e sofrer, de ligar a reprodução sexuada à fertilidade da terra, olhar e admirar o desconhecido, dar nomes à natureza visível, especular o invisível, acumular e reproduzir saberes.

O cuidado com a saúde e a consciência dos limites da cura podem ter começado em qualquer ponto da escala genealógica e certamente se iniciou na procura do conforto físico. A retirada de espinhos e parasitas da pele em forma individual ou coletivamente com a ajuda de outros membros da comunidade foi a primeira forma de assistência prestada nos nossos ancestrais. Esta assimilação da conduta social foi fundamental para o desenvolvimento e sobrevivência da espécie.

Os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, com 97% de semelhança genética, são capazes de se tratarem mutuamente lambendo pequenas feridas da pele, retirando parasitas e espinhos que penetram acidentalmente no corpo. Não se trata de simples catação. É indício de verdadeira assistência à saúde, porque envolve atividade consciente e dirigida a um determinado ponto onde está ocorrendo desconforto físico.

A partir   da consciência do tempo no ST, reveladora da impotência frente a ocorrência das doenças que levavam à morte, multiplicaram-se as relações-médico-míticas (RMM). O ponto de convergência deste caminho que moldou o pensamento criativo do homem como artifícios para fugir do sofrimento imposto pelos limites da cura, foi o fantástico número dos SnT com poderes de curar e ressuscitar que a História tem registrado.

Desta forma, sob o ponto de vista histórico, é impossível dissociar a Medicina dos SnT e das RMM.

 Os milhares de deidades, espalhadas nos quatro cantos do mundo, foram substituídas, nos países cristianizados, pelos santos que operam milagres capazes de modificar a relação DP e prazer, vida e morte e saúde e doença.

Essas figuras humanas e míticas continuam carregando com elas uma capacidade intrínseca capaz de ressuscitar certos mortos e a cura de alguns doentes. As doenças escolhidas foram sempre as que determinavam impacto nas relações sociais. Já foram lepra, a loucura, a sífilis e a tuberculose. No momento, é a AIDS e os canceres.

Nas intrincadas relações que o homem desenvolveu com os medos da dor e da morte, sempre as fez porque desconhecia a etiologia e o tratamento para evitar muitas dores e muitas mortes. A impotência humana foi buscar no transcendente a rejeição ao desconhecido.

O processo evolutivo ao fixar nas MSGs a busca das divindades como um do mecanismo de fuga da dor, impôs a grandeza biológica da espécie Homo sobre todas as outras. Com este objetivo e sobre ele, o ST transferiu o impossível das relações para a unicidade do SnT antropomórfico, com poder sobre-humano capaz de resolver todas as aflições da sobrevivência.

A dificuldade, quase intransponível, de se alcançar mais explicações fora da frieza dos registros desenterrados, reside no fato de que as crenças e as ideias não são fossilizáveis.        Quando a arqueologia escava um túmulo e junto com a paleontologia começa a estudar o esqueleto e os utensílios encontrados, farão importantes conclusões de muitos aspectos relevantes que ajudarão a compreender o grupo social do morto, porém a maior parte dos valores e pensamentos dele continuarão perdidos em mar de conjecturas. Essas dificuldades são proporcionalmente maiores na medida que recuamos no tempo.

Contudo, a conquista do fogo e as consciências do tempo finito, ligada ao ST, e do tempo infinito, unida ao SnT, assinalaram a separação definitiva dos nossos ancestrais dos seus antecessores

A mais antiga comprovação da utilização do fogo data de mais ou menos 600.000 anos. Os usos racionais do fogo aliado com a busca pelo conforto físico também contribuíram decisivamente para a sobrevivência dos nossos ancestrais. O calor, vindo do sol ou do fogo cultivado, está profundamente marcado nas MSGs como sinônimo de vida e prazer.

A associação simbólica do Sol como o mais importante SnT é tão antiga quanto que se perde no tempo.

Existem muitos indicativos sugerindo o Sol ou o elemento simbólico solar como o principal SnT desde épocas imemoriais. O conhecimento historicamente acumulado evidenciou, precocemente, a importância da presença desse astro no ritmo da vida e da morte. A linguagem, de modo semelhante, também orienta na mesma direção: a palavra deus deriva da raiz diva, que em sânscrito significa o luminoso.

Na Bíblia, existem trinta e cinco referências explícitas sobre os poderes do Sol (Bíblia de Referência, 1992) abordando muitos aspectos da vida social.

Da raiz diva, derivam quase todos os nomes dos SnT dos povos europeus: deus grego, diva lituano, dia irlandês, deu francês, do italiano, dois espanhóis e outros.

A mitologia abriga outros indícios da estreita participação do Sol como o SnT fundamental. O mito hindu da Trindade composto de Savistri, Agni e Vayú identifica, respectivamente, o Sol, o fogo e o ar. O ofertório cerimonial do pão e do vinho faz-se ao fogo sagrado, unindo o fogo como sacrificador e sacrificado numa só entidade. A oferente e os fiéis recebiam as dádivas da vida, o pão e o vinho, como instrumentos de Agni.

A interligação entre os três elementos simbólicos é singular na medida em que um dos ritos védicos, permanece celebrando o nascimento de Agni no solstício do inverno, em torno de 15 de dezembro.

Chrisna, Mitra, Oro, Apolo e Adonis estão entre os SnT redentores que nasceram no solstício do inverno, em torno de 25 de dezembro, quando o Sol renasce no horizonte.

Existem muitos registros históricos que identificam Mitra como imagem simbólica do Sol. No primeiro século, em Roma, uma grande parte da população e do núcleo de poder adoravam Mitra. Só assim é possível explicar a inscrição latina Deo Soli invicto Mithrac mancando muitos aspectos da vida social romana.

A presença de Mitra era feita por meio de um disco solar rodeando a cabeça de determinado personagem.  Talvez tenha sido umas das razões pela qual, em determinadas épocas da cristianização da Europa, os teólogos e padres firmaram um esforço concentrado para combater Mitra e substituí-lo pelos símbolos cristãos. Contudo, restaram resíduos muito fortes que continuam apontando para as heranças das MSGs na organização do cristianismo (Bossi, s.d.):

  1. O Deus nascido de uma virgem no solstício do inverno e ressuscitado na Páscoa, equinócio da Primavera;
  2. O cortejo dos doze apóstolos está consoante com as religiões heliostáticas. Os egípcios, os gregos e os persas e os romanos possuíam doze grandes deuses;
  3. A defesa de Tertuliano aos cristãos acusados de cultuarem o Sol;
  4. O primeiro dia da semana, o domingo, é em homenagem ao Sol;
  5. A data da comemoração da Páscoa varia com o calendário solar.

Por ser intocável e inalcançável, mas ao mesmo tempo indispensável à vida, a identificação do Sol como o SnT, na espécie Homo, como uma alternativa para a fuga da dor, tocou o genoma e estabeleceu nova sequência específica nas MSGs.

O passo seguinte, ocorrido num tempo perdido na herança filogenética, foi a mudança na forma e na função do sistema nervoso. Os novos circuitos específicos, na rede neurônica do neocórtex, passaram a reagir favorável à invocação do SnT propiciando ao sistema neuroendócrino liberar, imediatamente, várias substâncias (semelhantes à morfina e ao Diazepam), na corrente sanguínea, que protegem o ST do medo e da angústia excessivos.

O processo resultante determina a sensação de bem-estar e o aumento da defesa autoimune, interferindo    de tal forma consistente na sobrevivência da espécie Homo que pouco importa se foi o ST quem criou o SnT ou vice-versa.

É indispensável assinalar que a ideia que materializa a presença simbólica do Snt, em todas as crenças, está tão fortemente atada às MSGs que o concretismo independe de qualquer juízo de valor.

Desta forma e por esse motivo, o SnT pode suportar uma interpretação ambígua. Ou é usado, em determinada cultura, como instrumento de luta contra à dor ou, em outras, como meio de transcender o sofrimento para perpetuar o desconforto.

A imaginável vida depois da morte como instrumento para aproximar o frágil ST ao todo poderoso SnT, tem acompanhado o homem na sua busca para prolongar ao máximo o seu tempo de vida. Possivelmente, esta fantástica busca começou com a ideia religiosa arcaica de que é possível, ao animal, renascer a partir dos ossos descarnados pelo sepultamento.

Neste sentido é conhecida a citação do Antigo Testamento:

Ezequiel, 37:1-8 – ”A mão do Senhor veio sobre mim e me conduziu para fora do espírito de Iahweh e me pousou no meio de um vale que estava cheio de ossos. E aí fez com que eu me movesse em torno deles de todos os lados. Os ossos eram abundantes na superfície do vale e estavam muito secos. Então me disse: Filho do homem, porventura tornarão a viver estes ossos? Ao que respondi: Senhor Iahweh, tu o sabes. Então me disse: profetiza a respeito destes ossos e disse-lhes: Ossos secos ouvi a palavra de Iahweh. Assim fala o Senhor Iahweh a estes ossos: Eis aí vou fazer com que sejais penetrados pelo espírito e vivereis. Cobrir-vos-ei de tendões, farei com que sejais cobertos de carne e vos revestirei de pele. Porei em vós o meu espírito e vivereis. Então sabereis que eu sou   Iahweh. ”

A preocupação com os ossos e a certeza da decomposição do corpo após a morte influenciaram decisivamente no comportamento do homem em relação ao processo do sepultamento ritualístico.

Os documentos arqueológicos mais antigos e confiáveis desse estudo são as ossadas. O início do sepultamento ritualístico data entre 70.000 e 50.000 anos. Em esqueletos e restos de ossos deste período, foram encontradas a ocra vermelha (argila colorida pelo óxido de ferro com várias tonalidades pardacentas), que substituiu o ritual do sangue como símbolo da vida, sugerindo a crença, já naquela época, de que a existência de nova vida após a morte era considerada não só possível, mas alcançável através de práticas coletivas que envolviam o tipo de inumação das pessoas.

Somente a esperança da imortalidade pode justificar a preocupação que acompanha o ST, desde a sua origem, no ritual do enterro das pessoas amadas.

É difícil aceitar essa parte vital das relações humanas como exclusivamente social ou, simploriamente, ligada à reprodução das imagens oníricas.

Entre os sepultamentos ritualísticos, datando entre 70.000 e 50.000 anos, melhores estudados, constam:

  1. No sítio arqueológico Lemoustier, na França, um esqueleto de adolescente do sexo masculino, girado sobre o seu lado direito como se estivesse dormindo, com o crânio repousando sobre pilha de sílex servindo de travesseiro e tendo ao lado um machado de pedra cuidadosamente esculpido próximo a vários ossos de gado selvagem, sugerindo que foi enterrado com grande quantidade de carne para servir de alimentação na sua nova vida após a morte;
  2. Em Teshid Tash, na Ásia Central, a ossada de criança jazia sobre os ossos de uma rena cujos chifres formavam espécie de coroa ao redor da cabeça da morta;
  3. Na caverna de Shanider, no monte Zagros, no Iraque, o esqueleto de um homem adulto sobre uma enorme quantidade de pólen fossilizado de flores de diferentes espécies vegetais. A análise desse pólen mostrou tratar-se de plantas medicinais, ainda hoje utilizadas, pelos habitantes daquela região, no tratamento de diversas doenças. É provável que o homem enterrado tivesse sido o médico-feiticeiro do grupo social e as plantas colocadas no túmulo para que ele continuasse o seu trabalho específico na outra vida após a morte;
  4. Na gruta Chapelle-aux-Saints, na França, foi encontrado o esqueleto do homem adulto acompanhado de vários utensílios de sílex com pedaços de ocra vermelha.

A ação humana de empurrar os limites da cura, desde muito tempo, por meio das MSgs acionando os circuitos cerebrais identificadores dos SnT, tem sido o sustentáculo social da busca explicativa do sentido da vida e da morte, da saúde e da doença.

 Os SnT e as suas imagens simbólicas, estruturados nas MSGs ao longo do processo de humanização, como um dos instrumentos para ajudar na sobrevivência, são tão concretos quanto qualquer outra parte do mundo das ideias.

  1. RELAÇÕES MÉDICO¾MÍTICAS (RMM)

As relações-médico-míticas (RMM) estão contidas nas memórias-sócio-genéticas (MSGs), em sequências específicas de ADN, processadas durante a humanização. Em combinação com as outras partes da herança genética, respondem pelos circuitos cerebrais específicos identificadores dos seres-não-tempo (SnT) como uma das opções, no mundo das ideias, para conter os riscos à saúde ou à sobrevivência dos seres-tempo (ST), atuando em última instância, como um instrumento, extremamente potente, para superar os limites da cura.

Os sentimentos evocadores de paz e esperança, gerados pelas RMM, transcenderam no tempo e chegaram a nós vivificadas tão intensamente que fica quase impossível dissociá-las do cotidiano da prática médica.

A própria data de comemoração do dia do médico –  o 18 de outubro – corresponde na mitologia grega, o dia no qual o deus médico Asclépio, filho de Apolo, o deus da medicina grega, era celebrado na Grécia Antiga, há 2.300 anos.

Nunca é demais repetir que a grandeza biológica do material genético humano sobre a de todas as outras espécies do planeta se completa com a criação dos SnT e a consequente esperança no renascimento após a morte.

Entre os mais famosos SnT taumaturgos, estão nos panteões sagrados:

  1. Assírio-babilônico:
  2. Marduk, o grande deus curador;
  3. Nabu, deus das ciências e da arte de curar;
  4. Sin, deus das plantas medicinais;
  5. Istar, deusa da libido;
  6. Ninchursag, deus ligado a oito divindades, cada uma com poder de curar uma doença específica;
  7. Ninurta, deus dos médicos;
  8. Gula, mulher de Ninurta;
  9. Ningischzida, filho de Ninurta, representado pelas duas serpentes enroladas no bastão;
  10. Sachan, a deusa-serpente
  11. Egípcio:
  12. Thoth, o deus que curou Horus da picada do escorpião e tratou das feridas de Horus e Set;
  13. Isis, a deusa que sarou Ra;
  14. Sechmet, deusa das doenças das mulheres;
  15. Set, o deus que espalhava e recolhia as epidemias;
  16. Ilhote, filho de Ptah, o deus da medicina;
  17. Menes e Zoser, reis curadores.
  18. Indiano:
  19. Ahura Mazda, deus da luz, do bem e criador de todas as coisas, sustentado pelos seis Amesha Spenta sagrados que representam a piedade, a bondade e a justiça;
  20. Angra Mayniu, o deus maléfico que luta pela posse do mundo;
  21. Ameretap, a deusa da longa vida e guardiã do jardim das plantas medicinais;
  22. Thrita, Thraetona e Ahriman, deuses curadores;
  23. Mithra, deus ligados aos ritos iniciáticos com o sangue e à comunhão do pão com o vinho;
  24. Grego;
  25. Apolo, o deus inventor da arte de curar;
  26. Asclépio, filho de Apolo, o deus da Medicina e era representado por uma serpente enrolada no bastão;
  27. Hígia, filha de Asclépio, a deusa da saúde perfeita;
  28. Panacéia, filha de Asclépio, a deusa que sabia dos remédios para todas as doenças;
  29. Afrodite, a deusa que curava as doenças da sexualidade;
  30. Artemis, a deusa protetora das mulheres e das crianças;
  31. Romano:
  32. Marte, o grande curador;
  33. Febris, a deusa das febres adquiridas nos campos de batalha;
  34. Mephitis, a deusa das febres da cidade;
  35. Minerva, a protetora da mulher e da criança;
  36. Judaico-cristão:
  37. O Deus único, o senhor da vida e da morte, da saúde e da doença;
  38. Personagens proféticos curadores do Antigo Testamento;
  39. Jesus Cristo, filho de Deus, o maior dos taumaturgos;
  40. As personagens possuidoras do dom de curar e adivinhar descritas no Novo Testamento.
  41. Os santos e as Santas curadores da tradição cristã.

A partir das combinações contidas no genoma, a situação de angústia criada pela fragilidade do ST frente a morte prematura ou a doença fora de controle, toca simultaneamente, em dois níveis principais, as respostas neuroendócrinas responsáveis pelo afrouxamento das tensões no corpo:

  1. Acionando a mudança nos níveis de hormônios e do metabolismo interno, como por exemplos, a secreção das endorfinas nas terminações nervosas, a secreção gástrica e os hormônios da glândula suprarrenal, entre muitos outros;
  2. Ativa os circuitos específicos responsáveis pela RMM, situados no sistema nervoso central, que formam as imagens tranquilizadoras dos SnT taumaturgos.

Os mecanismos atuam como instrumentos para diminuir a DP e criar condições físicas e psíquicas que facilitam o enfrentamento do risco.

O lento processo que envolveu as práticas de cura com o mito, no passado muito distante, notadamente, no Paleolítico Superior, deixou registros preciosos nas pinturas rupestres.

Merecem destaquem as primitivas relações míticas que os nossos ancestrais estabeleceram em dois momentos fundamentais do processo de humanização:

  1. Relações míticas dos nômades caçadores-coletores:
  2. Com animais;
  3. Com os astros e fenômenos celestes.
  4. Relações míticas dos sedentários agricultores-coletores com a terra e o vegetal:
  5. Relações míticas dos nômades caçadores-coletores:
  6. Com os animais

Essa complexa e compreensível associação de poder e dependência gerou a crença no poder do animal.

Mesmo antes da linguagem articulada, a voz humana era capaz de transmitir não só a informação, ordens e desejos, mas também, criar coletivamente um universo imaginário de relações do homem com ele mesmo e com o meio, fazendo do desconhecimento a pedra angular da formação das suas relações sociais.

É possível deduzir que a crença no poder animal, ainda hoje aceita em numerosos grupos sociais, tenha surgido nessa época, quando alguns animais desempenhavam importância fundamental no ritmo da vida do homem. Por esta razão, o animal adorado variou de acordo com a situação geográfica da comunidade. Em alguma foi o urso, em outras, o bisão e a rena.

As descobertas arqueológicas encontraram vários crânios de diversos animais, principalmente de ursos, em cavernas pré-históricas colocados em lugares de destaque que sugerem tratarem-se de altares primitivos.

Os estudos paleontropológicos reforçaram a certeza de que os nossos ancestrais distantes caçadores-coletores mantiveram algum tipo de adoração mítica pelo poder animal.

No fundo do lago de Stellmoor, perto de Hamburgo, na Alemanha Ocidental, foi encontrada uma estaca de pinho com um crânio de rena na sua porção mais alta e um tronco de salgueiro com mais de três metros de comprimento, grosseiramente esculpido, percebendo-se a cabeça e o pescoço de um personagem humano, ambos datando de oito milênios.

A gravura paleolítica de uma mulher grávida, na fase final da gravidez, sob uma rena e as pinturas rupestres dos médico-feiticeiros de Afvalingskop e da gruta de Trois Frères são alguns exemplos da crença numa da troca de poder entre homem e animal e vice-versa.

É lícito supor, que no primeiro caso acima, tenha ocorrido alguma forma de dificuldade na resolução natural do parto. A gravura pode ter sido feita memorizar o significado da transferência simbólica da força do animal após a efetivação do parto

Os médico-feiticeiros da Ásia Central e da França, do segundo exemplo, estão travestidos na pele dos animais em movimento de dança, lembrando, sob muitos aspectos diferentes, as RMM ainda existentes em diversas partes do mundo, mais especificamente, o ritual dos bisões elaborado por grupos indígenas no norte dos Estados Unidos.

A evidência da localização dessas esculturas e pinturas rupestres em locais de difícil acesso, são demonstrativos que se tratavam de lugares incomuns para o uso habitual.

Um dos exemplos mais marcantes é a caverna de Le Tue d’Audoubert, na França. Neste sítio, foram encontrados dois bisões esculpidos em argila, cada um deles com quase um metro de comprimento, em espécie de altar, cercados por centenas de impressões dos pés de adultos e crianças moldados no solo argiloso. Mesmo hoje, com toda a facilidade do deslocamento, utilizando balsas infláveis e a luz elétrica, é difícil o acesso a este altar primitivo.

Do mesmo modo, também é possível associar a suposta prática curativa, desenvolvida na pré-história, com os desenhos em raios X, da mesma época, que mostram o esqueleto e os órgãos internos dos animais.

Estes desenhos são encontrados em número expressivo nos sítios arqueológicos da França, Noruega, Índia, Malásia, Nova Guiné e Austrália. Os estudos comparativos levam a conclusão da enorme possibilidade de que as ideias e crenças religiosas, predominante no paleolítico, estava impregnada das RMM.

A história oral, sobrevivente dos curadores autóctones, da Austrália, Nova Guiné e Malásia, afirmam que somente o feiticeiro, possuidor do dom e graças a sua visão sobrenatural, é capaz de ver através da pele.

Este raciocínio pode ser facilmente transportado até hoje para explicar, historicamente, a visão clínica do médico moderno como sendo capaz de chegar ao diagnóstico com um simples olhar, não utilizando qualquer recurso lógico do conhecimento. Esta capacidade é reconhecida também como o dom e muito valorizada como símbolo de competência do curador.

  1. Com os astros e fenômenos celestes.

Essa complexa relação mítica foi a responsáveis pela associação entre o poder especial dos corpos celestes, visíveis e intocáveis no firmamento, e os SnT.

As comunidades do Neolítico ou as anteriores a ele, por não possuírem estratificação social, tinham na busca pela sobrevivência e na explicação dos fenômenos naturais, grande parte da sua atenção. A preocupação pelo conforto físico e em aumentar o tempo da vida deveriam estar entre elas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva.

A demonstração inquestionável da existência no Paleolítico superior de sistema simbólico baseado nas fases lunares é extremamente importante para a compreensão do todo nas relações históricas do homem com a sua compreensão da saúde-doença e vida-morte. Este sistema de relação do homem com o tempo-espaço forneceu as bases para a compreensão pelo homem pré-histórico dos processos naturais repetitivos e renováveis como a reprodução do homem e dos vegetais, o movimento de cheia e vazão das águas, as estações do ano, a morte e o imaginável renascimento relacionado à nascente do Sol.

A partir desse ponto ao aparecimento dos ritos de iniciação e da guarda dos segredos deve ter sido um passo curto.

A dança circular é um dos exemplos da existência de ritos nos grupos sociais paleolíticos. Incontestáveis marcas em solo argiloso foram identificadas em alguns sítios arqueológicos. Estas marcas de pés de adultos e crianças formando círculos bem definidos, ficaram definitivamente impressos no chão como testemunhas caladas do universo mítico-religioso dos nossos ancestrais.

Com o início das especializações sociais, isto é, a identificação espontânea no seio do grupo social de afinidades pessoais, é correto o pensamento de que os especialistas do sagrado começaram a aparecer, detentores de conhecimento acumulado e específico para intervir na explicação dos fenômenos visíveis nos céus relacionamos com os fatos do cotidiano.

É possível que esses especialistas da cura tenham sido os primeiros que intervieram no corpo humano para mudar o curso de uma doença ou de um comportamento excludente. A prova arqueológica seriam um dos mais fantásticos objetos de busca da saúde pelo homem – os crânios trepanados – no período Neolítico, há mais de 10.000 anos.

Existem dezenas de crânios que foram abertos cirurgicamente e algumas pessoas que foram submetidas a estas cirurgias sobreviveram longo tempo, o suficiente para que as bordas do osso cortado se regenerassem parcialmente.

Essa atitude médica do homem neolítico estava impregnada de sentido mítico-religioso, semelhante ao ainda hoje encontrado entre os nativos do arquipélago Bismark, onde essa cirurgia ainda é realizada com o objetivo de retirar os demônios e os maus espíritos dos doentes que apresentam algum tipo de alteração de comportamento.

  1. Relações míticas dos agricultores¾coletores com a terra e o vegetal:

Na proporção do aperfeiçoamento da linguagem, aumentou a instrumentalização médico-mítica dos nossos ancestrais. As forças resultantes determinaram profundas alterações nos registros genéticos e os consequentes acréscimos nos circuitos cerebrais identificadores das respostas do ST frente as angústias da incerteza da vida.

Os elementos sagrados continuaram formando imagens simbólicas interagindo homem-animal-astro e acompanhando o homem na trajetória de conquista do espaço, que começou a ser concretizada ao lado dos rios e lagos férteis.

Foram sobretudo os iniciadores da cultura natufiana, que optaram pela vida francamente sedentária, ao contrário dos seus antecessores biológicos que mantiveram, durante milhares de anos, o nomadismo.

Essas transformações sociais ficaram conhecidas como Revolução Agropastoril do Neolítico. Sabe-se que elas foram produtos de combinações geográficas e climáticas circunstanciais específicas. Porém, um dos fatos mais interessantes foi que diferentes grupos sociais passaram pelo mesmo processo em épocas e lugares distintos no planeta.

A Medicina, nessa fase, já estava definida como especialidade social. Por outro lado, a prática médica refletia a irresistível força das MSGs e incorporava os sincretismos oriundos do passado muito distante.

As centenas de milhares de anos que os caçadores-coletores permaneceram em relação direta com a natureza, deixaram traços bem definidos, na herança genética, na sua nova adaptação ao meio.

Não é demais assegurar que o desenvolvimento da agricultura com produção e excedente, a posse de coisas, a guarda do território e fortalecimento dos laços tribais e consanguíneos determinaram profundas mudanças nas MSGs originada do nomadismo caçador-coletor.

Os mecanismos cerebrais de fuga da DP foram definitivamente alterados. Além de tudo o mais, a agricultura impôs uma divisão de trabalho que interferiu de modo marcante no tipo de doença que o homem passou a ter como uma das consequências da modificação dos hábitos sociais.

As relações do homem com o animal – o poder do animal – que predominaram no universo mítico mesolítico foram modificadas com o aparecimento da agricultura dirigida. A ordem religiosa com o mundo animal é substituída pela sociedade mítica entre o homem e o vegetal. O osso e o sangue são substituídos pela terra e pelo esperma.

A antiga dispersão das ideias religiosas é concretizada em espaço definido, a aldeia. Apareceram os primeiros templos fortemente estabelecidos a partir das ideias religiosas indissociáveis da metalurgia, da urbanização, da realeza e do corpo sacerdotal organizado detentor do conhecimento e capaz de interferir, com a ajuda dos SnT, nas relações saúde-doença e vida-morte e empurrando os limites da cura.

É provável que tenha sido nesta fase do processo de transformação das ideias do homem, que tenha se dado a consolidação da criatividade religiosa, como secundária ao fenômeno empírico do cultivo da terra. Não pode ser afastada a possibilidade de ter frutificada a partir do desenvolvimento da consciência pessoal e coletiva do tempo, identificada no ritmo da vida dos vegetais, como indicador da renovação perene da vida.

O estudo das ideias e crenças religiosas do homem mostra uma quantidade enorme de exemplos em todos os continentes de mito de origem a partir da nova relação do homem com a terra como o existente na ilha do Ceram, na Nova Guiné, aonde do corpo retalhado de uma jovem semidivina, Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas que oferecem o alimento necessário para as pessoas viverem e a nossa lenda amazônica do guaraná, do vale dos rios Andirá e Maués, na qual o filho da índia Onhiamuacabe é morto e do seus olhos plantados, originou-se do esquerdo o falso guaraná, Uanará-Hopu e do direito o verdadeiro guaraná, Uaraná-Cécé e do corpo enterrado e ressuscitado deu origem ao primeiro maué.

Milhares de anos depois do processo de elaboração dos mitos de origem, surgiram formas sincretizadas, cujos simbolismos estão contidos em estrutura organizacionais muito semelhantes:

No Antigo Testamento, o pão recebeu muitos significados, porém todos estão estritamente atados à sobrevivência e a aliança ao SnT da tradição judaico-cristã: *

  1. O dom de Deus e fonte de todas as forças:

SI 104, 14:

  1. Um meio de subsistência tão essencial que a falta do pão significa falta de tudo:

Gn 28,20 $

Am 4,6 $

Após a consolidação do cristianismo, no Ocidente, o pão continuou a ter o mesmo significado simbólico:

  1. Como o desejo de comer no Reino

Lc 14,15: $

  1. Relação entre o pão e a palavra de Jesus:

Mc 6,30 – 40: $

  1. Culminando no rito da eucaristia

Jo 6, 48-52: ”Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Aqui está o pão que desceu do céu para que tudo o que ele comer, não morra. Eu sou o pão vivo, que desci do céu. Se qualquer comer deste pão viverá eternamente: e o pão que eu darei é a minha carne, para ser a vida do mundo”.

A significação dos mitos ao renascimento a partir da nova relação do homem com os vegetais é clara, os alimentos são sagrados por derivarem do corpo de uma divindade e devem ser utilizados para a conservação da vida.

Após o fortalecimento do aldeamento se tem comprovação da utilização empírica das plantas como agentes intermediários na busca da saúde, provavelmente como fruto das novas relações míticas do homem com a terra e com o vegetal.

Esse aldeamento se deu inicialmente, próximo das fontes de água em caráter permanente e em terras férteis. No chamado Crescente Fértil, entre os territórios montanhosos de Israel, Jordânia e Síria, compreendendo os rios Tigre e Eufrates e se estendendo do mar morto ao Golfo pérsico, apareceram as primeiras aglomerações humanas urbanas conhecidas, datando em torno de 10.000 anos.

É certo que a Medicina oficial se desenvolveu nessas cidades ao lado de práticas míticas, envolvendo ritos que se tornaram coletivos e passaram a ser realizados em épocas de festividades e consagrações.

A circuncisão é um dos exemplos. Essa cirurgia deve ter sido praticada no Neolítico de modo muito semelhante ao que apareceu na Mesopotâmia e no Egito, 5.000 anos depois.

Foi a interferência do conceito mítico-religioso – a aliança entre Deus e Abraão – o fator histórico responsável pela forma de circuncisão que temos gravada na história religiosa:

 Ge 17,9 – ”Disse mais Deus a Abraão: Tu pois guardarás o meu pacto, tu e teus descendentes depois de ti. Todos os machos dentre vós serão circuncidados. E vós circundareis a carne do vosso prepúcio, para que esta circuncisão seja o sinal de concerto, que há entre mim e vós”.

A utilização de instrumentos específicos e do vegetal, como fruto da terra cultivada, com o objetivo de facilitar a comunicação com o transcendente e intervir no curso das doenças foi consolidada definitivamente na prática médica e serviu para reforçar e institucionalizar o poder médico oficial – praticado pelo ST – como trabalho intermediário da vontade do SnT dominante do grupo social.

O uso de plantas alucinógenas pelas populações nativas americanas do Norte e do Sul, constituem outro exemplo dessa utilização instrumental na prática médica. Em todos os grupos estudados, apesar de pequenas diferenças no ritual, o simbolismo é exatamente o mesmo. As plantas, como dádivas divinas, são utilizadas para facilitar a comunicação entre o curador e os seres-não-tempo na cura das doenças.

Todas elas Oloiuhqui, Tlitliltzen, Mescal Beans, Teona-nacati, Conocybe, Lycoperdon, Pipiltzintzintli, Peito de Moça, Maikoa, Floripondio, Toloatzin, Estramonio, tabaco, San Pedro, Paricá, Virola, Coca, Epadu, Ayahuasca e a Jurema, são utilizadas nas RMM de centenas de grupos indígenas nas Américas.

Após a colonização predatória e a cristianização forjada a ferro e fogo pelas hordas europeias, o uso das drogas alucinógenas continuou, apesar da implacável perseguição do clero, mas sofreu severas transformações que contribuíram para a desestruturação irreversível do universo mítico dos povos autóctones.

Destituídos das suas RMM de forma brutal, em poucas dezenas de anos, os estímulos das MSGs das populações indígenas ficaram sem resposta adequadas frente à natureza circundante, à História e ao social. Quando esses povos conseguiram diminuir o enfraquecimento determinado pela quebra dos mecanismos de sobrevivência contra DP e DH, já era muito tarde, tornaram-se presa fácil nas mãos do colonizador europeu.

O empirismo racional também foi e continua sendo utilizado ao longo de milhares de anos ao lado dos métodos mágicos na busca da saúde. Os mais conhecidos e usados foram as massagens, administrações de ervas medicinais sem o prévio conhecimento de seu primeiro ativo, plantas que provocam o vômito e a diarreia, cataplasmas e lavagens intestinais. O uso destes artifícios está profundamente marcado na memória coletiva de todos os povos, independente da organização social de cada um deles.

As RMM existentes na atualidade mostram-se tão vivas que fica praticamente impossível estabelecerem-se os limites no tempo. É como se as MSGs impulsionassem as ondas retardatárias, vindas das primitivas relações do homem com o animal e com a terra.

Esse conjunto é um indicativo que oferece suporte à teoria das RMM, contidas nas MSGs, como tendo sido formadas a partir de marcas específicas na herança filogenética comum, determinadas pela natureza circundante, pela História e pelo social.

O DOM

“As fronteiras entre adivinhação e medicina são tão vagas que não nos surpreenderá encontrar num tratado médico um prognóstico aventureiro e, num tratado de adivinhação, um diagnóstico médico pertinente. ” Jannie Carlier

A história, mesmo quando abordada como pretensa sucessão imparcial dos fatos históricos, está repleta de dados confirmando a existência, desde tempos imemoriais, dos curadores adivinhos.

A maioria desses trabalhos está colocada na polaridade estática que favorece o maniqueísmo. Transcrevem em análise elogiosa quando eles estão apoiando o poder dominante ou, simplesmente, despreza-os quando representam a resistência.

O papel social dos curadores e adivinhos como situado em contexto muito mais amplo. É necessário estender a historiografia no tempo, sob o enfoque dinâmico da luta travada pelos grupos na ocupação dos espaços sociais e políticos, para que possamos compreendê-los como agentes de coesão que resgatam os circuitos específicos contra a DP, localizados nas MSGs para atuam na ordem e na desordem das sociedades.

A sedução exercida pelo poder taumaturgo e divinatório dos seres-tempo e seres-não-tempo que possuem o dom tem sido uma das constantes das relações sociais.

Esses homens, mulheres e divindades com dotes especiais mostram-se, desde tempo distantes, capazes de curar e adivinhar. A partir dessas características pessoais, eles também têm sido competentes para intervir na ordem e na desordem dos povos.

O nominar desses curadores e adivinhos completa-se, nas mentalidades, de acordo com a História e com o social, sem modificar a essência dos sentimentos de atitude que ligam o ST ao SnT.

Desta forma, os nomes, que pertencem à linguagem superficial, têm pouca importância do ponto de vista genético e só representam a atualização temporal às exigências da multidão.

Com essa pontuação, ST curador e adivinho recebe o dom do SnT poderoso e pode, em determinadas épocas, destacar-se como líder mensageiro do novo tempo libertador das agruras.

O Antigo Testamento está recheado de interpretações do curador e do adivinho como:

CTG. 1,17 – “Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das luzes”.

Do mesmo modo, O Novo Testamento:

O líder, agora sob o carisma do dom, é o ST que percebe, antes das massas, a direção do movimento social de fuga, durante os processos transformadores da sociedade. Ele não determina o início da mudança. Destaca-se pela sensibilidade para detectar o desejo coletivo e aglutina os anseios ao utilizar a linguagem superficial para tocar nas MSGs, sempre atentas para moverem-se contra a DP e procurar o conforto.

Tanto nas sociedades ágrafas como nas que desenvolveram a linguagem escrita, é possível identificar uma intricada relação de dependência entre os seres-tempo especiais, possuidoras do dom, com os diversos segmentos sociais das comunidades onde atuavam.

Esse nó, relacionado com a capacidade humana em abstrair o pensamento para enfrentar a doença e o futuro, está envolvido no processo de ligação do ST com o SnT através da experiência religiosa com o sagrado.

É possível que essa complexa manifestação social tenha começado no desconhecimento causal das intempéries naturais e alimentado pela necessidade do controle social pelos que detinham o poder político e militar.

A maior parte da comunicação religiosa acabou sendo feita sobre a regra binário do prêmio-castigo. A saúde e a bonança eram os prêmios pelo cumprimento das ordens, a doença e o mau tempo representavam o castigo pela desobediência.

Por essa razão, o aliado do poder dominador que curasse a doença e previsse os infortúnios, representava a divindade. Ao contrário, quem não reproduzisse a mensagem dominadora, mesmo que sarasse e adivinhasse com a mesma competência, era identificado como a anti-divindade.

É também possível evidenciar que os curadores e adivinhos, em muitos contextos históricos, exerceram função equivalente em muitas organizações sociais. É por essa razão que os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde os primeiros tempos.

É lógico pensar que a posse do dom sempre deu mais poder a quem o possuía, colocando-o em destaque na comunidade, sempre aparecendo na História como conselheiro prudente ao intermediar a vontade divina.

Nas suas práticas, os seres-tempo especiais utilizaram o dom e os saberes historicamente acumulados no trato da doença para manter os seus privilégios ou estruturar certos núcleos de resistência em situação de adversidade.

A segunda possibilidade se dá, fundamentalmente, quando o poder, nas suas diferentes manifestações de força, tenta impor novas concepções escatológicas, como etapa indispensável da substituição cultural da luta entre dominador e dominado.

A linguagem do dominador para manter o projeto político de mudança do antigo pelo recente é de fundamental importância. Ela deve trazer, de modo transparente a mensagem de esperança requerida pelos anseios coletivos anteriores à conquista. Só assim, será competente para seduzir e minimizar a resistência no povo conquistado.

Nas circunstâncias que seguem o jogo de força entre conquistador e conquistado, a resistência nasce e manifesta-se na razão inversa da sedução exercida pelas novas propostas de vida e morte ao fazer surgir outros conceitos de salvação pessoal e coletiva.

A relação do poder dominante com as ideias religiosas é caracterizada pela tendência marcante, sempre que possível, para substituir o conjunto das crenças do povo subjugado.

Quando esta alternativa se toma impossível de ser realizada em curto prazo, são impostas as alianças culturais através do sincretismo religioso, determinadas pelos núcleos de resistência.

Alguns reis citados no Antigo Testamento, como Baal e Astarte cultuados na Mesopotâmia, foram identificados pelo judaísmo como curadores e adivinhos representantes da anti-divindade.

A História está repleta de exemplos das tentativas de substituição das crenças e das ideias religiosas.

A dura condição de vida imposta aos povos conquistados pelos monarcas pré-cristãos contribuiu para o aparecimento de vários heróis mítico de salvação durante a dominação romana na Palestina.

O surgimento do cristianismo pode ser inserido nesse contexto, onde muitos povos, desgastados com as suas antigas crenças, foram buscar na nova mensagem cristã as forças da libertação.

O processo de substituição cultural nunca se dá em linha reta. E efetuado em dois momentos distintos: o novo sendo difundido a partir da desmoralização do antigo.

 A complexidade aumenta no embate das forças de pressão e contrapressão dos grupos que digladiam para ocupar os espaços. Todavia, é somente no segundo instante que a conquista se consolida, justamente quando pode aparecer o herói mítico de salvação – o ST especial, detentor do dom, que encarna em si mesmo outro SnT muito mais poderoso – capaz de satisfazer as aspirações coletivas imediatas.

Existiram muitos heróis míticos na História das crenças e das ideias religiosas. Jesus Cristo, fundador do cristianismo, pode ser identificado como um dos mais importantes.

A mensagem cristã de libertação, ao tocar profundamente as MSGs, modificou por completo a estrutura sócio-política do mundo. Quase dois mil anos depois, continua tendo uma sedução irresistível, capaz de penetrar na profundidade do sentimento humano.

De acordo com os Evangelhos, Jesus Cristo veio ao mundo como o filho encarnado de Deus, com poderes de curar e ressuscitar a fim de anunciar uma nova mensagem escatológica.

É claro que não podemos deixar de pensar na existência de outras condições sócio-políticas para sedimentar a incrível sedução que acompanhou a mensagem salvítica anunciada pelo cristianismo primitivo.

A miséria tinha atingido um patamar insuportável para o povo ouvinte das primeiras mensagens cristãs. Há 1900 anos, a população do Império Romano foi calculada na ordem de 65 a 70 milhões e somente perto de quatro milhões eram cidadãos romanos, segundo os dados demográficos nos tempos de Augusto,

Os hebreus, no Oriente helênico, que já adoravam um Deus único centenas de anos antes, chegavam à proporção significativa de um para cada dez habitantes daquela região.

Destituídas do mínimo para sobreviver como escravos, durante muitas gerações as oposições foram impiedosamente esmagadas pelo poder dominador. Elas resistiram utilizando artifícios de simulação, quase sempre refugiadas em guetos, onde a organização social rígida em imperativa para a sobrevivência do grupo.

As comunidades hebraicas faziam parte desse bizarro mosaico de mentalidades. Elas reproduziram, ao longo de três mil anos, as próprias experiências sagradas através de três elementos de coesão social organizados pelos seus representantes da Divindade: a fé monoteísta, a sinagoga e sábado. Esse conjunto, em grande parte oriundo da memória oral, foi transcrito para os livros sagrados (Tora e Talmud) e utilizado como instrumento de organização social.

A tradição semita vivia uma religião de fé em Deus e a esperança no futuro capaz de modificar. O intolerável jugo estrangeiro contestador dos elementos da coesão social.  A promessa de Divindade aos profetas transformou os hebreus no povo do futuro que desfrutaria da terra prometida farta que mana leite e mel. Assim, o judaísmo rompeu com o tempo cíclico e estabeleceu a crença num tempo final.

É evidente que as ideias religiosas se manifestam no coletivo de modo sincrético, sem que se possa estabelecer limites precisos onde começa uma expressão de religiosidade e termina a outra. O cristianismo primitivo, nascido no seio das massas populares perseguidas pela implacável dominação romana, foi aquecido pelas crenças mais antigas do judaísmo, que continuava esperando o seu herói mítico de salvação:

Jo 1,49 –  “Então Natanael exclamou: Rabí, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel?”

Ainda nesse ponto de sua história, o cristianismo era uma manifestação religiosa de povos oprimidos, desesperados para minorar os sofrimentos, porque estava pleno de sincretismo, onde os curadores e adivinhos de todos os matizes tinham espaço.

Era indispensável que fosse consolidada a mudança. Os primeiros padres da cristandade, cumprindo o processo de substituição cultural do velho pelo novo, deslocaram grande parte da antiga escatologia judaica e passaram com nitidez de uma concepção coletiva para valorizar mais o individual, onde a confissão a Jesus era a única salvação.

Com a sua passagem de religião dos desprotegidos para dar legitimidade ao dominador, iniciou o longo processo de dominação por meio da catequese. Todos e tudo que se colocavam entre o Cristo crucificado e os projetos dominadores deveriam ser eliminados.

O pajé, esteio da coesão tribal, foi uma das tristes vítimas dessa escolha. Apesar de ter sido brutalmente desmoralizado pela sanha colonial durante quatro séculos, continuou resistindo nos confins das florestas.

O padre salesiano Bruzzi, depois de conviver durante mais de duas décadas num povoado do grupo Tukano, no Amazonas, é testemunha viva desta resistência:

 “É talvez o maior sacrifício que a catequese católica impõe aos indígenas cristãos, a renúncia à crença no poder do pajé. Em alguns casos, só o consegue parcialmente”.

Uma parte significante do clero católico continua combatendo os curadores populares nascidos das tensões sociais. Sem compreendê-los como agentes de coesão social, não está conseguindo processar uma linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos nascidos nas contradições do subdesenvolvimento.

Essa dissociação entre a hierarquia eclesiástica e a concepção do sagrado das massas culminou, na Idade Média, com o brutal assassinato de milhares de pessoas nas fogueiras de lenha verde, acesas pela insanidade da Inquisição.

Nesse período, entre os anos 900 e 1600, quando se consolidou o cristianismo como religião dominante, no Ocidente, o processo abandonou os cuidados coletivos com a saúde, alimentação e higiene recomendados pelos livros sagrados do judaísmo e pela cultura greco-romana. Como a nova religião não teve tempo para sedimentar outras regras, a maior parte das massas populares ficou sem parâmetros para enfrentar as dificuldades resultantes da urbanização desordenada.

O triste resultado se revelou no tipo de arquitetura centrada sobre a catedral com o completo desprezo das regras de saúde coletiva e pessoal adotadas no mundo greco-romano. Provavelmente, este fato contribuiu para a disseminação das grandes epidemias que sangraram a Europa no mesmo período.

Com a mesma abordagem é também possível enfocar alguns aspectos do processo colonizador brasileiro, onde o sincretismo religioso se fez muito forte todos os estratos sociais.

A força dos núcleos de resistência à substituição cultural imposta pelo colonizador cristão no Brasil, em diferentes épocas, obedeceu às tendências das quatro tradições religiosas lideradas pelos  seus agentes, atuantes  simultaneamente como curandeiros e adivinhos, mais ou menos valorizados ou combatidos pelo poder dominador de acordo com os componentes da tensão social:

  1. Indígena – o pajé;
  2. Africana – o pai de santo;
  3. Cristã – o padre;
  4. Kardecismo – o médium.

O catolicismo romano ao combater os curadores populares, nascidos nas tensões sociais e sem compreendê-los como agentes da coesão social, não está conseguindo processará uma linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos erguidos pelos agravos da miséria social que domina o subdesenvolvimento.

A persistência desse divórcio entre a hierarquia eclesiástica e a concepção do sagrado das massas populares é, em parte, responsável pelo esvaziamento das paróquias. Por outro lado, se reflete na gradativa diminuição da fé cristã católica.

Do outro lado, as novas igrejas cristãs, frutos da atomização do poder da Cúria Romana, divulgam mensagens mais sedutoras, promovendo as sessões de curas e catarses ao som dos cânticos de louvor à divindade, entoados por milhares de fiéis.

Com essa estratégia, elas penetram com maior facilidade nas MSGs  e ativam a vontade popular  ocupando os espaços sócio-políticos nascidos do desencanto, da insatisfação e da miséria.

Os curandeiros e adivinhos que possuem o dom podem se tornar elementos de coesão social na medida em  aperfeiçoarem o trato com o SnT para diminuir a DP e DH, resistir à conquista e  impulsionar o homem e a mulher em direção da posse da terra e do conforto

  1. A DOR-HISTÓRICA (DH)

A dor-histórica (DH) representa, no primeiro instante, o sentimento coletivo de repulsa à DP.

Como, desde um passado distante, a DP esteve  estruturada como dádiva exclusiva  do SnT taumaturgo, a consciência da DH marca o  conflito de competência entre o ST e o SnT para curar tanto no nível pessoal quanto no coletivo.

A partir daquele momento, aqui entendido como tendo ocorrido na Grécia antiga, a DH força a saúde e a doença serem revistas nos seus mais antigos significados, ligados à vontade do SnT, ora oferecidas aos homens e às mulheres como prêmio, ora como castigo.

O processo do conhecimento entre o ST e o SnT deu-se em nível de conflito na justa medida em que as coisas em si converteram-se em coisas para nós, ou seja, o desconhecido passou a ser conhecido.

É indispensável esclarecer que não está sendo tratado do mesmo modo a diferença entre o noumeno e o fenômeno kantiano, porque a arqueologia da cura não pressupõe a coisa em si incognoscível.

A doença e a dor foram resgatadas do exclusivo domínio do SnT. Apesar de terem mantido a abstração original, o ST transportou-as ao corpo humano e estabeleceu a interdependência com a natureza circundante. A epilepsia, tida como uma doença sagrada, causada pelo castigo do SnT, desceu dos céus e ficou igual as outras, entendida em decorrência de causa natural. A partir dessa nova categorização, ocorrida na Grécia antiga, a doença iniciou o processo de separação do SnT e ingressou pela physis nas relações sociais:

“Assim, eu creio firmemente que todo médico deve estudar a natureza humana e pesquisar cuidadosamente se ele pode cumprir as suas obrigações, quais são as relações do homem com os seus alimentos, com suas bebidas, com todo tipo de vida, e quais as influências que cada uma delas exerce sobre a outra. ” (Autor desconhecido, 2400 a.p.)

Esse primeiro corte sofrido pela Medicina como especialidade social conferiu ao ST e ao doente o referencial sensitivo da DH, formada na consciência analítica da DP.

Com o conhecimento proporcionado pela DH, foi esboçado o movimento para modificar o curso da doença e da morte. Com essa finalidade, o ST utilizou os elementos teóricos que retiraram do SnT a primazia da dor, firmando a Medicina como instrumento de transformação social. Por esta razão, o diagnóstico e o tratamento da DH, ao contrário da DP, é percebido por toda a sociedade ao ver a criança abandonada, o velho com fome e ainda, o esgoto correndo a céu aberto e o trabalho alienado.

É nesse ponto de ligação entre a DH e a DP, onde o imediatismo das dores coletivas predominam, que ocorre o falso pressuposto da doença ser consequência somente das relações sociais.

Contudo, a partir do momento em que a teia do raciocínio percorre as origens genéticas que estruturaram os corpos contra a dor e o desconforto, a importância das MSGs é interposta automaticamente.

Assim, é possível compreender por que, a partir do momento em que determinada sociedade toma consciência do rigor imposto pela DH, comprometendo a sobrevivência ou o conforto dos seus membros, o ST com ou sem interferência do SnT, reorganiza a nova ordem social  para enfrentar e os fatores determinantes do infortúnio.

A partir desse momento, o ST curador oficial – o médico – transforma-se em político e, nesta condição, atua como curador das dores da sociedade.

Platão (Político, 296 a,b,c) descreveu com precisão o papel político do médico para reverter a DH:

“Estrangeiro: ¾ É interessante. Dizem, com efeito, que se alguém conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão com o conhecimento de cada cidadão; de outro modo não.

Sócrates, o Jovem: ¾ Muito bem! Não estarão eles certos?

Estrangeiro: ¾ Talvez. Em todo  o caso, se alguém dispensa esse consentimento e impõe a reforma pela força, que nome se dará a esse golpe? Mas, espera. Voltemos primeiro aos exemplos precedentes.

Sócrates, o Jovem: ¾ Que queres dizer?

Estrangeiro: ¾ Suponhamos um médico que não procura persuadir seu doente, senhor de sua arte, impõe a uma criança, a um homem ou uma mulher a que julga melhor, não importando os preceitos escritos. Que nome se dará a essa violência? Seria por acaso o de violação da arte e erro pernicioso? E a vítima dessa coerção não teria o direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobras perniciosas e ineptas por parte de médicos que as impuseram.

Sócrates, o Jovem: ¾ Dizes a pura verdade.

Estrangeiro: ¾ Ora como chamaríamos aquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto? ”

Esse diálogo refletiu a nova posição do médico oficial não só como curador de pessoas, mas como curador da sociedade doente. Assim, a Medicina passou a ser associada com a Justiça, estando os curadores em estrato diferenciado da estrutura social, em consequência do conhecimento acumulados e, por essa razão, autorizados a influenciar as pessoas na direção da melhor vida. Ao contrário, se o curador não utilizasse a capacidade de persuasão, de acordo com os preceitos da polis grega, estaria incorrendo em falsidade ideológica capaz de prejudicar outros homens.

O papel político do curador oficial grego como elemento importante da saúde coletiva, impôs a presença permanente do ST curador na ordem social.

O culto ao corpo sadio e atlético estava embutido no mesmo contexto de valorização da saúde, demonstrada pela entrada em cena de um novo personagem, oriundo da Medicina não oficial: o professor de ginástica. Ginastas e médicos, trabalhando juntos como curadores oficiais, passaram a ser responsáveis pela saúde e beleza do corpo.

 A nova posição que o médico assumiu na sociedade grega reproduzia a nova abordagem da natureza em relação com o indivíduo. A doença e a dor iniciaram o longo caminho para a libertação do domínio exclusivo da divindade taumaturga.

A sociedade justa ficou compreendida como sinônimo de sociedade sem doença, não podendo haver justiça sem a saúde dos homens que fazem as leis. Nesse contexto, o papel do médico é comparado ao do político, ambos como curadores de pessoas e sociedades doentes.

De tempos em tempos, a humanidade vê-se frente a certa doença que chama a atenção coletiva pela forte representação simbólica do sofrimento muito mais preocupante do que todas as outras conhecidas. Em consequência, as MSGs alertam os circuitos cerebrais contra a dor e articulam respostais na ordem social para reverter a DH.

A lepra é uma dessas doenças. A enfermidade provocou uma das mais complexas adaptações da linguagem na História da Medicina. A agonia do leproso, durante séculos, deixou marcada para sempre o medo coletivo da fealdade que pode provocar a repulsa de todos.

Os neologismos, que acompanharam a DH, tiveram na hanseníase um dos indicativos mais fortes. Sournia descreveu esse fato:

“Quando já na Idade Média, por autonomia se chamava aos leprosos cristãos (donde deriva a palavra cretino), nos fins do século XVI, apareceram diversos qualificativos: cas-sox, depois cagot, caqueux ou cacot, particularmente nos Pirineus e na Bretanha. O termo tornou-se sinônimo de leproso e falava-se de coquinerie como de leprosário. ”

Essa doença que exclui o homem do convívio social, mantém a DH viva na deformidade dos doentes, que perambulam pelas ruas de Manaus, em 1997,onde a palavra leproso é utilizada na linguagem cotidiana como adjetivo pejorativo.

O gripo desesperado da DH da lepra, no Amazonas, está presente no sofrimento do hanseniano Manoel Paes de Azevedo, morador do isolamento público de leprosos, protestando contra a desativação compulsória da área em 1979:

“Pedir? Irmãos pedir

como humanos como irmãos

porém não são esmolas

e sim vossa compreensão

Vos pedimos, não nos olhe

com horror ou compaixão

também não exigimos

que a nós nos dê a mão.

Não nos recebam em vossas casas

se vos assim apetecer

mas por favor…não nos humilhem

nós só queremos viver.

Vivemos igual a outros

em nossa comunidade

do trabalho ganhamos o pão

igual a outras cidades.

Perdão se assim vos falo

é meu modo de falar é a revolta em meu peito

que não posso sufocar…

Desperto ansioso de meu cismar e a pensar

quero voltar ao meu suave degredo

Grito! Peço…choro…imploro

não…não quero ser livre…

tenho medo.”

A DP no limite do extremo desespero provocado por doenças como a lepra, ativa a DH e força a resposta na ordem social.

As circunstâncias em que a DH é sentida sem resistência, isto é, quando não existe dúvida do sofrimento, como nas provocadas pelas doenças ativadoras do medo coletivo, contribuíram para sedimentar o falso pressuposto da doença ser consequência, somente, da organização social.

A complexidade do sentimento determinante da DH é muito mais que a simples análise quantitativa dos movimentos de pressão e contrapressão da saúde pública. Ela também está presente na crítica pessoal, em todos os estamentos sociais, como espécie de alerta vermelho, ao comprovar a diferença existente no atendimento recebido.

A rudeza da DH descontrolada, a margem do interesse político prestador de serviço, sempre foi mais sentida pelos excluídos da sociedade, pelas crianças famintas e pelos velhos desabrigados.

A força emergida das desigualdades projeta a ruptura da ordem dominante e fomenta a solução revolucionária para minorar a DH. Por essa razão, a opção pela força, raramente, tem sucesso sem o consentimento da maioria sofredora.

A História mostra que sempre apareceram, nos momentos de maior pressão da DH, pessoas com sensibilidade suficiente para denunciar e clamas pelas mudanças.

Por todas essas razões, multiplicam-se na literatura, exemplos dessa consciência crítica ligando a dor à desordem social e pregando a opção revolucionária como o caminho mais curto para sarar a DH, como o de Donnangelo e Pereira:

“A Medicina deve abrir para o espaço social e assumir ao final a tarefa de suprimir a doença. Mas deve fazê-lo no interior de um projeto que implica também a reestruturação da sociedade, com a depuração de todos os seus males. ”

A posição dos autores lembra, sob alguns aspectos, a utopia que floresceu após a Revolução Francesa, de uma Medicina nacionalizada, como a única forma possível para se obter o desaparecimento total das doenças, numa sociedade sem distúrbios e sem paixões.

Não resta dúvida que esses sentimentos engendrados pela DH, tocados nos exageros das paixões, contribuíram para aliviar a dor de milhões de pessoas. Todavia, as ações têm se  mostrado insuficiente, exatamente, porque o tratamento das doença consequentes da ordem social é, somente, uma parte da arqueologia da cura.

  1. A COESÃO SOCIAL (CS)

Os movimentos descontínuos da coesão e do conflito sociais não comportam, sob nenhuma hipótese a oportunidade para concebê-los isolados e estáticos.

Tornam-se entendidos, quando o enfoque valoriza o equilíbrio dinâmico. A predominância coesiva ou conflitante, em determinados momentos, é consequência do ajuste das mensagens, frente às expectativas coletivas.

A CS é um ato coletivo que utiliza o sentimento cooperativo para unir, num tempo-espaço específico, gentes desiguais, em torno de pontos comuns das MSGs.

Os vetores determinantes da CS respondem favoravelmente às imagens e aos símbolos formados, de tempos em tempos, na crença coletiva de coisas e fatos apresentados como verdadeiros e que tocam os anseios fundamentais das MSGs.

Os significantes compreendidos como verdades mudam com o movimento social e com eles os caminhos da CS. Em certas ocasiões, a partir da análise do saber atual, é possível pensar em prever o curso futuro de um significante que poderá ter importância na CS. Um razoãvel exemplo é a forte esperança que os conhecimentos da medicina deixarão a molécula para trás se encaminharão aos mistérios do átomo e das partículas subatômicas.

O fato da medicina celular estar sendo substituída pela medicina molecular, reafirma a mudança da verdade nas consciências. Além disso, serve para entender como uma suposta materialidade do invisível cada vez menor, assenta-se na crença coletiva.

Nesse sentido, o postulado hegeliano da falsa consciência, quando entendido como a negação da única verdadeira, fica fortalecido, à medida que a teoria dos quatro humores, crida como verdade absoluta, durante dois mil anos, é insuficiente para explicar a saúde e a doença.

O incognoscível não é uno nem imanente. É impossível perceber tudo e todos no mesmo momento. Tudo e todos estão em permanente mudança. Não existe e nunca existira uma só versão do ser no mundo das ideias. Ambos, ser e mundo, são múltiplos na forma e na essência. O desconhecido torna-se conhecido conforme é desvendado, portanto integra uma verdade naquele instante.

A dor protegendo e o território e a reprodução sexuada garantindo a sobrevivência do ST, e o SnT, interligando-o ao social, à História e à natureza circundante, representam alternativas reais e verdadeiras para apreender o ser no mundo.

O verdadeiro é móvel e mutante. É o deslocar espacial de um pêndulo, cujo corpo pesado é formado por todos os elementos integrantes da natureza, da História, do social e da genética. As partículas deslocadas, a velocidade e o ângulo nunca se repetem.

Cada observador estrutura uma verdade, quando localiza o movimento pendular. O matemático, treinado para compreender as curvas do movimento, olha sob um prisma diferente do especialista da metalurgia, voltado ao primor do metal. Nem por isso são percepções distorcidas da realidade.

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