POLÍTICA DE SAúDE FRENTE A PIOR DAS DOENÇAS: A FOME

   

Prof.Dr.HC Joäo Bosco Botelho


 

     “E quando falo de medicina,näo me refiro à organizaçäo sani­tária em sentido estrito,mas em sentido geral,às relaçöes entre o homem e a doença.Quem é pobre morre antes…Basta pensar que 40 % de todos os óbitos na América Latina referem‑se (assim como na pré‑história ) a crianças menores de cinco anos de idade.”

 

                                 Giovanni Berlinguer

 

     A medicina,como todas as especialidades sociais,deve ser compreendida no contexto da totalidade social do homem e näo restrita à açäo individual imposta pela relaçäo médico‑paciente.

     Essa atitude política impöe dificuldades crescentes porque  alarga o espectro de representaçäo e obriga a participaçäo do médico,como agente oficial da medicina,nos destinos da sociedade. 

     Há muito tempo existe o tácito reconhecimento de diferentes práticas médicas entre ricos e pobres.Platäo (República,406,d) afirmava que as prescriçöes e os cuidados para enfrentar a doença nunca poderiam ser iguais nos diferentes estratos sociais.Enquan­to o abastado dispöe de tempo e dinheiro,o miserável näo pode atender a recomendaçäo do médico que choque com as obrigaçöes determinadas pelo trabalho imperativo.

     A situaçäo mudou pouco na atualidade.As  análises das com­plicaçöes ocorridas nos serviços de emergência mostram que certas pessoas recebem tratamento diferenciado.Na hora de decidir o médico acaba levando em consideraçäo outros fatores além dos supostamente técnicos.        Mesmo nos ambulatórios  de rotina,onde habitualmente näo existe risco de vida,quando o paciente se mostra mais esclarecido o profissional de saúde presta mais atençäo no curso da entrevista.

     Apesar dessas situaçöes serem sobejamente conhecidas,näo existe,no momento,qualquer perspectiva para modificá‑las,nos países do Terceiro Mundo,sem corrigir antes o principal fator determinante das diferenças sociais: A FOME.

     É certo que a crueldade da fome alcança a maior parte do planeta.Embora a produçäo de alimentos tenha aumentado considera­velmente nos últimos trinta anos,cerca de 500 milhöes de pessoas no mundo estäo diariamente privadas do alimento mínimo para o equilíbrio biológico.

     Segundo os cálculos da Organizaçäo Mundial de Saúde (OMS) existem cerca de 350 milhöes de crianças subnutritas e, em 1983, morreram 15 milhöes delas no Terceiro Mundo.

     Como näo há  falta absoluta do alimento,o sofrimento se arrasta durante os primeiros anos de vida gerando a desnutriçäo e um enorme conjunto de patologias incapacitantes.

     As crianças nascidas de mäes subnutritas e que näo recebem o alimento em quantidade e qualidade adequadas nos três primeiros anos de vida,jamais poderäo desenvolver adequadamente as funçöes motoras e de aprendizado.É uma verdadeira fábrica de deficientes físicos e mentais.

     No Brasil,o problema é da mesma magnitude.Apesar de ostentar a oitava economia mundial,os menores brasileiros têm a mesma espectativa de vida que os da Etiópia,Birmânia e El Salvador.          É exatamente por essa razäo que fica difícil falar de medi­cina no Brasil sem lembrar que hoje,dois mil e duzentos anos depois do filósofo grego ter admitido a existência de medicinas desiguais,nada menos de 40 % dos brasileiros passam fome (Folha de Säo Paulo,19.10.90).

     A tragédia social alcança níveis de calamidade pública  para um país que pretende entrar no novo milênio no rol dos desenvol­vidos.

     A maior parte das enfermarias dos hospitais públicos ( quem tem grande poder aquisitivo raramente ocupa esses leitos) está preenchida por pessoas portadoras de doenças causadas,direta ou indiretamente,pela subnutriçäo crônica.

     Os estudantes de medicina,da graduaçäo e da pós‑graduaçäo,convivem desde cedo com as doenças da fome em violento choque emocional de valores.Eles sabem que a miséria  retratada na face disforme da criança faminta näo tem soluçäo nos medica­mentos fornecidos pela farmácia hospitalar.Na maioria das ve­zes,os pequenos doentes conseguem sair vivos da diarréia amebiana para retornarem, poucos meses depois,com uma pneumonia fatal.            

     No Norte e Nordeste brasileiros a situaçäo é ainda mais grave.Mais de um quarto de todas as crianças está seriamente comprometida física e psiquicamente pela fome.

     A mortalidade infantil atinge a marca de 80 óbitos para cada 1000 nascidas vivas.É um quadro inaceitável,resultante de um processo econômico e social injusto e desumano,na medida em que marginaliza,até os limites da miséria,a maior parte da populaçäo.         

     O combate à desigualdade social passa pelo processo adequado  do  desenvolvimento econômico e social,resgatando o direito de todos ao trabalho e à justa remuneraçäo,acesso à terra produti­va,à moradia,à educaçäo e AOS SERVIÇOS DE SAúDE.

     É inegável que uma política de saúde corajosa pode contribuir para minorar,em curto prazo e resolver,na quase tota­lidade,a médio prazo,a desgraça social das doenças determinadas pela fome.

     No Amazonas,o caminho pode ser aberto,de pronto, em duas frentes simultâneas de trabalho com a ampla participaçäo da so­ciedade:

I.A NíVEL DAS POPULAÇÖES: 1.Engajamento de todas as Igrejas no processo de mudança dos    hábitos sociais;  2.Programas de educaçäo sanitária no rádio;

 3.Emprego de suplementaçäo alimentar em casos indicados   condicionado ao cartäo de vacinaçäo atualizado;    

 4.Programas  específicos para reciclagem e informaçäo adicional    para as parteiras e curadores populares;  5.Fortalecimento dos clubes  e associaçöes dos bairros;

 

 6.Estímulo de diversas naturezas para tarefas individuais e  coletivas voltadas para a melhoria física de áreas de uso comum.

 

II.A NíVEL GOVERNAMENTAL:

 1.Política de saúde definida;

 2.Informatizaçäo completa do sistema;

 3.Reconstruçäo física e material das unidades de saúde da cidade   e do interior do Estado; 4.Autonomia das regionais de saúde no interior; 5.Distritalizaçäo sanitária de Manaus;

  6.Pagamento dígno aos profissionais de saúde;

 7.Programa de reciclaçäo e formaçäo de pessoal;

 8.Funcionamento da rede de assisténcia em três turnos;

 9.Controle da qualidade do atendimento realizado nas unidades em   estudos retrospectivos aleatórios (a exemplo do que existe na   política de saúde pública na França);

 10.Fortalecimento das unidades especializadas;

11.Retomada da visitaçäo domiciliar;

12.Incentivo aos programas especiais do Ministério da Saúde   (hanseníase,doenças sexualmente transmitidas,câncer de colo    uterino,câncer de boca,diabetes e hipertensäo arterial).     O custo do total das medidas para modificar o panorama da saúde pública no Amazonas,pode e deve ser partilhado pela parte mais abastada da sociedade através de arrecadaçäo adicional de impostos com rubrica específica.    

     Paralelamente,depois de organizada a estratégia de açäo,é viável buscar parte dos recursos em financiamentos no exte­rior.Existem muitas alternativas,em projetos de baixo custo, oferecidas pela Organizaçäo Mundial da Saúde.

     É indispensável que o conjunto de medidas seja elaborado pelos critérios preconizados pelo Sistema Unico de Saúde (SUS),de acordo com o Artigo 200,inciso V,da Carta Magna.

     A dura realidade é que continuamos buscando,dez mil anos depois do aparecimento das primeiras cidades na Mesopotâmea,as soluçöes para as agruras que aniquilam a dignidade quando o homem se urbaniza desordenadamente.


 

MENINO MORTO  ‑ Cândido Portinari (1918‑1962).

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