ABORTO, EUTANÁSIA E DISTANASIA: ASPECTOS ÉTICOS

 

 

ABORTO, EUTANÁSIA E DISTANASIA: ASPECTOS ÉTICOS

 

 

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Apesar de constituírem temáticas circunstanciais diferentes, é possível pensar que os elos comuns e mais importantes entre os três temas – aborto, eutanásia e distanásia – sejam os complicados limites da vida e da morte, porque mesmo com motivações diversas, é exatamente nesse contexto que ocorre o encontro dos três temas: interrupção proposital da vida.

Dessa forma, é adequado considerar os aspectos éticos atados ao contexto social e histórico, incluindo as abordagens laica e religiosa, ambas atentas, ao longo da história, passada e presente, para regular, administrar e punir os excessos e as faltas cometidas por pessoas ou instituições no trato com os limites da vida e da morte.

Mais com a intenção pedagógica, apesar dos elos comuns que serão tratados como cernes da discussão acadêmica, os temas serão abordados separadamente.

 

1. Aborto

A relação dos poderes laicos, em diferentes instâncias, ao longo de quatro mil anos, tem adotado diversas atitudes frente ao aborto como método anticoncepcional. Em algumas, lidando com indiferença; em outras, punindo severamente.  Por outro lado, tanto nos livros sagrados das culturas politeístas, do milênio passado, quanto nos do monoteísmo, não parece que a interrupção intencional da gravidez, salvo pelo risco de morte materna, causasse tanta repulsa.

Por essas razões, na discussão ética do aborto cabe adicionar alguns aspectos históricos dos dois sistemas.

 

A. Aborto sob a vigilância de algumas idéias e crenças religiosas

 

Existem indicativos de que os poderes ligados às idéias e crenças religiosa, das sociedades, no primeiro milênio a. C., não fizeram interdição específica ao aborto como método anticoncepcional, salvo quando poderia provocar a morte da gestante.

Tanto o Antigo Testamento quanto o Novo Testamento, mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar, não citam uma só vez de modo explícito qualquer tipo de condenação à prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse qualquer importância para a coesão do grupo. A Bíblia não condena nem aprova a interrupção da gravidez. Na verdade, não existe nenhuma referência ao aborto.

É difícil aceitar que a ausência de citação bíblica seria porque as sociedades judias não conheciam essa forma de método anticoncepcional. Em poucas passagens, é mencionada a pena do agressor de uma mulher grávida, se a brutalidade resultasse em aborto. Mesmo assim, o castigo parecer ter sentido indenizatório.

Por outro lado, não é impossível que o aborto provocado, naquela época, determinasse a morte em prevalência assustadora, a ponto de assustar e desestimular.

O 2º Livro de Samuel, o episódio em que o rei Davi engravidou a mulher do general Urias, com a gravidez preste a ser descoberta pelo povo que acreditava no rei, o aborto não foi pensado. A opção do rei adúltero foi mandar matar o militar que se encontrava na frente de combate e casar com a viúva grávida.

 

A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100 da nossa Era: Não matarás criança por aborto, nem criança já nascido. O filósofo cristão Tertuliano (190‑197) também adotou a posição antiabortiva absoluta: É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá.

São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, argumentou: os semens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros. Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de tríplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos.

De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a separação etária dos fetos: Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.

Na Idade Média, a Igreja cristianizou algumas comemorações oriundas do politeísmo. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século IV, iniciando os atributos sagrados às concepções, seguida da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, e da Anunciação, ou festa da concepção de Cristo, respectivamente nos séculos VI e VII. Essas celebrações contribuíram para impor simbologia sagrada à gestação.

A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou os séculos. O magnífico Santo Tomás (1225‑1274) sustentou que não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.

O retorno da Igreja, verificado no século XIX, ao rigor do cristianismo do Didaqué tem dois componentes inseparáveis: um teológico e outro político. O primeiro, promovido pelo papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado. O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão de obra, já que historicamente o aborto e suas conseqüências maléficas alcançam mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres. No famoso discurso, dirigido às obstetras, em 1951, foi enfático ao atribuir vida intra-uterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do inocente:…Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus…Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente…visando sua destruição.

O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis.

Certas passagens do AT (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do NT (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18) valorizando a vida situando Deus como o único Senhor da vida e da morte, foram utilizados pelos teólogos para construir a doutrina oficial da igreja católica.

B. Aborto sob a vigilância laica

 

Os métodos abortivos utilizados como contraceptivos, foram usuais na antiguidade. Essa herança social chegou ao mundo grego‑romano. Os registros mostram que pouco importava à mulher daquela época o momento biológico mais propício para provocar o aborto. As regras sociais do politeísmo, no Oriente e no Ocidente, não empunhavam restrições. Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica, o Código de Hammu­rabi, do século XVII a. C., e as leis de Eshnunna (1825‑1787 a. C.) não fazem referência ao assunto.

A leitura do juramento de Hipócrates mostra a clara tendência anti-aborto dos médicos gregos da Escola de Cós: …Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provo­car aborto.

Por outro lado, houve certa indulgência em Aristóteles (Política, VII, 4) que aconselhava a interrupção da gravidez frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida.

Após a queda do Império Romano é fácil e imediato reconhecer a influência do pensamento cristão nas leis sobre o aborto. No século sexto os visigodos adotaram a pena de morte para quem quer que fornecesse drogas para provocar aborto. A mulher, se fosse escrava, seria punida por meio de castigos físicos; se fosse livre, seria degradada. No século seguinte a pena de morte passou a valer tanto para o vendedor da droga como para o marido da gestante, caso este ordenasse ou consentisse no crime.

Na França, até a Revolução Francesa, os médicos, cirurgiões e as parteiras que praticassem aborto, quando descobertas, eram condenados à forca. Com o advento da Revolução Francesa esta pena foi reduzida para vinte anos de cadeia.

Depois de quase dois mil anos de limitações impostas, ora pelos poderes ligados ao sagrado, ora pelo profano das estruturas sociais, a estimativa do número de abortos ilegais provocados por ano no mundo é impressionante:

–       Número de abortos por ano: entre 46 a 55 milhões;

–       Cerca de 26 milhões de abortos legais;

–       Cerca de 20 milhões de abortos são ilegais;

–       Numero de abortos por dia: aproximadamente 126.000;

–       78% de todos os abortos são realizados em países em desenvolvimento e os restantes 22% em países desenvolvidos;

–       Aproximadamente 97 países, com cerca de 66% da população mundial, têm leis que em essência permitem o aborto induzido;

–       Noventa e três países, com cerca de 34% da população, proíbem o aborto ou permitem o aborto apenas em situações especiais como deformações do feto, violações ou risco de vida para a mãe.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Atualmente, no Brasil, o aborto é considerado crime, exceto: gestação como produto de estupro e risco de vida materna e, mais recentemente, quando constatada anomalias fetais incompatíveis com a vida, como a anencefalia.

Um dos estudos mais importantes identificando o perfil das mulheres que usam o aborto como método anticoncepcional foi realizado pela Universidade Federal de Pelotas. Alguns dados são interessantes para mostrar a gravidade do problema:

– Mais freqüente entre mulheres com idade entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, católicas e com pelo menos um filho;

– A maior parte é adolescente;

– O medicamento de venda controlada Misoprostol, foi apontado como principal método abortivo utilizado pelas brasileiras;

– Mais de 1 milhão de gestações foram interrompidas em 2005;

– Cerca de 200 mil mulheres foram hospitalizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) em decorrência de tentativas de aborto em 2005;

– Em 2005, pelo menos 3,7 milhões de brasileiras entre 15 e 49 anos realizaram aborto, representando  7,2% das mulheres em idade reprodutiva;

– De 51% a 82% dos abortos são realizados por mulheres entre 20 e 29 anos;

– Entre 7% a 9% são adolescentes;

– Mais de 50% das mulheres que abortaram nas regiões Sul e Sudeste usavam algum método anticoncepcional, principalmente pílulas. No Nordeste, essa porcentagem oscila entre 34% e 38,9%;

– A maior parte das mulheres que fizeram aborto se declarara católica, com 51% a 82% de prevalência, seguida pela que professa a fé espírita, com 4,5% a 19,2%. Em último lugar estão as evangélicas, entre 2,6% e 12,2%;

A Organização Mundial de Saúde publicou que o Brasil já tem maior número de abortos do que de nascimentos. Os estudos da OMS e de outras entidades de direitos humanos, mostram que a mortalidade e a morbidade são atenuadas com a melhor assistência do Estado. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir de 1973, quando a Suprema Corte legalizou o aborto, com severas restrições à realização em hospitais públicos, em menores de idade e em gestantes com mais de dois meses de gravidez.

A tendência pró‑aborto iniciada na Europa, nos anos setenta, é hoje mundial. Nos últimos quinze anos, pelo menos vinte países modificaram as suas leis. Na Itália, o mais católico dos países da Europa, a legalização do aborto provocou muito conflito. Só depois de cinco anos de debates no Parlamento, em 1975, e com a ajuda da frente laica, reunindo os representantes de todos os partidos políticos, foi aprovada a mudança. O plebiscito, realizado no papado de João Paulo II, mostrou que 70 % dos italianos aprovaram a lei.

As estatísticas mundiais, notadamente, nos países de tradição cristã, evidenciam o aumento do número dos abortos provocados. Mesmo com essa clareza, continua em plena efervescência essa discussão, na medida em que todos concordam ser necessário monitorar a decisão da busca do aborto como metido anticoncepcional, notadamente, se a mulher que pretende abortar é menor de idade.

Na França, a permissão legal para o aborto alcança os embriões de 14 semanas. Contudo, a entrevista obrigatória com equipe especializada, que antecede o ato médio, nos hospitais públicos, e o apoio governamental no sustento futuro da criança, consegue reverter a decisão em mais da metade dos casos

A análise dos dados estatísticos, continua alimentado as seguintes questões:

1. As proibições profanas e sagradas não modificaram, em quase dois mil anos, o comportamento das mulheres quando decididas em utilizar o aborto como método ­anticoncepcio­nal;

2. Nas sociedades com problemas de superpopulação, pode ocorrer o estímulo público e institucional ao aborto como forma de controle populacional.

 

            C. O aborto frente ao Código de Ética Médica

 

O artigo 54 do Código de Ética impõe ao médico que não provoque aborto, salvo exceções referidas no artigo 128 do Código Penal.

Para que possa realizar o aborto, o médico deverá consultar, em conferência, dois colegas, lavrando a seguir uma ata em três vias. Uma, será enviada ao Conselho Regional de Medicina; outra, ao diretor clínico do hospital ou clínica, pública ou privada; a terceira via ficará sob a guarda do médico assistente, responsável pela internação hospitalar da paciente.

O tema aborto, com seus diferentes enfoques, está presente direta ou indireta em pelo menos 21 artigos do Código de Ética Médica (1, 2, 6, 7, 8, 11, 16, 20, 21, 28, 42,  43, 46, 47, 56, 59, 61, 67, 102, 103, 142). Contudo, os artigos 42 e 43 são mais específicos:

Art. 42 – É vedada ao médico a prática ou indicação de atos desnecessários ou proibidos pela legislação do país;

Art. 43 – É vedado ao médico o descumprimento da legislação específica nos casos de transplantes de órgão ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento.

Por outro lado, o artigo 128 do Código Penal, que trata de crimes contra pessoas, diz que não se pune o aborto praticado por médico se:
I – não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário);
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando menor ou incapaz, de seu representante legal. (Aborto no caso de gravidez resultante de estupro).

 

2. EUTANÁSIA E DISTANÁSIA

 

A complexidade do tema reforça a necessidade de ampliar a discussão, mantendo o eixo central em torno dos aspectos éticos, para dois aspectos:

– Genético: a rejeição atávica à morte é inerente ao seu humano, já que os corpos vivos multicelulares, de todas as espécies, muito especialmente, o da espécie Homo sapiens, foi organizado geneticamente, ao longo de milhares de anos, para manter a vida – a morte rejeitada;

– Social: a certeza da inevitabilidade da morte – a boa morte.

 

A. Morte rejeitada

 

A necessidade incontrolável de dar sentido à vida, diferente dos outros animais, e de minimizar a morte, expressa com transparência na História, contribuiu para materializar, como opostos, a saúde e a doença. A primeira, sinônimo de vida, ficou ligada ao bem; a segunda, ao mal, antecipava a morte, sempre temida.

A pulsão inata para desvendar a forma visível, em especial o corpo, dotado com propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e do desconforto, pode ser considerada como a primeira verdade material. É verdadeira em si mesma, porque dá forma ao viver, num movimento caleidoscópico, composto pela carnalidade da pele quente, pela realidade dos sentidos, da respiração e do ritmo cardíaco. Atinge e entrelaça o ser no mundo, através de um alucinado reproduzir.

Quando a morte advém, como antítese da vida, descolora o tegumento cutâneo, resfriando-o e tornando-o insensível ao pior dos tormentos: a dor. O movimento respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria existência e rejeita a morte refletida no corpo endurecido, sem movimentos, na pele indolor e fria.

Os homens e as mulheres para reafirmarem a vida como episódio permanente, serve-se da ficção, domina e vivifica o corpo inanimado, prolonga a verdade material básica na crença de um renascimento, premiado ou castigado, nos moldes da vida vivida.

É a dialética fundamental entre a vida e a morte, atando com uma ligadura indissolúvel o ser-tempo (homen-vivo) e o objeto (homem-morto). Ambos são partes da mesma realidade, por isso, essenciais. Contudo, somente um percebe o outro. Por essa razão, é capaz de transfigurar, quando aprouver, o objeto perceptível, pensá-lo vivo, renascido, em outro lugar.

A técnica humana, transformadora da natureza circundante, é o pilar sustentador que aprimora e prolonga os sentidos, marcando a separação do ser-tempo (homem vivo) do objeto (homem morto) dos outros animais. Os saberes historicamente acumulados buscam na morte rejeitada as razões para viver com conforto, sem frio, sem fome.

O conjunto sociocultural, presente na memória, adquirida e transmitida, geração após geração, desempenhou papel de extrema importância nas mentalidades.

Os atuais saberes ocidentais, em parte marcados pela influência cultural greco-romana, uniram esse patrimônio, perdido nos confins enigmáticos do tempo indivisível.

A pólis, organizada à semelhança do corpo saudável, passou a ser compreendida como um organismo vivo. Ao contrário, o caos social era sinônimo de doença[i]. O administrador competente era aquele que curava a sociedade deficitária. O próprio juízo de valor das condutas pessoais foi estabelecido, utilizando as emoções humanas como parâmetro.

No mundo mágico, a passagem de um para o outro lado, envolvendo mudanças nas coisas e nos acontecimentos, implicando riscos à saúde e à vida, funcionando como pólos opostos, tem sido comunicada ao homem e à mulher pelo sacerdotes, representantes do outro mundo que acolhe os mortos renascidos, o mundo dos seres-não-tempo. Esses especialistas do sagrado, apesar de não negarem o conhecimento empírico da natureza circundante, confessa ser incapaz de compreender a vontade divina, limitando-se a obedecer e implorar a misericórdia, através dos ritos específicos para abrandar a ira transcendente.

O poder de curar pessoas e sociedades e adivinhar os infortúnios, evitando a enfermidade, para melhor organizar um determinado grupo social, oferecendo a saúde e adiando a morte, tem sido historicamente utilizado pelo poder político, como mecanismo de coesão e controle sociais.

O sofrimento e a morte da pessoa amada determinam transtornos muito complicados, em diferentes níveis do corpo, trazendo incontáveis sinais físicos de desconforto, variando em cada pessoa. O sistema nervoso  libera substâncias que alteram o ritmo biológico e estabelecem a baixa global da defesa imunológica inata.

A ansiedade, entendida como sensação de perigo iminente, interferindo na sociabilidade dos que vêm a morte, provoca complexas mudanças nos ciclos do sono, da fome, da sede, da libido e da afeição, ainda pouco compreendidas, na neurobiologia.      O lento avançar da Medicina molecular já identificou muitas substâncias que atuam no controle das emoções que envolvem a dor e o prazer. A maior parte dos milhões de trocas químicas específicas processadas, em cada instante, nos tecidos, está voltada para manter o ser vivo e embotar, temporária ou perenemente, as sensações desagradáveis e perturbadoras.

Parece lógico supor que as atitudes específicas, usadas para enfrentar a adversidade temida, minorando o sofrimento do homem e da mulher, tenham sido valorizadas e, continuamente, aperfeiçoadas pela ordem social, por trazerem resposta de bem-estar.

As ações humanas, transformando a natureza, para atenuar o desconforto, são imperativas. Estão ligadas direta e indiretamente aos mecanismos neuroquímicos endógenos auto-reguláveis.

Os dois atos, o externo, no circundante, e o interno, na célula, ajudam o corpo a criar mecanismos defensivos, quando o nível de agressão passa dos limites suportáveis.

As dores, física e mental, determinadas pela ferida, na carne dilacerada no acidente traumático ou na morte da mulher amada, como pagamento e castigo, são sempre temidas. Parecem que representam, ao mesmo tempo, a inspiração dos poetas e a arma preferida da insanidade para aqueles que exigem o apagar dos sentidos, a fim de limitar, pelo pavor, o confronto das idéias no exercício da livre consciência.

Diversas circunstâncias, do homem chorando a perda do amor ao suplício do torturado pelas ditaduras da direita e da esquerda, determinam o alerta dos sentidos e modificações significativas em todos os órgãos, em níveis moleculares, hoje inacessíveis.

Uma das características mais intrigantes é como a dor altera a noção do tempo. Suportar o desconforto doloroso, por um minuto, é como estar sofrendo na imensidão do infinito. Durante a manipulação dentária, quando a pequena broca alcança o nervo sensitivo, as sensações cerebrais são indescritíveis. Ao contrário, a hora de prazer corre como um breve instante.

Por essa razão, é impossível manter, durante muito tempo, a dor fulgurante. De pronto, todos os sentidos natos atiçam para evitá-la ou os sentidos são apagados, pela inconsciência forçada, para aliviar o desastre biológico.

Qualquer pessoa, capaz de interromper o sofrimento, afastar o perigo da morte prematura, é identificada, no conhecimento historicamente acumulado, com amigo, aliado paternal ou filial, ou mesmo, uma divindade.

Por outro lado, nas circunstâncias em que a vida em si relembra o sofrimento incontornável, naquele momento, a morte, antecipada pelo suicídio, pode significar a única saída.

As reações corpóreas de todos os animais precisam dessas defesas, presentes na organização atávica dos corpos, para continuar vivendo e reproduzindo. A espécie humana elabora muitas substâncias específicas, já citadas, auto-requisitadas pelas trocas biológicas, independentes da vontade, para modular a dor. Existem moléculas especiais, acopladas às membranas celulares, no sistema nervoso central, dotadas de receptividade especifica aos derivados opiáceos naturais, auto-produzidos no corpo.

O imaginável renascimento de homens e mulheres, portadores do dom de curar, ambos rejeitando a morte e empurrando milagrosamente os limites da vida, tem acompanhado todas as sociedades, desde tempos imemoriais, ricos e pobres, numa dimensão e repetição que não podem ser atribuídas somente ao ordenamento social.

A certeza dessas associações, desde muito tempo, ficou mais transparente, a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontradas nos sítios arqueológicos, assírios e babilônicos. Ficou esclarecido o intrigante sinônimo das palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento.

Também é possível evidenciar que os sacerdotes e os médicos, em muitas culturas no segundo milênio a.C. exerceram, simultaneamente, a mesma função. Por essa razão, os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados. A posse do dom de curar, de empurrar os limites da morte, oferece mais poder a quem detém esse poder. Coloca-o em destaque na comunidade, porque traz a cura. É freqüente encontrar esses personagens como intermediário das divindades.

A crença no renascimento após a morte continua sendo um dos mais valorosos artifícios da ficção, para atenuar a morte rejeitada. As práticas religiosas valorizadoras dos mortos e as que os reintegram ao mundo dos vivos, exercem fascínio irresistível. As manifestações estéticas, em todos os tempos, apesar das metamorfoses sofridas, repetem, sem cessar, a sedução do renascer.

Desse modo, manter o moribundo vivo a qualquer custo, mesmo com sofrimento, não tem sido uma atitude sem fundamento social

 

B. Boa morte

 

No século 9, os cavaleiros supuseram premonições específicas sobre a própria morte. Existem alguns textos sobre o tema, onde se pode ler: “ele sabia que sua morte estava próxima…”. O aviso era materializado por meio de certos acontecimentos não usuais ou, muitas vezes, pelo convencimento de que a morte estava próxima. Quando a pessoa se convencia desse fato, aguardava a morte deitado, junto à família. Essa atitude é reconhecida nas esculturas supulcrais desde o século 12.

Nos séculos seguintes, outro rito fúnebre é introduzido: o moribundo se lamentava das tristezas da vida, pedia perdão das pessoas próximas, recomendava os amigos a Deus, seguido da extrema-unção.

Sob essa perspectiva a morte era uma cerimônia pública, com livre entrada para todos ao quarto do moribundo, parentes, amigos, vizinhos, crianças de todas as idades. Não havia medo nem vergonha da morte inevitável. A quantidade de pessoas era tão grande, todos desejando ver a paciente próximo da morrer, que os médicos, no final do século 16, se queixavam do grande número de pessoas junto ao leito do agonizante.

Esses ritos da morte – boa morte – eram aceitos e cumpridos sem emoção excessiva. Assim incontáveis pessoas, na Europa central, no medievo, ricos e pobres morreram.

Era a morte era familiar, a boa morte.

Com o passar do tempo, os ritos modificaram para absorver o sentido dramático, de dor, de inconformidade, de repulsa à morte. O ritual da boa morte, sereno, ao lado da família, amigos e vizinhos, foi sendo substituído por outro, dramático, doloroso, causando sofrimento nos que assistiam. Algumas figuras metafóricas que tratam dessa fase são as “danças macabras”, no leste da França a na Alemanha. O horror da morte é reconhecido, a feiúra, a agressão da morte desfigurando o vivo. Essa morte feia e a decomposição do corpo foram temas da poesia dos séculos 15 e 16. O cheiro pútrido do corpo decomposto pela morte toma o sentido macabro e temido.

Atualmente, esse sentido repugnante da morte, como pútrido e contaminante, está fortemente preso às mentalidades. Nessa perspectiva, a morte não pode transcorrer na casa, junto à família.

 

 

C. Questões éticas da eutanásia e distanásia

 

Eutanásia (do grego = eu-tanasia) = morte serena, sem sofrimento, prática, sem amparo legal, pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável.

O Código Penal brasileiro, sob nenhuma hipótese não autoriza a eutanásia. Contudo, em certas circunstâncias muito especiais, quando alguém é portador de doença reconhecidamente pela ciência como incurável, situação terminal, com incalculável sofrimento, pode ser classificada homicídio privilegiado. Nesse caso, será possível os benefícios do parágrafo 1º do artigo 121 do Código Penal, podendo ser entendido auxílio ao suicídio, desde que o paciente solicite ajuda para morrer.

Art. 121 (…)

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (grifos nossos)

Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Desse modo, em qualquer das circunstâncias a eutanásia se configura conduta ilícita.

O mundo televisivo acompanhou em março de 2005, do drama familiar de uma doente norte americana, em coma vegetativo durante quinze anos, após a autorização judicial, em última instância, para interromper a alimentação e hidratação. A paciente morreu treze dias após serem interrompidos os cuidados médicos.

Distanásia representa o conjunto de ações médicas com o objetivo de empurrar os limites da morte, em consequência, em determinas condições, mantendo o sofrimento.

Ortotanásia pode ser entendida como a chegada da morte no seu processo natural. Nessa circunstância, a assistência médica não contribui para prolongar artificial e desnecessariamente o processo de morte. É importante assinalar que somente o médico poderá conduzir o processo da ortotanásia, portanto não sendo obrigado legal e eticamente a prolongar a vida contra a expressa vontade do paciente.

O Código Penal não contempla a ortotanásia já que não é determinante da morte na medida em que o processo da morte está em curso.

De certo modo, o drama daquela doente despertou atenção, em milhares de pessoas, em vários países no mundo, para o sofrimento dos doentes, com morte encefálica com comprovada, sem nenhuma oportunidade de se recuperarem, que têm a vida e o sofrimento prolongados pelas ações dos médicos, especialmente preparados par esse fim.

Essa discussão pública recebeu a atenção dos teóricos do Direito, da ética da moral, que se manifestaram acaloradamente em torno de concepções da dignidade e autonomia da pessoa humana para morrer.

Alguns questionamentos foram postos e que perduram até hoje:

– Poder das instituições hospitalares e do médico para manter a vida artificialmente dos doentes sem qualquer possibilidade de recuperação;

– Direito de pedir a própria morte quando o doente lúcido, sem possibilidade terapêutica e com sofrimento sentie que não deve mais sofrer;

– Na impossibilidade de o doente decidir, nas mesmas condições acima citadas, se alguém da família poderia decidir a hora da morte.

De modo geral, a discussão de ordem jurídica, ética e moral, alcançaram diferentes espaços das relações leigas e laicas. Sem unanimidade frente às várias correntes, a discussão acabou restrita aos abusos da tecnologia médico-hospitalar que transformou o doente terminal em mercadoria de valor, seja científico ou monetário.

É importante ressaltar que esse tipo de morte, dita hospitalar, é procedimento médico muito recente. Durante séculos, a morte de um ente querido, mesma plena de sofrimento, não era temida; as famílias não enviavam seus parentes com doenças terminais, para morrer nos hospitais. A chegada da morte inevitável era presenciada na casa da família, com o doente amparado pela família, inclusive as crianças. A morte não era vergonha que tinha de ser transferida para as unidades de tratamento intensivo.

De certo modo, nas últimas décadas, parecer existir maior rejeição pessoal e coletiva dos limites da vida. A pós a construção da falsa certeza de os hospitais e médicos poderem aumentar os limites da vida, não importa a qual preço, financeiro e emocional, sob qualquer circunstância, ninguém deseja ficar com o peso na consciência quando se trata de um ente querido, de “não ter feito tudo para que ele ou ela não morresse”. É claro que nesse “tudo” o hospital é a opção mais importante.

É necessário que se reafirme que essa estrutura teórica, sob hipótese alguma, representa a desistência tácita para entregar a vida à sorte. O que se trata é a estrutura ética e moral, sob várias leitura, inclusive a religiosa, de se manter a vida em sofrimento de doentes descerebrados e sem qualquer oportunidade de retornar a vida de relação.

Parece que a tendência, nos dias atuais, é retornar “à boa morte”, recusando ética e moralmente, que a vida de alguém sem qualquer possibilidade de recuperação física, especialmente os que não possuem nenhum sinal de atividade elétrica cerebral, seja adiada a qualquer preço.

A sociedade pós-industrial renova a luta pela morte digna. Por essa razão, também, a fundamentação ética e jurídica à morte digna está inserida na dignidade da pessoa humana viva. Prolongar a vida a qualquer preço, sustentando o sofrimento do doente, estaria em choque com a dignificação da própria vida. A compreensão da dignidade humana, a vivo e a do moribundo terminal, é a categoria central desse tema: aborto, eutanásia e distanásia – aspectos éticos.

Não é improvável que essa tendência, em muitos casos clínicos, de exagerar na manutenção da vida qualquer preço, inclusive com aumento do sofrimento do doente sem condição terapêuticas, favorece uma medicina tecnocientífica ou comercial-empresaria.

Esse confronto entre quem possui recursos para receber o melhor tratamento e os que não conseguem o acesso ao serviço público de assistência médica cunhou a categoria denominada mistanásia ou eutanásia social.

O compromisso com a promoção do bem-estar do doente crônico e terminal permite falar de saúde dele e valorizar os objetivos conceituais da ortotanásia, a boa morte, capazes de reproduzir tanto entre os doentes terminais, familiares e médicos, na medida em que, nessa perspectiva, a morte não é uma doença a curar, mas algo que faz parte da vida.

É importante ressaltar que a tendência dos órgãos fiscalizadores, públicos e privados, inclusive a Igreja, por meio da Bula Evangelium Vitae, de 1995, do papa João Paulo II, claramente valorizindo a ortotanásia e opondo-se aos excessos terapêuticos, afirmando que as renúncias aos meios excepcionais e desproporcionais para prolongar a vida, não correspondem ao suicídio ou a eutanásia.

 

 

LEITURA COMPLEMENTAR

 

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: breves considerações a partir do biodireito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 871, 21 nov. 2005(http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto. asp?id=7571>. Acesso em 15 fev. 2010.

BOTELHO, João Bosco. História de Medicina: da abstração à materialidade. Manaus. Valer. 2004.

BOTELHO, João Bosco. Arqueologia do prazer. Manaus. Metro Cúbico. 1992.

BOTELHO, João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Plexus. 1998.

BOTELHO, João Bosco. O Deus-genético. Manaus. EDUA. 2000.

NOËL, Didier. L’évolution de la pensée em éthique médicale. Paris. Conaissances et Savoirs. 2005.

VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e direito. São Paulo. Jurídica Brasileira. 1999, p. 90.)

http://fotosaborto.deog.net/012.html

http://www.ufrgs.br/bioetica/abortobr.htm

http://www.skyscraperlife.com/boteco/14530-aborto-no-brasil.html

http://aborto.aaldeia.net/estatisticas-aborto-mundo/

http://helioangotti.blogspot.com/2008/11/o-aborto-e-o-cdigo-de-tica-mdica.html



 

 

 

ABORTO, EUTANÁSIA E DISTANASIA: ASPECTOS ÉTICOS

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Apesar de constituírem temáticas circunstanciais diferentes, é possível pensar que os elos comuns e mais importantes entre os três temas – aborto, eutanásia e distanásia – sejam os complicados limites da vida e da morte, porque mesmo com motivações diversas, é exatamente nesse contexto que ocorre o encontro dos três temas: interrupção proposital da vida.

Dessa forma, é adequado considerar os aspectos éticos atados ao contexto social e histórico, incluindo as abordagens laica e religiosa, ambas atentas, ao longo da história, passada e presente, para regular, administrar e punir os excessos e as faltas cometidas por pessoas ou instituições no trato com os limites da vida e da morte.

Mais com a intenção pedagógica, apesar dos elos comuns que serão tratados como cernes da discussão acadêmica, os temas serão abordados separadamente.

 

1. Aborto

A relação dos poderes laicos, em diferentes instâncias, ao longo de quatro mil anos, tem adotado diversas atitudes frente ao aborto como método anticoncepcional. Em algumas, lidando com indiferença; em outras, punindo severamente.  Por outro lado, tanto nos livros sagrados das culturas politeístas, do milênio passado, quanto nos do monoteísmo, não parece que a interrupção intencional da gravidez, salvo pelo risco de morte materna, causasse tanta repulsa.

Por essas razões, na discussão ética do aborto cabe adicionar alguns aspectos históricos dos dois sistemas.

 

A. Aborto sob a vigilância de algumas idéias e crenças religiosas

 

Existem indicativos de que os poderes ligados às idéias e crenças religiosa, das sociedades, no primeiro milênio a. C., não fizeram interdição específica ao aborto como método anticoncepcional, salvo quando poderia provocar a morte da gestante.

Tanto o Antigo Testamento quanto o Novo Testamento, mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar, não citam uma só vez de modo explícito qualquer tipo de condenação à prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse qualquer importância para a coesão do grupo. A Bíblia não condena nem aprova a interrupção da gravidez. Na verdade, não existe nenhuma referência ao aborto.

É difícil aceitar que a ausência de citação bíblica seria porque as sociedades judias não conheciam essa forma de método anticoncepcional. Em poucas passagens, é mencionada a pena do agressor de uma mulher grávida, se a brutalidade resultasse em aborto. Mesmo assim, o castigo parecer ter sentido indenizatório.

Por outro lado, não é impossível que o aborto provocado, naquela época, determinasse a morte em prevalência assustadora, a ponto de assustar e desestimular.

O 2º Livro de Samuel, o episódio em que o rei Davi engravidou a mulher do general Urias, com a gravidez preste a ser descoberta pelo povo que acreditava no rei, o aborto não foi pensado. A opção do rei adúltero foi mandar matar o militar que se encontrava na frente de combate e casar com a viúva grávida.

 

A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100 da nossa Era: Não matarás criança por aborto, nem criança já nascido. O filósofo cristão Tertuliano (190‑197) também adotou a posição antiabortiva absoluta: É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá.

São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, argumentou: os semens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros. Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de tríplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos.

De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a separação etária dos fetos: Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.

Na Idade Média, a Igreja cristianizou algumas comemorações oriundas do politeísmo. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século IV, iniciando os atributos sagrados às concepções, seguida da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, e da Anunciação, ou festa da concepção de Cristo, respectivamente nos séculos VI e VII. Essas celebrações contribuíram para impor simbologia sagrada à gestação.

A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou os séculos. O magnífico Santo Tomás (1225‑1274) sustentou que não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.

O retorno da Igreja, verificado no século XIX, ao rigor do cristianismo do Didaqué tem dois componentes inseparáveis: um teológico e outro político. O primeiro, promovido pelo papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado. O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão de obra, já que historicamente o aborto e suas conseqüências maléficas alcançam mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres. No famoso discurso, dirigido às obstetras, em 1951, foi enfático ao atribuir vida intra-uterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do inocente:…Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus…Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente…visando sua destruição.

O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis.

Certas passagens do AT (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do NT (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18) valorizando a vida situando Deus como o único Senhor da vida e da morte, foram utilizados pelos teólogos para construir a doutrina oficial da igreja católica.

B. Aborto sob a vigilância laica

 

Os métodos abortivos utilizados como contraceptivos, foram usuais na antiguidade. Essa herança social chegou ao mundo grego‑romano. Os registros mostram que pouco importava à mulher daquela época o momento biológico mais propício para provocar o aborto. As regras sociais do politeísmo, no Oriente e no Ocidente, não empunhavam restrições. Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica, o Código de Hammu­rabi, do século XVII a. C., e as leis de Eshnunna (1825‑1787 a. C.) não fazem referência ao assunto.

A leitura do juramento de Hipócrates mostra a clara tendência anti-aborto dos médicos gregos da Escola de Cós: …Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provo­car aborto.

Por outro lado, houve certa indulgência em Aristóteles (Política, VII, 4) que aconselhava a interrupção da gravidez frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida.

Após a queda do Império Romano é fácil e imediato reconhecer a influência do pensamento cristão nas leis sobre o aborto. No século sexto os visigodos adotaram a pena de morte para quem quer que fornecesse drogas para provocar aborto. A mulher, se fosse escrava, seria punida por meio de castigos físicos; se fosse livre, seria degradada. No século seguinte a pena de morte passou a valer tanto para o vendedor da droga como para o marido da gestante, caso este ordenasse ou consentisse no crime.

Na França, até a Revolução Francesa, os médicos, cirurgiões e as parteiras que praticassem aborto, quando descobertas, eram condenados à forca. Com o advento da Revolução Francesa esta pena foi reduzida para vinte anos de cadeia.

Depois de quase dois mil anos de limitações impostas, ora pelos poderes ligados ao sagrado, ora pelo profano das estruturas sociais, a estimativa do número de abortos ilegais provocados por ano no mundo é impressionante:

–       Número de abortos por ano: entre 46 a 55 milhões;

–       Cerca de 26 milhões de abortos legais;

–       Cerca de 20 milhões de abortos são ilegais;

–       Numero de abortos por dia: aproximadamente 126.000;

–       78% de todos os abortos são realizados em países em desenvolvimento e os restantes 22% em países desenvolvidos;

–       Aproximadamente 97 países, com cerca de 66% da população mundial, têm leis que em essência permitem o aborto induzido;

–       Noventa e três países, com cerca de 34% da população, proíbem o aborto ou permitem o aborto apenas em situações especiais como deformações do feto, violações ou risco de vida para a mãe.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Atualmente, no Brasil, o aborto é considerado crime, exceto: gestação como produto de estupro e risco de vida materna e, mais recentemente, quando constatada anomalias fetais incompatíveis com a vida, como a anencefalia.

Um dos estudos mais importantes identificando o perfil das mulheres que usam o aborto como método anticoncepcional foi realizado pela Universidade Federal de Pelotas. Alguns dados são interessantes para mostrar a gravidade do problema:

– Mais freqüente entre mulheres com idade entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, católicas e com pelo menos um filho;

– A maior parte é adolescente;

– O medicamento de venda controlada Misoprostol, foi apontado como principal método abortivo utilizado pelas brasileiras;

– Mais de 1 milhão de gestações foram interrompidas em 2005;

– Cerca de 200 mil mulheres foram hospitalizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) em decorrência de tentativas de aborto em 2005;

– Em 2005, pelo menos 3,7 milhões de brasileiras entre 15 e 49 anos realizaram aborto, representando  7,2% das mulheres em idade reprodutiva;

– De 51% a 82% dos abortos são realizados por mulheres entre 20 e 29 anos;

– Entre 7% a 9% são adolescentes;

– Mais de 50% das mulheres que abortaram nas regiões Sul e Sudeste usavam algum método anticoncepcional, principalmente pílulas. No Nordeste, essa porcentagem oscila entre 34% e 38,9%;

– A maior parte das mulheres que fizeram aborto se declarara católica, com 51% a 82% de prevalência, seguida pela que professa a fé espírita, com 4,5% a 19,2%. Em último lugar estão as evangélicas, entre 2,6% e 12,2%;

A Organização Mundial de Saúde publicou que o Brasil já tem maior número de abortos do que de nascimentos. Os estudos da OMS e de outras entidades de direitos humanos, mostram que a mortalidade e a morbidade são atenuadas com a melhor assistência do Estado. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir de 1973, quando a Suprema Corte legalizou o aborto, com severas restrições à realização em hospitais públicos, em menores de idade e em gestantes com mais de dois meses de gravidez.

A tendência pró‑aborto iniciada na Europa, nos anos setenta, é hoje mundial. Nos últimos quinze anos, pelo menos vinte países modificaram as suas leis. Na Itália, o mais católico dos países da Europa, a legalização do aborto provocou muito conflito. Só depois de cinco anos de debates no Parlamento, em 1975, e com a ajuda da frente laica, reunindo os representantes de todos os partidos políticos, foi aprovada a mudança. O plebiscito, realizado no papado de João Paulo II, mostrou que 70 % dos italianos aprovaram a lei.

As estatísticas mundiais, notadamente, nos países de tradição cristã, evidenciam o aumento do número dos abortos provocados. Mesmo com essa clareza, continua em plena efervescência essa discussão, na medida em que todos concordam ser necessário monitorar a decisão da busca do aborto como metido anticoncepcional, notadamente, se a mulher que pretende abortar é menor de idade.

Na França, a permissão legal para o aborto alcança os embriões de 14 semanas. Contudo, a entrevista obrigatória com equipe especializada, que antecede o ato médio, nos hospitais públicos, e o apoio governamental no sustento futuro da criança, consegue reverter a decisão em mais da metade dos casos

A análise dos dados estatísticos, continua alimentado as seguintes questões:

1. As proibições profanas e sagradas não modificaram, em quase dois mil anos, o comportamento das mulheres quando decididas em utilizar o aborto como método ­anticoncepcio­nal;

2. Nas sociedades com problemas de superpopulação, pode ocorrer o estímulo público e institucional ao aborto como forma de controle populacional.

 

            C. O aborto frente ao Código de Ética Médica

 

O artigo 54 do Código de Ética impõe ao médico que não provoque aborto, salvo exceções referidas no artigo 128 do Código Penal.

Para que possa realizar o aborto, o médico deverá consultar, em conferência, dois colegas, lavrando a seguir uma ata em três vias. Uma, será enviada ao Conselho Regional de Medicina; outra, ao diretor clínico do hospital ou clínica, pública ou privada; a terceira via ficará sob a guarda do médico assistente, responsável pela internação hospitalar da paciente.

O tema aborto, com seus diferentes enfoques, está presente direta ou indireta em pelo menos 21 artigos do Código de Ética Médica (1, 2, 6, 7, 8, 11, 16, 20, 21, 28, 42,  43, 46, 47, 56, 59, 61, 67, 102, 103, 142). Contudo, os artigos 42 e 43 são mais específicos:

Art. 42 – É vedada ao médico a prática ou indicação de atos desnecessários ou proibidos pela legislação do país;

Art. 43 – É vedado ao médico o descumprimento da legislação específica nos casos de transplantes de órgão ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento.

Por outro lado, o artigo 128 do Código Penal, que trata de crimes contra pessoas, diz que não se pune o aborto praticado por médico se:
I – não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário);
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando menor ou incapaz, de seu representante legal. (Aborto no caso de gravidez resultante de estupro).

 

2. EUTANÁSIA E DISTANÁSIA

 

A complexidade do tema reforça a necessidade de ampliar a discussão, mantendo o eixo central em torno dos aspectos éticos, para dois aspectos:

– Genético: a rejeição atávica à morte é inerente ao seu humano, já que os corpos vivos multicelulares, de todas as espécies, muito especialmente, o da espécie Homo sapiens, foi organizado geneticamente, ao longo de milhares de anos, para manter a vida – a morte rejeitada;

– Social: a certeza da inevitabilidade da morte – a boa morte.

 

A. Morte rejeitada

 

A necessidade incontrolável de dar sentido à vida, diferente dos outros animais, e de minimizar a morte, expressa com transparência na História, contribuiu para materializar, como opostos, a saúde e a doença. A primeira, sinônimo de vida, ficou ligada ao bem; a segunda, ao mal, antecipava a morte, sempre temida.

A pulsão inata para desvendar a forma visível, em especial o corpo, dotado com propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e do desconforto, pode ser considerada como a primeira verdade material. É verdadeira em si mesma, porque dá forma ao viver, num movimento caleidoscópico, composto pela carnalidade da pele quente, pela realidade dos sentidos, da respiração e do ritmo cardíaco. Atinge e entrelaça o ser no mundo, através de um alucinado reproduzir.

Quando a morte advém, como antítese da vida, descolora o tegumento cutâneo, resfriando-o e tornando-o insensível ao pior dos tormentos: a dor. O movimento respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria existência e rejeita a morte refletida no corpo endurecido, sem movimentos, na pele indolor e fria.

Os homens e as mulheres para reafirmarem a vida como episódio permanente, serve-se da ficção, domina e vivifica o corpo inanimado, prolonga a verdade material básica na crença de um renascimento, premiado ou castigado, nos moldes da vida vivida.

É a dialética fundamental entre a vida e a morte, atando com uma ligadura indissolúvel o ser-tempo (homen-vivo) e o objeto (homem-morto). Ambos são partes da mesma realidade, por isso, essenciais. Contudo, somente um percebe o outro. Por essa razão, é capaz de transfigurar, quando aprouver, o objeto perceptível, pensá-lo vivo, renascido, em outro lugar.

A técnica humana, transformadora da natureza circundante, é o pilar sustentador que aprimora e prolonga os sentidos, marcando a separação do ser-tempo (homem vivo) do objeto (homem morto) dos outros animais. Os saberes historicamente acumulados buscam na morte rejeitada as razões para viver com conforto, sem frio, sem fome.

O conjunto sociocultural, presente na memória, adquirida e transmitida, geração após geração, desempenhou papel de extrema importância nas mentalidades.

Os atuais saberes ocidentais, em parte marcados pela influência cultural greco-romana, uniram esse patrimônio, perdido nos confins enigmáticos do tempo indivisível.

A pólis, organizada à semelhança do corpo saudável, passou a ser compreendida como um organismo vivo. Ao contrário, o caos social era sinônimo de doença[i]. O administrador competente era aquele que curava a sociedade deficitária. O próprio juízo de valor das condutas pessoais foi estabelecido, utilizando as emoções humanas como parâmetro.

No mundo mágico, a passagem de um para o outro lado, envolvendo mudanças nas coisas e nos acontecimentos, implicando riscos à saúde e à vida, funcionando como pólos opostos, tem sido comunicada ao homem e à mulher pelo sacerdotes, representantes do outro mundo que acolhe os mortos renascidos, o mundo dos seres-não-tempo. Esses especialistas do sagrado, apesar de não negarem o conhecimento empírico da natureza circundante, confessa ser incapaz de compreender a vontade divina, limitando-se a obedecer e implorar a misericórdia, através dos ritos específicos para abrandar a ira transcendente.

O poder de curar pessoas e sociedades e adivinhar os infortúnios, evitando a enfermidade, para melhor organizar um determinado grupo social, oferecendo a saúde e adiando a morte, tem sido historicamente utilizado pelo poder político, como mecanismo de coesão e controle sociais.

O sofrimento e a morte da pessoa amada determinam transtornos muito complicados, em diferentes níveis do corpo, trazendo incontáveis sinais físicos de desconforto, variando em cada pessoa. O sistema nervoso  libera substâncias que alteram o ritmo biológico e estabelecem a baixa global da defesa imunológica inata.

A ansiedade, entendida como sensação de perigo iminente, interferindo na sociabilidade dos que vêm a morte, provoca complexas mudanças nos ciclos do sono, da fome, da sede, da libido e da afeição, ainda pouco compreendidas, na neurobiologia.      O lento avançar da Medicina molecular já identificou muitas substâncias que atuam no controle das emoções que envolvem a dor e o prazer. A maior parte dos milhões de trocas químicas específicas processadas, em cada instante, nos tecidos, está voltada para manter o ser vivo e embotar, temporária ou perenemente, as sensações desagradáveis e perturbadoras.

Parece lógico supor que as atitudes específicas, usadas para enfrentar a adversidade temida, minorando o sofrimento do homem e da mulher, tenham sido valorizadas e, continuamente, aperfeiçoadas pela ordem social, por trazerem resposta de bem-estar.

As ações humanas, transformando a natureza, para atenuar o desconforto, são imperativas. Estão ligadas direta e indiretamente aos mecanismos neuroquímicos endógenos auto-reguláveis.

Os dois atos, o externo, no circundante, e o interno, na célula, ajudam o corpo a criar mecanismos defensivos, quando o nível de agressão passa dos limites suportáveis.

As dores, física e mental, determinadas pela ferida, na carne dilacerada no acidente traumático ou na morte da mulher amada, como pagamento e castigo, são sempre temidas. Parecem que representam, ao mesmo tempo, a inspiração dos poetas e a arma preferida da insanidade para aqueles que exigem o apagar dos sentidos, a fim de limitar, pelo pavor, o confronto das idéias no exercício da livre consciência.

Diversas circunstâncias, do homem chorando a perda do amor ao suplício do torturado pelas ditaduras da direita e da esquerda, determinam o alerta dos sentidos e modificações significativas em todos os órgãos, em níveis moleculares, hoje inacessíveis.

Uma das características mais intrigantes é como a dor altera a noção do tempo. Suportar o desconforto doloroso, por um minuto, é como estar sofrendo na imensidão do infinito. Durante a manipulação dentária, quando a pequena broca alcança o nervo sensitivo, as sensações cerebrais são indescritíveis. Ao contrário, a hora de prazer corre como um breve instante.

Por essa razão, é impossível manter, durante muito tempo, a dor fulgurante. De pronto, todos os sentidos natos atiçam para evitá-la ou os sentidos são apagados, pela inconsciência forçada, para aliviar o desastre biológico.

Qualquer pessoa, capaz de interromper o sofrimento, afastar o perigo da morte prematura, é identificada, no conhecimento historicamente acumulado, com amigo, aliado paternal ou filial, ou mesmo, uma divindade.

Por outro lado, nas circunstâncias em que a vida em si relembra o sofrimento incontornável, naquele momento, a morte, antecipada pelo suicídio, pode significar a única saída.

As reações corpóreas de todos os animais precisam dessas defesas, presentes na organização atávica dos corpos, para continuar vivendo e reproduzindo. A espécie humana elabora muitas substâncias específicas, já citadas, auto-requisitadas pelas trocas biológicas, independentes da vontade, para modular a dor. Existem moléculas especiais, acopladas às membranas celulares, no sistema nervoso central, dotadas de receptividade especifica aos derivados opiáceos naturais, auto-produzidos no corpo.

O imaginável renascimento de homens e mulheres, portadores do dom de curar, ambos rejeitando a morte e empurrando milagrosamente os limites da vida, tem acompanhado todas as sociedades, desde tempos imemoriais, ricos e pobres, numa dimensão e repetição que não podem ser atribuídas somente ao ordenamento social.

A certeza dessas associações, desde muito tempo, ficou mais transparente, a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontradas nos sítios arqueológicos, assírios e babilônicos. Ficou esclarecido o intrigante sinônimo das palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento.

Também é possível evidenciar que os sacerdotes e os médicos, em muitas culturas no segundo milênio a.C. exerceram, simultaneamente, a mesma função. Por essa razão, os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados. A posse do dom de curar, de empurrar os limites da morte, oferece mais poder a quem detém esse poder. Coloca-o em destaque na comunidade, porque traz a cura. É freqüente encontrar esses personagens como intermediário das divindades.

A crença no renascimento após a morte continua sendo um dos mais valorosos artifícios da ficção, para atenuar a morte rejeitada. As práticas religiosas valorizadoras dos mortos e as que os reintegram ao mundo dos vivos, exercem fascínio irresistível. As manifestações estéticas, em todos os tempos, apesar das metamorfoses sofridas, repetem, sem cessar, a sedução do renascer.

Desse modo, manter o moribundo vivo a qualquer custo, mesmo com sofrimento, não tem sido uma atitude sem fundamento social

 

B. Boa morte

 

No século 9, os cavaleiros supuseram premonições específicas sobre a própria morte. Existem alguns textos sobre o tema, onde se pode ler: “ele sabia que sua morte estava próxima…”. O aviso era materializado por meio de certos acontecimentos não usuais ou, muitas vezes, pelo convencimento de que a morte estava próxima. Quando a pessoa se convencia desse fato, aguardava a morte deitado, junto à família. Essa atitude é reconhecida nas esculturas supulcrais desde o século 12.

Nos séculos seguintes, outro rito fúnebre é introduzido: o moribundo se lamentava das tristezas da vida, pedia perdão das pessoas próximas, recomendava os amigos a Deus, seguido da extrema-unção.

Sob essa perspectiva a morte era uma cerimônia pública, com livre entrada para todos ao quarto do moribundo, parentes, amigos, vizinhos, crianças de todas as idades. Não havia medo nem vergonha da morte inevitável. A quantidade de pessoas era tão grande, todos desejando ver a paciente próximo da morrer, que os médicos, no final do século 16, se queixavam do grande número de pessoas junto ao leito do agonizante.

Esses ritos da morte – boa morte – eram aceitos e cumpridos sem emoção excessiva. Assim incontáveis pessoas, na Europa central, no medievo, ricos e pobres morreram.

Era a morte era familiar, a boa morte.

Com o passar do tempo, os ritos modificaram para absorver o sentido dramático, de dor, de inconformidade, de repulsa à morte. O ritual da boa morte, sereno, ao lado da família, amigos e vizinhos, foi sendo substituído por outro, dramático, doloroso, causando sofrimento nos que assistiam. Algumas figuras metafóricas que tratam dessa fase são as “danças macabras”, no leste da França a na Alemanha. O horror da morte é reconhecido, a feiúra, a agressão da morte desfigurando o vivo. Essa morte feia e a decomposição do corpo foram temas da poesia dos séculos 15 e 16. O cheiro pútrido do corpo decomposto pela morte toma o sentido macabro e temido.

Atualmente, esse sentido repugnante da morte, como pútrido e contaminante, está fortemente preso às mentalidades. Nessa perspectiva, a morte não pode transcorrer na casa, junto à família.

 

 

C. Questões éticas da eutanásia e distanásia

 

Eutanásia (do grego = eu-tanasia) = morte serena, sem sofrimento, prática, sem amparo legal, pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável.

O Código Penal brasileiro, sob nenhuma hipótese não autoriza a eutanásia. Contudo, em certas circunstâncias muito especiais, quando alguém é portador de doença reconhecidamente pela ciência como incurável, situação terminal, com incalculável sofrimento, pode ser classificada homicídio privilegiado. Nesse caso, será possível os benefícios do parágrafo 1º do artigo 121 do Código Penal, podendo ser entendido auxílio ao suicídio, desde que o paciente solicite ajuda para morrer.

Art. 121 (…)

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (grifos nossos)

Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Desse modo, em qualquer das circunstâncias a eutanásia se configura conduta ilícita.

O mundo televisivo acompanhou em março de 2005, do drama familiar de uma doente norte americana, em coma vegetativo durante quinze anos, após a autorização judicial, em última instância, para interromper a alimentação e hidratação. A paciente morreu treze dias após serem interrompidos os cuidados médicos.

Distanásia representa o conjunto de ações médicas com o objetivo de empurrar os limites da morte, em consequência, em determinas condições, mantendo o sofrimento.

Ortotanásia pode ser entendida como a chegada da morte no seu processo natural. Nessa circunstância, a assistência médica não contribui para prolongar artificial e desnecessariamente o processo de morte. É importante assinalar que somente o médico poderá conduzir o processo da ortotanásia, portanto não sendo obrigado legal e eticamente a prolongar a vida contra a expressa vontade do paciente.

O Código Penal não contempla a ortotanásia já que não é determinante da morte na medida em que o processo da morte está em curso.

De certo modo, o drama daquela doente despertou atenção, em milhares de pessoas, em vários países no mundo, para o sofrimento dos doentes, com morte encefálica com comprovada, sem nenhuma oportunidade de se recuperarem, que têm a vida e o sofrimento prolongados pelas ações dos médicos, especialmente preparados par esse fim.

Essa discussão pública recebeu a atenção dos teóricos do Direito, da ética da moral, que se manifestaram acaloradamente em torno de concepções da dignidade e autonomia da pessoa humana para morrer.

Alguns questionamentos foram postos e que perduram até hoje:

– Poder das instituições hospitalares e do médico para manter a vida artificialmente dos doentes sem qualquer possibilidade de recuperação;

– Direito de pedir a própria morte quando o doente lúcido, sem possibilidade terapêutica e com sofrimento sentie que não deve mais sofrer;

– Na impossibilidade de o doente decidir, nas mesmas condições acima citadas, se alguém da família poderia decidir a hora da morte.

De modo geral, a discussão de ordem jurídica, ética e moral, alcançaram diferentes espaços das relações leigas e laicas. Sem unanimidade frente às várias correntes, a discussão acabou restrita aos abusos da tecnologia médico-hospitalar que transformou o doente terminal em mercadoria de valor, seja científico ou monetário.

É importante ressaltar que esse tipo de morte, dita hospitalar, é procedimento médico muito recente. Durante séculos, a morte de um ente querido, mesma plena de sofrimento, não era temida; as famílias não enviavam seus parentes com doenças terminais, para morrer nos hospitais. A chegada da morte inevitável era presenciada na casa da família, com o doente amparado pela família, inclusive as crianças. A morte não era vergonha que tinha de ser transferida para as unidades de tratamento intensivo.

De certo modo, nas últimas décadas, parecer existir maior rejeição pessoal e coletiva dos limites da vida. A pós a construção da falsa certeza de os hospitais e médicos poderem aumentar os limites da vida, não importa a qual preço, financeiro e emocional, sob qualquer circunstância, ninguém deseja ficar com o peso na consciência quando se trata de um ente querido, de “não ter feito tudo para que ele ou ela não morresse”. É claro que nesse “tudo” o hospital é a opção mais importante.

É necessário que se reafirme que essa estrutura teórica, sob hipótese alguma, representa a desistência tácita para entregar a vida à sorte. O que se trata é a estrutura ética e moral, sob várias leitura, inclusive a religiosa, de se manter a vida em sofrimento de doentes descerebrados e sem qualquer oportunidade de retornar a vida de relação.

Parece que a tendência, nos dias atuais, é retornar “à boa morte”, recusando ética e moralmente, que a vida de alguém sem qualquer possibilidade de recuperação física, especialmente os que não possuem nenhum sinal de atividade elétrica cerebral, seja adiada a qualquer preço.

A sociedade pós-industrial renova a luta pela morte digna. Por essa razão, também, a fundamentação ética e jurídica à morte digna está inserida na dignidade da pessoa humana viva. Prolongar a vida a qualquer preço, sustentando o sofrimento do doente, estaria em choque com a dignificação da própria vida. A compreensão da dignidade humana, a vivo e a do moribundo terminal, é a categoria central desse tema: aborto, eutanásia e distanásia – aspectos éticos.

Não é improvável que essa tendência, em muitos casos clínicos, de exagerar na manutenção da vida qualquer preço, inclusive com aumento do sofrimento do doente sem condição terapêuticas, favorece uma medicina tecnocientífica ou comercial-empresaria.

Esse confronto entre quem possui recursos para receber o melhor tratamento e os que não conseguem o acesso ao serviço público de assistência médica cunhou a categoria denominada mistanásia ou eutanásia social.

O compromisso com a promoção do bem-estar do doente crônico e terminal permite falar de saúde dele e valorizar os objetivos conceituais da ortotanásia, a boa morte, capazes de reproduzir tanto entre os doentes terminais, familiares e médicos, na medida em que, nessa perspectiva, a morte não é uma doença a curar, mas algo que faz parte da vida.

É importante ressaltar que a tendência dos órgãos fiscalizadores, públicos e privados, inclusive a Igreja, por meio da Bula Evangelium Vitae, de 1995, do papa João Paulo II, claramente valorizindo a ortotanásia e opondo-se aos excessos terapêuticos, afirmando que as renúncias aos meios excepcionais e desproporcionais para prolongar a vida, não correspondem ao suicídio ou a eutanásia.

 

 

LEITURA COMPLEMENTAR

 

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Eutanásia, ortotanásia e distanásia: breves considerações a partir do biodireito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 871, 21 nov. 2005(http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto. asp?id=7571>. Acesso em 15 fev. 2010.

BOTELHO, João Bosco. História de Medicina: da abstração à materialidade. Manaus. Valer. 2004.

BOTELHO, João Bosco. Arqueologia do prazer. Manaus. Metro Cúbico. 1992.

BOTELHO, João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Plexus. 1998.

BOTELHO, João Bosco. O Deus-genético. Manaus. EDUA. 2000.

NOËL, Didier. L’évolution de la pensée em éthique médicale. Paris. Conaissances et Savoirs. 2005.

VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e direito. São Paulo. Jurídica Brasileira. 1999, p. 90.)

http://fotosaborto.deog.net/012.html

http://www.ufrgs.br/bioetica/abortobr.htm

http://www.skyscraperlife.com/boteco/14530-aborto-no-brasil.html

http://aborto.aaldeia.net/estatisticas-aborto-mundo/

http://helioangotti.blogspot.com/2008/11/o-aborto-e-o-cdigo-de-tica-mdica.html



 

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