Práticas médicas nas sociedades do antigo Oriente Próximo: Egito, Mesopotâmia e Índia

Práticas médicas nas sociedades do antigo Oriente Próximo: Egito, Mesopotâmia e Índia

 

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Considerações gerais

 

Com as mudanças sociais, políticas e econômicas provocadas pelo processo de sedentarismo, nos milênios finais do Neolítico, importantes modificações se processaram nas primeiros aldeamentos no antigo Oriente Próximo: Egito, Mesopotâmia e Índia.

Essas sociedades absorveriam a experiência acumulada em milhares de anos de luta pela sobrevivência dos grupos nômades de caçadores-coletores.

Nessa fase, teve início a modificação da economia produtora em nível de subsistência coletiva, para a concreta divisão de trabalho, com o aparecimento de excedentes de produção, trocas comerciais e propriedade privada.

As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. A propriedade privada contribuiria, entre muitos fatores, no assentamento duradouro dos grupos humanos ligados por vínculos de sangue ou interesses comuns.

O aparecimento dos aldeamentos, socialmente estratificados, voltados à guarda do território ocupado se seguiu como resposta à premência da organização social, para sobreviver aos conflitos de interesses internos e externos.

Como sequência, não linear, as cidades se agigantaram, inicialmente, nas margens dos rios e lagos férteis, e, como produto dessa transformação iniciaria as civilizações regionais. As culturas assimilaram, ao longo do processo das respectivas consolidações, diferentes formas de administração, predominando o teocrático de regadio e o mercantil-escravista.

As contínuas guerras entre grupos rivais ao mesmo tempo em que renovavam as lideranças guerreira transformavam o poder com o butim. Os territórios ampliados incorporavam os escravos detentores de saberes que interessavam a organização e à ordem social dominante.

O avanço na transformação acelerada da natureza circundante alcançou níveis inimagináveis. Os metais foram fundidos, uso dos artefatos de cobre e ferro, mecanização da agricultura substituiu os arados primitivos, domesticação dos animais de tração e deslocamento, e o barco à vela constituíram condições para fomentar as trocas dos excedentes da produção e aumentar a especialização das habilidades pessoais.

Nessa etapa, a anterior crença na possibilidade de renascer após a morte, ligada aos sepultamentos rituais desde o terço inferior do Mesolítico, interferiu para que o corpo humano fosse manuseado internamente, por especialistas do sagrado, nos templos, no esforço para conservá-lo após a morte, aparentemente, sem nenhum objetivo de conhecer e nominar as diferenças anatômicas.

As sociedades que se desenvolveram, no antigo Oriente próximo – Egito, Mesopotâmia e Índia – apresentaram significativas semelhanças nas concepções que sustentavam a Medicina, especialmente, nos estreitos laços com as idéias e crenças religiosas e os respectivos deusas e deuses dos muitos panteões.

            Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial

Nas sociedades que floresceram, entre 4.000 anos e 5.000 anos, nas margens dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e Indo, de modo mais ou menos uniforme, os registros assinalam que, além dos agentes da Medicina-empírica e Medicina-divina, os médicos como agentes da Medicina-oficial, nominados de acordo com as funções e especialidades e remunerados pelo poder político dominante.Igualmente, também está clara a inter-relação da Medicinas-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, sempre atadas entre si, sem se poder estabelecer os limites precisos onde uma começava e a outra terminava.

É razoável se pensar que a construção das respostas, nas primeiras cidades, às demandas sociais quanto à insegurança criada pela dor fora de controle e o medo da morte prematura, tenha envolvido pelo menos:

– Aplicação do conhecimento historicamente acumulado voltado às ações que poderiam interromper ou amenizar a dor fora de controle: agentes da Medicina-empírica;

– Utilização de ritos das idéias e crenças religiosas, para buscar a cura: agentes da Medicina-divina;

– Processo formador, nos templos das divindades dominantes, sob a guarda do poder político, capaz de transmitir e registrar nas respectivas linguagens orais e escritas, os saberes envolvendo os dois anteriores acrescidos de outras observações das doenças e dos doentes: agentes da Medicina-oficial.

Dessa forma, se consolidou três processos interligados para abordar as demandas provocadas pelas doenças, secundárias ou não do trauma:

– Medicina-divina: com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e taumaturgos;

– Medicina-empírica: utilizando o conhecimento historicamente acumulado a partir dos recursos terapêuticos da natureza circundante;

– Medicina-oficial: representada pelas práticas de curas realizadas médicos, desfrutando de reconhecidos e remuneração pelo poder dominante.

 

As civilizações regionais assimilaram, ao longo de vários milênios, diferentes formas de governos, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista. Nessas sociedades rigidamente hierarquizadas, moldaram a ação dos curadores em torno de três vertentes, sem que existissem limites precisos:

As guerras ofereceram saques, novos escravos e territórios, fortaleceram a troca de conhecimentos entre os agentes de curas. É muito provável que os mais destacados tenham sido absorvidos nas sociedades vencedoras. Por outro lado, os traumas provocados pelo combate corpo a corpo, acrescentaram outros saberes, principalmente, no manuseio das grandes feridas, incisão de abscessos, imobilização das fraturados e nas amputações dos membros dilacerados.

Apesar de as práticas médicas serem executadas sem qualquer processo teórico para explicar a saúde e a doença, é possível perceber certos aspectos das compreensões e registros das doenças tomaram direções diferentes.

Por essa razão, alguns aspectos das Medicinas das três civilizações – Egito, Mesopotâmia e Índia – serão feitas separadamente.

 

Processo histórico da Medicina como especialidade social

Considerações gerais

 

Egito

 

Infelizmente os dados disponíveis das práticas médicas dizem respeito, exclusivamente, às camadas sociais dominantes.

Como as outras civilizações regionais estruturadas ao lado dos rios férteis, a egípcia desenvolveu-se nas margens piscosas do Nilo, de onde retiravam o sustento alimentar a população.

A civilização egípcia antiga permaneceu como unidade territorial pelo período de três mil anos, mais ou menos, entre 3.300 e 332 d.C., correspondente à conquista pelo exército de Alexandre, o Grande. Esse tempo, excepcionalmente longo, é dividido em cinco períodos:

– Primeiro período ou Antigo Império, de 2.647 a 2.140 a. C., das III a VI dinastias. Considerado o mais próspero, no qual foram produzidas algumas obras monumentais que perduram até hoje;

– Segundo período ou Médio Império, de 2.040 a 1.785 . C., das XI a XII dinastias, quando ocorreram importantes restaurações e acréscimo de novos monumentos;

– Terceiro período ou Novo Império, de 1.540 a 1.069 a.C., das XVIII a XX dinastias;

– Quarto período, de 1.069 a 333 a. C., com variações de grande prosperidade passando pela conquista de três exércitos: o assírio (663 a. C.), o persa (525 a. C.) e o grego;

– Quinto período greco-romano, de 332 a 30 a. C., até a falência do modelo administrativo.

As fontes históricas são compostas de documentos reveladores de como os egípcios, pelos menos os mais ricos, se relacionavam com a saúde e a doença, a vida e a morte: os papiros, múmias, pinturas e esculturas:

Papiros:

– Papiros: constituem a mais importante fonte de conhecimento da Medicina egípcia. Os principais são:

Papiro de Ebers: o nome corresponde ao primeiro comprador do papiro, George Ebers, que o adquiriu, em 1872 de um desconhecido egípcio. O autor ou autores escreveu(ram), em torno de 1550 a.C., durante o reinado de Amenophis I. Alguns especialistas acreditam que é a cópia de outro documento ainda mais anterior. Trata-se de conjunto de textos de natureza médica, mais tratamentos clínicos não invasivos, predominando princípios terapêuticos e farmacológicos, contendo 875 receitas, nem sempre interrelacionados, com 20 metros de cumprimento, em perfeito estado de conservação, encontra-se hoje na universidade de Leipzig, na Alemanha.

Além de incomensurável valor histórico, contém importantes diagnósticos e prescrições específicas para várias doenças, especialmente as do coração. Em uma das descrições, está claro não só o quadro clínico sugestivo do infarto do miocárdio, mas, especialmente, como o médico deveria se comportar, comunicando ao doente que nada poderia fazer para evitar a morte:

“Se examinares um homem que sofre do estômago, que se queixa de dores no braço e no peito, mais precisamente na parte lateral…Diz-se então que se trata da doença wid…Deves dizer: é a morte que se aproxima dele”.

De modo geral, o papiro de Ebers apresenta receitas para:

– Aumentar o apetite;

– Melhorar a função intestinal e a digestão;

– Dores reumáticas;

– Paralisia dos membros;

– Estados gripais;

– Doenças dos olhos;

– Doenças do ouvido;

– Doenças do estômago;

– Doenças do fígado;

– Obstruções intestinais;

– Doenças pulmonares;

– Mordeduras de animais;

– Queimaduras;

– Cuidados com a pele e o cabelo;

– Poliúria;

– Doenças dos dedos e das mãos;

– Cuidados com os dentes e a língua;

– Doenças ginecológicas;

– Abscessos e tumores;

– Doenças do coração;

– Hérnia inguinal;

– Angina do peito;

– Gastrite;

– Conjuntivite;

– Otites.

Papiro Smith: achado em uma tumba em Tebas e comprado por Edwin Smith, em 1862, um jovem egiptólogo americano. Apesar de ter sido escrito, em torno de 1540 a 1600 a. C., na XVIII dinastia, do mesmo modo que o anterior parece ser a compilação de documentos mais antigos, no Antigo Império. Trata-se de bem ordenado conjunto de informações mais voltado aos procedimentos cirúrgicos, de anatomia e tratamentos de doenças cirúrgicas. A Instrução 35 descreve com incrível atualidade o diagnóstico e o tratamento da fratura bilateral da clavícula:

“Se você estiver examinando um homem com fratura hsb em ambas as clavículas, encontrando ambas as clavículas, uma mais curta e em posição que difere em relação à segunda, então você tem que dizer: trata-se de uma fratura em ambas as clavículas, uma enfermidade de que eu cuido. Você deve deitá-lo então de costas, dobrando algum objeto para colocá-lo entre suas omoplatas. Depois deverá afastar as omoplatas para que as duas clavículas se estiquem, de modo que aquela fratura hsb retorne ao lugar certo. Faça então dois chumaços de tecido. Um deles você deve colocar do lado de dentro da parte superior do braço, o outro na parte inferior do úmero. Depois você deve colocar nela (na fratura) uma atadura com imr mineral w…”.

Parte significativa é dedicada ao diagnóstico, tratamento e prognóstico dos traumatismos. As descrições pormenorizadas incluem o quadro clínico dos traumas faciais, pescoço, clavícula, úmero, esterno, tórax, costelas, ombro, coluna lombar.

– Anatomia cirúrgica;

– Cautério;

– Curativos;

– Redução e imobilização das fraturas;

– Sinais clínicos distinguindo a fratura da luxação;

– Importância da crepitação óssea;

– Luxação da mandíbula;

– Paralisia dos membros secundária ao trauma da coluna e do crânio;

– Prognóstico ligado aos recursos disponíveis para beneficiar o doente.

Papiro de Berlin ou de Brugsch: escrito em 1540 a. C., na XVIII dinastia, contém prescrições em forma de encantamentos para proteger as mães e seus filhos.

Papiro de Londres: descreve ritos mágicos para curar as doenças dos olhos e das mulheres.

O conteúdo dos papiros de Berlin e Londres quanto os diagnósticos e receitas é muito sugestivo do quanto fazia parte do cotidiano das relações sociais a presença de agentes da Medicina-empírica e Medicina-divina exercendo ritos de curas, não ligados aos médicos, remunerados pela administração do faraó.

Papiro de Kahoun: é o mais antigo dos papiros. Escrito em torno de 2.000 a. C., abrangendo as doenças ginecológicas e obstétricas. De certa forma, a antiguidade desses registros retrata a importância da gestação e frequência de certas doenças ginecológicas, como o corrimento vaginal purulento, ambas requerendo maior atenção doa agentes da Medicina-oficial, especialmente, nas mulheres mais ricas.

Papiro Cheaster Beatty: data da XIX dinastia, em torno de 1.300 a. C., descreve as doenças e os tratamentos das doenças e do ânus. Como o papiro anterior, o conteúdo especificamente voltado para dois itens pode ser entendido como de demonstração da maior incidência das doenças da pele e do ânus em relação às outras, já que essa população morava em área de várzea, com animais domesticados, pressupondo lesões de pele pela excessiva exposição solar e muitos tipos de infestações com repercussão anal e perianal.

Múmias:

Os estudos paleopatológicos são instrumentos para determinar, com bastante precisão, doenças presentes nos corpos mumificados em diversas épocas;

Pinturas e esculturas:

Objetos artísticos, como as estátuas e pinturas de imagens e textos em hieróglifo, nos templos, sarcófagos e tumbas, nas quais estão representadaa algumas doenças que afligiam os egípcios..

O povo egípcio antigo manteve vivo, ao longo de três mil anos, panteões que variavam em certas dinastias, plenos de deusas e deuses taumaturgos. Os nomes dos curadores sagrados e os respectivos sentidos simbólicos e metafóricos giravam em torno das teogonias e teofanias, provavelmente, oriundas de idéias e crenças religiosas oriundas de tempo anterior. As máscaras mortuárias, como a de Tutancâmon, com o objetivo de conservar a fisionomia após a morte, se relacionam às crenças no renascimento.

A mitologia sofreu constantes reconstruções de acordo com as épocas e os espaços. Os deuses, deusas e reis eram, essencialmente, curadores e protetores contra o mal. Os sacerdotes representavam os intermediários do poder divino e a eles cabia a arte de curar e adivinhar.

Entre os principais deuses e deusas taumaturgos, destacaram-se:

– Thoth, um dos mais antigos do panteão, curou Horus da picada do escorpião e as feridas causadas pela luta entre Horus e Set;

– Imnhotep, filho de Ptah, representado por incontáveis estatuetas de bronze, achadas nas escavações arqueológicas de vários períodos políticos do Egito antigo;

– Isis, a curadora de Ra, possuía o poder de ressuscitar os mortos;

– Sechmet, a protetora das doenças das mulheres;

– Zoser, rei da terceira dinastia, utilizava nas correspondências a designação Sa ou aquele que cura e nas inscrições do templo o título de médico divino.

Além dos deuses e deusas, os egípcios acreditavam que objetos, tornados sagrados, tinham o poder de influenciar a vida e a morte, a doença e a saúde:

– Sol alado: não servia exclusivamente como proteção. Era um dos símbolos máximos da cosmogênese egípcia e situava-se no umbral dos pórticos dos templos, câmaras e palácios alertando a todos o extraordinário significado da luz solar;

– Kepher ou Akhpner ou escaravelho sagrado: um dos símbolos máximos do processo iniciático egípcio. Traduzia a regeneração e a paternidade do mundo e dos homens, a renovação da vida e a ressurreição. Traduzido também como transformação, representava um dos principais amuletos. Até hoje, em pequenas regiões do sul do Egito e Sudão oriental, o inseto é secado ao sol, triturado, misturado com água e bebido pelas mulheres como tônico infalível para gerar uma grande família;

– Djed ou bastão sagrado ou coluna Djed: símbolo do poder máximo acima da temporalidade, ligado ao culto do deus Sokar;

– Anki ou a cruz: simbolizava a vida boa em todos os seus sentidos e protegia da magia;

– Uaret: a serpente naja simbolizava o real conhecimento e proteção, adornando o alto da coroa faraônica;

– Shen: símbolo da eternidade envolvia e protegia os sagrados nomes do faraó e rainha.

 

Práticas Médicas

 

Os médicos, tanto os agentes da Medicina-oficial quanto os das Medicina-divina e Medicina-empírica, desfrutavam de lugar especial na sociedade egípcia antiga. E, sem dúvida, existia complexa relação entre as Medicinas e as crenças e idéias religiosas, relacionadas aos muitos aspectos da teogonia e da teofania. Dessa forma, não é possível estabelecer, para todos os períodos, um único entendimento. Contudo, a partir das fontes médicas, notadamente, nos da XVIII dinastia, isto é, entre 1.400 e 1.800 anos a. C., a compreensão dos binômios vida-morte e saúde-doença estava contida em três compartimentos:

– Corpo visível;

– Espírito: invisível, podendo ser apreendido; representado na forma de pássaro, associado à possibilidade de se descolar após a morte para visitar o corpo conservado: a múmia. O corpo morto desfigurado e decomposto pela podridão não receberia o espírito;

– Ka: invisível, podendo ser apreendido após a morte, constitui o ser imutável com personalidade própria que reside no homem, presença permanente durante a vida e após a morte. É responsável pela proteção, vida, bem-aventurança, saúde e alegria. Sendo impossível conceber, após a morte, deus ou qualquer pessoa com corpos desfigurados sem o Ka. Por essa razão, no passar dos milênios, se avolumou a importância da mumificação.

As doenças seriam causadas:

– Excessos de comida e bebida;

– Vermes intestinais;

– Oukhedou ou whdw, concepção da etiologia das doenças relacionada às fezes, explicando o destaque dos clisteres como forma de tratamento;

– Ventos transportadores de deuses ruins;

Apesar de não haver textos explicando os por quês dessa abordagem da etiologia das doenças em torno de quatro pilares, também é viável pressupor que as três primeiras, de natureza direta e indireta gastrointestinal, estivessem relacionadas ao tipo de solo e território circundante das cidades que se desenvolveram nas várzeas do Nilo. Finalmente, a quarta etiologia manteria laços com as tempestades de areia, até hoje comuns e temidas.

Por outro lado, a clara ligação entre as doenças e os parasitos intestinais, expelido com as fezes, pelo menos na camada mais rica da população, contribuiu no aparecimento das instalações sanitárias e os primeiros esgotos, para retirar das residências as fezes e as urinas, por meio de canalização especifica, evitando os odores e os contatos com os excrementos.

Outras concepções egípcias reforçam a importância dos ventos, tanto interferindo na vida quanto podendo determinar a morte, como consta no Papiro de Ebers: “O sopro da vida entra pela orelha direita e o sopro da morte entra pela orelha esquerda”.

Não há dúvida, no Egito antigo, os médicos constituíam grupo de especialistas reconhecidos e recebiam destaque social:

– Medicina-oficial: a estrutura de poder entre os agentes da Medicina-oficial era hierarquizada e submetida ao rigoroso controle administrativo. Em ordem crescente de importância, são conhecidos:

– Sounou, a palavra significa algo parecido com “aquele que se interessa pelos indivíduos que sofrem”, esse médico generalista, o último da escala hierárquica, representado pelo hierógrifo contendo uma flecha, um pote e um homem sentado;

Mer sounou, chefe dos médicos;

– Our sounou, grande médico;

– Senedj sounouou, inspetor dos médicos.

Ao lado dessa distinção administrativa, vários outros médicos foram assinalados:

– Per âa sounou ou médico da corte;

– Sounou grergetl ou médico das colonias;

– Hérishef Néknet ou médico das minas e dos templos.

Do mesmo modo, os agentes da Medicina-divina também eram identificados com precisão:

– Sacerdotes de Sekhmet, divindade com cabeça de leão, sanguinária, causadora de doenças e epidemias;

– Sacerdote de Hem ka, encarregado da circuncisão.

Quanto aos agentes da Medicina-empírica, devem ter sido numerosos, se for considerado que acesso à Medicina-oficial era restrito aos filhos de médicos e sacerdotes ou pessoas escolhidas por eles.

É muito significativa a carta de Uzahor-Resinet, médico-chefe do Egito, ao rei persa Dario, confirmando que tinha ajudado alguém indicado pelo rei, para que alcançasse êxito para ser médico. Essa correspondência com autenticação reconhecida por especialistas, retrata pelo menos dois significantes:

– Confirma a existência de escolas de Medicina-oficial no Egito antigo;

– Reconhecimento por parte do rei persa da importância e qualidade do processo formador da Medicina-oficial egípcia;

– Influência do pedido político para ingressar no processo de aprendizado.

A profissão médica era regulamentada pela administração do faraó que impunha severas punições pela má prática, especialmente, o aborto. Aqui, é importante assinalar que só se tratava dos abortos que geravam maus resultados, especialmente, a morte das gestantes. Dessa forma, essa má prática era associada ao mau resultado.

Por outro lado, entre os muitos cuidados de prevenção tomados pela administração, se destacam os dedicados aos recém-natos, incluindo a guarda do leite materno em recipientes especiais.

De modo bastante claro, as identificações dos médicos e outros curadores e as respectivas funções, asseguram a forte inter-relação não só entre a Medicinas-divina, Medicina-empírica e a Medicina-oficial, mas, principalmente com os complexos panteões das idéias e crenças religiosas

– Wabu, agiam como médicos e sacerdotes e atuavam sob a proteção de um ou mais deuses;

– Sunu, curadores empíricos que possuíam algum tipo de formação médica, contudo não estavam vinculados aos templos e deuses;

– Benzedores, sem instrução médica oficial e agiam munidos de amuletos, rezas e encantamentos,

É possível que a descrição de Heródoto dos médicos especialistas, tenha sido equívoco do grande historiador grego. Na realidade, se tratava de agentes da Medicina-empírica, que atuavam na maior parcela da população, sem acesso à Medicina-oficial, exclusiva da corte do faraó, dos membros da administração e dos mais abastados:

– Oftalmologistas ou sounou-irty ou médico dos dois olhos;

– Abdome ou sounou-khe;

– Anus ou nerou pehout ou nerihou phout , administrava os clisteres;

É razoável pensar que essas especializações médicas tenham relação com a resposta social às doenças mais comuns.

Como não há registro de sistema monetário, antes do Novo Império, de 1.540 a 1.069 a.C., das XVIII a XX dinastias, é possível que a remuneração pelos serviços prestados fosse feita por meio de coisas de valor, como alimentos, como indica o papiro achado junto à necrópole de Ramsés II: “Dois khars (unidade de medida) de grãos para os dois escribas, três khars para um comerciante e um khar para um médico”.

A intricada relação entre os médicos e os sacerdotes está clara na certeza de que a formação dos médicos estava situada nos templos mais importantes: Menphis, Abydos, El Amarna, Coptos, Esna, Edfou e Saïs. Essa era uma das diferenças, talvez a mais significante, entre as três Medicinas: somente existem registros de processos formadores da Medicina-oficial.

Por outro lado, apesar de as administrações dos templos e das escolas de Medicina-oficial estarem em locais distintos, existiu inegável intimidade entre ambas. O chefe da escola médica de Saïs e o líder sacerdotal da deusa Neith, a principal divindade dessa cidade usavam a mesma titulação.

O fato de não ter existido um sistema teórico para explicar a saúde e as doenças, a Medicina-oficial acumulou impressionantes avanços no trato empírico da saúde e da doença, comprovadas nos papiros.

Diferente da tradição assírio-babilônica, que considerava o sangue o elemento vital, no Egito antigo, a respiração era entendida como a função mais importante do corpo, sugerindo que o sangue tenha sido substituído pelo ar como a substância vital.

Não é demais repetir que a origem das doenças se atava aos componentes visíveis e facilmente identificados no cotidiano: vento, alimentos e parasitas da pele e dos intestinos. E também a estreita relação entre doença e parasita nasceu, provavelmente, a partir da grande quantidade de infestação parasitária dos que moravam e trabalhavam nas áreas de várzea do Nilo. O conhecimento historicamente acumulado, ao longo de centenas de anos, antes do sedentarismo, interligou os vermes saindo pela boca ou pelo anus com a origem das doenças dos indivíduos debilitados e incapazes de trabalhar.

A especialização dos conhecimentos médicos do Egito era um fato. O mais antigo médico conhecido, Hesy-Ra, também tratava as cáries e confeccionava próteses, nos anos 1750 a. C.

Os registros dos papiros também citam oftalmologistas e ginecologistas e Heródoto refere o início da prática da circuncisão no Egito:

“É óbvio, realmente, que os côlquios são de origem egípcia, e eu mesmo fiz essa observação antes de ouvi-la de outros…os côlquios, os egípcios e os etíopes são os únicos povos que desde sua origem praticam a circuncisão. Os fenícios e os sírios da Palestina reconhecem que aprenderam esse costume com os egípcios…”

A circuncisão, ato cirúrgico seccionando o ligamento da glande, não era obrigatória e parece que tinha sentido religioso. Não pode ser menosprezado o sentido de utilidade, como atitude para evitar as infecções da glande, facilitadas pela pouca higienização peniana em contato com o esmegma, trazido do conhecimento historicamente acumulado. Existem algumas ilustrações de como realizar essa operação. A mais antiga, na tumba de Ankh-ma-Hor, descreve-a como ato religioso, realizado por um sacerdote especializado.

O embalsamento está intimamente ligado à crença do renascimento após a morte. O corpo enterrado deveria estar conservado tendo a cabeça voltada ao Oeste, para poder renascer na outra vida. Não existem registros precisos do início do embalsamamento. No período pré-histórico, os egípcios enterravam os seus mortos sem qualquer tipo de tratamento. A especial qualidade do terreno desértico, quente e seco, conservou intactos muitos corpos. Não é improvável que a observação desses mortos, exumados muitos anos após o óbito, tenha contribuído no aperfeiçoamento das técnicas do embalsamamento com o objetivo de alcançar melhores resultados que favoreceriam o renascimento.

Os mais antigos registros de mumificação datam de 3.400 a. C.; trata-se de Hetep-Heres, mãe de Keops, que mostram os membros desarticulados antes de terem sido envoltas com as bandagens. Aparentemente, o processo mumificador que acabou prevalecendo, passou por mudanças; as múmias do Médio Império eram tratadas com as vísceras mantidas nas respectivas posições. No Novo Império, o trato do cadáver obedecia normas mais ou menos rígidas de acordo com as posses financeiras e a importância social do morto.

Sempre com variações, dependendo da riqueza do morto, em alguns casos, os embalsamamentos duravam sessenta dias:

– Corpo era transportado à casa dos deuses;

– Conteúdo craniano era retirado liquefeito por meio de trauma continuado com estiletes metálicos através das fossas nasais;

– Evisceração abdominal por meio de incisão no flanco esquerdo, para a retirada das vísceras;

– Coração permanecia no lugar;

– Vísceras retiradas recebiam cuidados especiais antes do serem colocadas nos recipientes: os canopos;

– Corpo criteriosamente desidratados, submetido às lavagens com óleos e essências e envolto com tiras de pano.

As fontes contidas nos papiros são claras no sentido de não havido correlação entre o extraordinário progresso alcançado na técnica de mumificação e o conhecimento da anatomia humana. Sob a perspectiva atual, considerando o incontável número de múmias produzidas, em mais dois mil anos, seria natural esperar-se um soberbo conhecimento anatômico humano. Mas, não foi isso o ocorrido. A descrição dos órgãos estava quase sempre identificada com ferimentos traumáticos abertos. Esses fatos reforçam as suposições no sentido de:

– Mumificadores não mantiveram nenhuma atenção com a anatomia;

– Componentes da teogonia e teofania egípcios, principalmente, o ka, que valorizava o conservação do corpo, na esperança do renascimento, contribuíram para que não fosse atribuída importância à anatomia;

– Modo como esses especialistas tratavam o corpo com o objetivo de mumificar, evitando ao máximo as deformidades, utilizando para retirar as vísceras do abdome e do tórax uma curta incisão na lateral direita da barriga e o conteúdo cerebral era extraído pela fossa nasal, também indica a importância dada à inviolabilidade corpórea.

Sem dúvida, o conhecimento empírico, estava presente em muitas faces da Medicina-oficial: o exame físico valorizava a inspeção e a palpação, notadamente, do pulso periférico associado às batidas do coração:

“O começo do segredo dos médicos: conhecer os segredos da marcha do coração e conhecimento do coração (Papiro de Ebers 854a).

A semiologia baseada na inspeção, palpação e ausculta também valorizava muitos sinais e sintomas, até hoje levados em consideração na anamnese médica;

– Dor;

– Nível da consciência após trauma;

– Coloração cutânea;

– Fisionomia;

– Deformidades;

– Hematomas;

– Paralisias;

– Aspecto da urina e das fezes.

Entre os principais grupos de doenças que foram descritas, pela riqueza dos sinais e sintomas, é possível distinguir em:

– Cardiovasculares: provavelmente ligado à importância da associação coração-pulmão em torno da respiração, existem muitas descrições sobre doenças que envolvem o coração e os vasos. Contudo, duas foram particularmente bem relacionadas:

– Palpitação;

– Insuficiência cardíaca com edema pulmonar e aumento do volume do fígado.

– Pulmonares: a maior parte das doenças pulmonares foi agrupada sob a designação de tosse. Existe a descrição, no papiro de Ebers, nos itens 326 a 335, de um quadro clínico semelhante à asma sob o nome gehoul;

– Anais: como a maior parte da população, no Egito antigo, habitava áreas de pântanos e várzeas, junto com animais de pastoreio, portanto, com grande possibilidade de infestação, é provável que o destaque dado às doenças anais também estivesse relacionado com a mesma concepção de serem os vermes um dos grandes causadores de doenças;

– Traumas da face: mesmo sem estarem associadas com outras doenças ou comprometendo funções vitais, as seqüelas desses traumas foram descritos como determinantes de distúrbios funcionais.

No Papiro de Edwin Smith, escrito na XVIII dinastia, em torno de 1550 a.C., na seção chamada Livro das Feridas, está caracterizada a diferença entre a fratura e a luxação da mandíbula, expressando, inteligívelmente, a angústia com o respectivo prognóstico:

“Quando examinares um homem com uma fratura em sua mandíbula, colocarás tua mão sobre ela e se observares que essa fratura crepita sob teus dedos deves dizer a respeito dela: – Eis alguém que tem uma fratura na mandíbula, em cuja superfície se encontra uma ferida… (e) ele tem febre devido a ela. Uma doença que não tem tratamento”.

De igual modo, o professor da Medicina egípcia detalha as manobras para reduzir com êxito a luxação mandibular, aconselhando a imobilização:

“Se examinares um homem com deslocamento da mandíbula, acharás sua boca aberta (e) se sua boca não pode ser fechada, deves colocar teu polegar (es) no fim dos dois ramos da mandíbula, no interior da boca (e) tuas duas garras abaixo do queixo (e) deves produzir um recuo de tal forma que volte ao seu lugar. Deves dizer a respeito disso: – Eis alguém que tem deslocamento da mandíbula uma doença de que tratarei. Deves amarrá-la com ymrw (e) mel, todos os dias até a recuperação”.

Igualmente, a cultura médica egípcia antiga, no mesmo papiro de Edwin Smith, distingue a gravidade dos traumas faciais da região masseterina, com ou sem fratura do osso malar acompanhada de restrição ao movimento mandibular. O quadro clínico é fortemente sugestivo de fratura do osso malar e do arco zigomático com impactação do côndilo mandibular na cavidade glenóide do osso temporal, sob a ação dos músculos pterigóideos lateral e medial no fragmento ósseo resultante da fratura traumática, impossibilitando a abertura da boca:

“Se examinares um homem com um rasgo em sua bochecha, e se encontrares o lado de fora da fenda, inchado, exposto e vermelho, deverás dizer a respeito: – Eis alguém que tem uma fenda em sua bochecha. Uma doença de que eu tratarei”.

Em outro trecho do papiro de Edwin Smith:

Se examinares um homem golpeado em sua bochecha, deves colocar tua mão na bochecha no lugar da pancada. Se crepitar sob os teus dedos, ao mesmo tempo em que ele solta sangue por sua narina…, e sofre dor ao abrir a boca, deves dizer a respeito: – Eis alguém golpeado na bochecha e que solta sangue pelas narinas… Uma moléstia que não tem cura.

Essa descrição sugere trauma da face resultando na fratura de maior gravidade, atingindo o andar médio da face e órbitas.

Pelos menos nas camadas mais abastadas havia especial cuidado com a higiene e o enfeite do corpo.

As leis puniam o aborto provocado, o abandono de crianças, o sexo oral e as relações sexuais durante a menstruação. Essas proibições poderiam estar relacionadas com algumas possibilidades médicas e sociais:

– Aborto, como na cultura mesopotâmica, aparentemente, a interdição à interrupção provocada da gravidez poderia estar relacionada às graves consequências da manipulação intra-uterina, inclusive podendo com frequência determinar a morte da grávida. Por outro lado, fincada na absoluta necessidade daqueles povos de aumentar o número dos seus habitantes.

Os registros apontam para a certeza de que a circuncisão foi iniciada, no Egito, desde as primeiras dinastias. As evidências do fato podem ser encontradas nas pinturas e esculturas, daquela época, nas quais o pênis é claramente visto sem o prepúcio. De acordo com o papiro de Ebers, as circuncisões masculina e feminina eram executadas aos quatorze anos de idade. Também é necessário refletir quanto aos motivos dessas práticas nos corpos adolescentes executadas por médicos e sacerdotes. É possível que possam estar envolvidas com motivações diferentes no homem e na mulher. De modo semelhante às mutilações femininas realizadas, ainda hoje, felizmente, em poucos países, a retirada sob coação familiar ou social do clitores está relacionada à diminuição da libido, não tendo ligação com a higiene vaginal; no homem, além de determinar a possibilidade de melhor higienização da glande pela facilidade de retirada continua do esmegma, pode interferir na melhoria da sexualidade ao evitar as inflamações e infecções locais pela falta de higiene peniana.

Apesar do avanço na compreensão de muitas doenças, os egípcios como os outros povos que construíram as respectivas culturas, entre 2.000 e 1000 anos a.C., não conseguiram articular um processo teórico capaz de explicar a saúde e as doenças.

 

Mesopotâmia

 

Considerações gerais

 

A Mesopotâmia (do grego, meso = meio; potamos = rio), pode ser considerada também como um dos berços, do processo do sedentarismo. A região compreende os vales férteis dos rios Tigre e Eufrates. Atualmente, corresponde em parte aos territórios da Turquia, Síria e Iraque.

Nessa área geográfica, entre os anos 2.000 e 1.000 anos a.C., com diferentes intensidades, floresceram as civilizações:

– Sumérios;

– Acádios, com o lendário Sargon unificando várias cidades-estados e estruturando o primeiro império do mundo;

– Babilônios, com o não menos famoso Hammurabi (1792-1750 a. C.), que reinou no apogeu da Babilônia;

– Neo-babilônicos, com Nabucodonosor II (604-562 a.C.), cujos imensos domínios ultrapassaram a Mesopotâmia e incluíram a Palestina e a Síria. Esse extenso território foi conquistado, em 539 a. C. pelos persas e, dois séculos após, dominado por Alexandre.

Algumas primeiras cidades-estados, Ur, Ourouk, Sumer e Nippur, desenvolveram-se nessa região com notáveis acervos do conhecimento em torno da Medicina, matemática, astrologia, metalurgia, astronomia e linguagem escrita.

Os sumérios foram os primeiros a inventar a escrita – os caracteres cuneiformes -, conseqüentemente, os poucos escriba assumiram grande importância na organização social. As descobertas arqueológicas e a decifração dessa linguagem têm revelado as tradições culturais e religiosas desses povos. Entre os documentos decifrados destacam-se alguns anteriores ao século 15 a.C.:

– Código de Hamurabi contendo as leis que regiam a vida e a propriedade dos súditos do imperador Hamurabi (1.728 a.C.?–1.686 a.C.?);

– Enuma Elis, poema babilônico da criação;

– Epopéia de Gilgamesh, relato da vida do lendário soberano de Uruk, cidade suméria nas margens do rio Eufrates.

Os três exemplos, entre outros de grande importância na construção da cultura mesopotâmica, uniram alguns pensamentos abstratos à concretude da ordem social. No primeiro, explicando a origem da vida e a inexorabilidade da morte, como no poema Enuma Elis e na epopéia de Gilgamesh; no segundo, a absoluta necessidade do controle da ordem social, punindo os excessos gerados pelos conflitos sociais, numa sociedade complexa, francamente hierarquizada e em franco crescimento populacional, como no Código de Hammurabi, onde estão explicitados os pagamentos pela boa prática e severíssimas punições pela má prática.

O sistema de escrita cuneiforme, desenvolvido pelos sumérios, consistia em marcas moldadas em tábuas de barro molhado. Após a secagem eram armazenados e/ou transportados para locais específicos, as bibliotecas, que abrigaram milhares de documentos fundamentais na melhor compreensão dessa cultura. Essa escrita tornou-se dominante por mais de 1.000 anos na Mesopotâmia. O sistema de escrita cuneiforme, registrado em tábuas de argila, continuam como o maior registro disponível sobre a Medicina mesopotâmica.

Existem duas grandes fontes das informações que tratam sobre práticas médicas:

– A biblioteca de Assurpanipal, composta com mais de vinte mil tábuas de argila, o último grande rei assírio, encontrada em Nínive;

– A biblioteca de Hammurabi, localizada em Mari, também com milhares de tábuas.

No início da década de 1920, alguns textos médicos, extraídos das tábuas da biblioteca de Assurbanípal, foram publicados por Campbell Thompson. Esses registros, conhecidos como “Tratado de Diagnósticos e Prognósticos Médicos”, estão entre os registros mais antigos, em torno de 1600 a. C., com informações organizadas em subseções que tratam de doenças de crianças e mulheres descritas por meio de observações minuciosas e aguçadas.

Graças aos registros, importantes concepções da Medicina, exercida pelos povos da Mesopotâmia, atravessaram os milênios. Entre as mais significativas, sinalizando o estudo de partes do corpo, estão o entendimento do coração como sede da inteligência e do fígado, como o centro da circulação. Quanto ao coração, de certo modo, é possível compreender a associação espacial com a inteligência, na medida em que o coração ao parar de bater, provoca a morte, gerando o corpo morto, sem vida, sem qualquer manifestação da inteligência. Quanto ao fígado, é possível que a associação estivesse ligada à sanguinidade do órgão, mesmo algum tempo após a morte.

 

Práticas médicas

 

Os conceitos terapêuticos mesopotâmicos antigos baseavam-se na crença de todas as mudanças nos corpos, da saúde e das doenças, se encontravam estreitamente unidos e subordinados à vontade dos deuses, identificados com os astros visíveis no céu mesopotâmico.

A compreensão teocêntrica unindo deuses e deusas, identificados nos corpos celestes, à saúde e à doença, efetivou a grande importância atribuída ao estudo dos movimentos desses corpos celestes, gerando saúde ou doença.

As doenças e curas se explicavam por meio de complexa relação entre os deuses bons e deuses maus. O deus bom protegia as pessoas dos maléficos, causadores de doenças, onde cada enfermidade conhecida e temida era associada a um ou mais deuses maus. Nessa complexa construção, o panteão mesopotâmico era dominado pelo poderoso deus Marduk, que acima de qualquer outro, poderia oferecer a saúde ou a doença a quem lhe aprouvesse. Esse conjunto associado à palavra shêtu, que significava, simultaneamente, doença, pecado ou castigo divino, demonstrando que a doença poderia estar compreendida como:

– Conseqüência de castigo divino;

– Originada em ofensa específica a determinado deus;

– Intervenção direta dos deuses maus;

– Doença como resultante do abandono do gênio protetor ou na influência de demônios.

Por essa razão, a intervenção dos curadores, representantes da Medicina-divina, iniciava-se na confissão do doente, quando expunha todos as ações que pudessem significar ofensa aos deuses e deusas. A terapêutica, também com objetivo de purificação, estava associada à catarse provocada pelo medicamento, rezas e encantamentos.

Ainda mais interessante e simbólica, a utilização da serpente como símbolo de cura, presente na teogonia e teofania mesopotâmicas, pode estar ligada à lenda do herói Gilgamesh, o rei sumério, da cidade-estado de Uruk (hoje em dia Warka, no Iraque), possivelmente, oriunda após a metade do terceiro milênio. Essa extraordinária narrativa, recuperada na tradução de doze tábuas, achada por arqueólogos, na biblioteca de Nínive, na antiga Acádia, escrita em linguagem acádia, durante o reinado de Assurbanipal (668 – 627 a.C.), reproduziu concepções ainda mais antigas da inexorabilidade da morte.

A descrição desse épico explica, inicialmente, a natureza do herói mítico Gilgamesh, sendo de natureza divina, em dois terços, e, humano, em um terço, também reconhecido guerreiro, simultaneamente, bondoso e despótico. A narrativa explica que os deuses atendendo às súplicas do povo oprimido, enviam Enkidu, meio humano, meio animal, para que enfrente Gilgamesh e o mate. A luta titânica não resultou em vencedor ou vencido. Ao contrário, os dois tornam-se amigos e partem para novas aventuras. Já longe de Uruk, enfrentam Huwawa, o guardião divino dos bosques de Cedro. Apesar de faltarem partes das tábuas, é possível deduzir que Gilgamesh derrota Huwawa. Voltando para Uruk, Ishtar, a deusa do amor e da fertilidade lhe propõe casamento. Gilgamesh sabendo do triste destino dos homens que se unem a ela recusa o convite. Ishtar, enciumada e colérica, convence outros deuses para enviar o touro celestial para matar Gilgamesh. Contudo, ele e Enkidu enfrentam o monstro e o derrotam. Por ter participado do duelo, Enkidu recebe dos deusesa ameaça de castigo em sonho, quando os três deuses, Anu, Ea e Shamah, dizem-lhe que irá morrer em breve. Como previsto, adoece e morre. Gilgamesh, desconsolado chora a morte de seu amigo e parte numa perigosa viagem em busca do sábio Ut-Napishtim, possuidor do segredo da imortalidade e único sobrevivente do dilúvio babilônico. Ut-Napishtim é relatado como justo e piedoso no meio da barbárie e da injustiça. Os deuses o advertem para que construa um barco no meio do deserto e espere o pior. Durante seis dias e seis noites, acontece uma chuva tão intensa que até mesmo os deuses se assustam. Gilgamesh sobrevive a esse novo desafio e quando o nível das águas abaixa, surge a nova Mesopotâmia. Na busca da imortalidade, Gilgamesh ouve do imortal Ut-Napishtim onde conseguir a planta que lhe dará a juventude eterna: está no fundo de um lago. Gilgamesh parte na busca da imortalidade. Na jornada, enfrenta muitos desafios inimagináveis e sempre triunfa. Ao voltar para Uruk, muito cansado, descansa na margem do lago. Durante o sono, a serpente lhe rouba a planta milagrosa e após engoli-la, rejuvenesce mudando a pele. Nada mais resta a Gilgamesh a não ser chorar, amargamente, a perda da imortalidade para todos os homens. Assim, a única oportunidade de os homens serem imortais foi perdida para a serpente, de nada adiantou as lutas épicas para obter a imortalidade, o destino do homem é ser mortal.

É possível que as duas cobras enroscadas, esculpidas em taça cerimonial, a mais conhecida representação de Ningishzida, o deus sumeriano da cura, tenha relação direta com a narrativa épica do mito de Gilgamsh. Esse deus também representa a mais antiga associação simbólica entre a cura das práticas médicas e a serpente.

É interessante relembrar que também na cultura egípcia, mais ou menos no mesmo período, apesar de não ter sido especificamente identificada com a cura de doenças, a serpente estava presente nas coroas dos faraós, também com significado de proteção.

Do outro lado, no panteão mesopotâmico, entre os deuses causadores de doenças, recebeu destaque Pazuzu, cuja representação é uma mistura grotesca de homem, leão e escorpião, com dois pares de asas emplumadas, pernas e garras. É possível articular algum pensamento

Mesmo atribuindo a dor de dente ao verme roedor, os textos médicos contidos nas tábuas de escrita cuneiforme, descreveram com muita clareza muitas doenças e quadros clínicos relacionados com:

– Febres isoladas;

– Febres acompanhadas de outros sinais e sintomas muito sugestivos de malária;

– Apoplexia, provavelmente resultantes de lesões cerebrais agudas;

– Tuberculose, em diferentes fases da evolução clínica;

– Muitâme, uma doença infecciosa endêmica desconhecida;

– Distúrbios mentais, atribuídas aos ferimentos ou aos demônios;

– Doenças dos olhos e ouvidos;

– Dores articulares;

– Certos tumores;

– Abscessos;

– Algumas doenças do coração;

– Inflamações na pele e mudanças na cor e sensibilidade;ele;

– Secreções purulentas da uretra e vagina.

As sintomatologias de várias doenças foram descritas com extraordinária precisão:

– Tuberculose pulmonar: “O doente tosse muito; sua expectoração é densa e, às vezes, contém sangue, sua respiração dá um som semelhante ao de uma flauta, sua pele é fria mas os pés estão quentes, ele sua muito e seu coração está muito perturbado. Quando a doença é extremamente grave os intestinos se abrem muitas vezes”;

– Otite: “Fogo penetra no interior do ouvido, paralisando a audição. Grande quantidade de pus irrompe no local e seu estado é de dores”;

– Gastrite: “Quando alguém come e bebe até ficar satisfeito, sentindo depois dores no estômago com o se sua pele inteira queimasse como fogo”;

– Hepatite: “Quando os olhos de alguém ganham coloração amarela e a doença avança até sua vista, de modo que o interior do olho se torna amarelo como cobre… quando ele vomita e a bebida… quando até seu rosto e o corpo todo se torna amarelo, então a enfermidade resseca o corpo todo do doente, de modo que ele chega a falecer”;

– Asma brônquica: “Quando o doente sofre de tosse; quando sua traquéia produz um chiado ao respirar; quando tem acessos de tosse”.

Existiam três tipos distintos de médicos na Mesopotâmia:

– Ashipu, era mais importante agente da Medicinas-divina e da Medicina-empírica, sendo o responsável pelo diagnóstico da doença, indicava o deus ou o demônio causador e analisava se o pecado do paciente estava relacionado à doença. Também atuava no tratamento prescrevendo o rito do encantamento que deveria ser seguido para afastar o mal e, consequentemente, obter a cura;

– Asu, agente da Medicina-oficial e especialista em remédios obtidos a partir das plantas Medicinais e certos procedimentos cirúrgicos. No tratamento das feridas, usava três movimentos: lavava a ferida, usava compressas e aplicava curativos Entre os muitos vegetais com propriedades curativas, a raiz da mandrágora era uma das mais utilizadas. Como essa planta lembra, grosseiramente, o corpo humano, lhe era atribuída propriedade mágica.

– Baru, relacionado com a Medicina-divina, como adivinho reconhecido predizia o futuro da saúde e da doença e das catástrofes coletivas.

De certa forma, não há como separar, rigidamente, as áreas de atuação dos três curadores, trabalhavam ligando o conhecimento historicamene acumulado às crenças e idéias religiosas.

É muito provável que a reprodução dos saberes para a formação de novos médicos, notadamente, o asu, o agente da Medicina-oficial, portando cartão de visita, se desenvolvessem no interior dos templos, restrito às pessoas abastados.

Por outro lado, nas sociedades escravistas é certo que a maior parte da população nunca teve acesso à Medicina-oficial. Na Mesopotâmia, não era diferente e, assim, é perfeitamente aceitável a observação de Heródoto, no século 5 a. C., descrevendo o hábito desse povo de levar os doentes à praça pública, para que fosse diagnosticado e medicado por alguém que tivesse experiência na mesma doença.

A tradução da tábua cuneiforme com seis por três centímetros de tamanho, lembrando um cartão de visitas, pertencente ao asu Urlugaledina, representa de modo categórico o pensamento médico mesopotâmico. Entre duas figuras desenhadas na argila, sendo à esquerdo, a imagem de um deus e, à direita, uma planta Medicinal, contra o texto: ó deus Edinmugi, vizir do deus Gir, que protege os animais quando tem seus filhos, o médico Urlugaledina é seu servo.

É indispensável assinalar que esse conhecimento historicamente acumulado, sempre presente e sustentando grande parte da estrutura teórica e prática das especialidades sociais, nessa época, é reforçado na sua utilidade social e, por isso mesmo, valorizado e reproduzido sem esforço. Esse fato pode ser verificável em torno das compressas, para tratar as feridas traumáticas, no qual se assentava parte dos procedimentos do asu, ainda hoje, pode ser comprovada a utilidade. Muitas dessas compressas incluíam misturas de ingredientes Medicinais aplicados sobre a ferida e mantidas no lugar com a ajuda das bandagens. Pelas descrições, algumas delas exigiam o aquecimento de resina retirada de planta ou gordura animal com teor alcalino. Essa mistura, quando aquecida, liberava sabão, que ajudaria a proteger contra as infecções bacterianas.

Do mesmo modo, as tábuas de argila encontrada na residência de um ashipu indicam que existia cooperação entre os curadores mesopotâmicos, o ashipu e o asu. Os doentes mais ricos, provavelmente, buscavam os cuidados médicos de ambos. De certa forma, além de compartilhar alguns pacientes, algumas vezes, se alternavam nas suas funções: o asu podia, ocasionalmente, fazer um encanto e o ashipu, prescrever uma droga.

O Código de Hamurabi, esculpido num bloco negro de diorita, constitui outra importante fonte de informação, tanto em relação aos tipos de procedimentos quanto aos pagamentos e penalidades, respectivamente, como recompensa pelo sucesso e castigo pelas maus resultados. Esse conjunto de normas não era um código de leis como entendemos hoje, mas provavelmente uma coleção de decisões legais tomadas pelo rei Hamurabi e tornadas leis, mais ou menos, em 1700 a. C.. Em relação à Medicina, de modo muito claro, esse conjunto de leis estabelece:

– Estratificação social, onde médicos atendiam pessoas de diferentes estratos sócio-econômicos e recebiam remuneração ou penalidades diferenciadas;

– Medicina como especialidade social;

– Trabalho médico remunerado, para os bons resultados;

– Existe muito maior atenção ao trabalho médico invasivo, isto é, para os atos cirúrgicos, fazendo supor que provocavam muito mais conflito do que as consultas não invasivas;

– Severas penalidades para as cirurgias que culminavam com resultados insatisfatórios.

As principais leis que regeram a Medicina, no código de Hammurabi, são as seguintes:

 

§ 215: Se um médico fez em um awilum, uma operação difícil com um escalpelo de bronze e curou o awilum ou (se) abriu a nakkaptum de um awilum com um escalpelo de bronze e curou o olho do awilum, ele receberá 10 siclos de prata;

 

§ 216: Se foi o filho de um muskenum, ele receberá 5 siclos de prata;

 

§ 217: Se foi o escravo de um awilum, o dono do escravo dará ao médico dois siclos de prata;

 

§ 218: Se um médico fez em um awilum uma operação difícil com um escalpelo de bronze e causou a morte do awilum ou abriu a nakkaptum de um awilum e destruiu o olho do awilum, eles cortarão a sua mão;

 

§ 219: Se um médico fez uma operação difícil com um escalpelo de bronze no escravo de um muskenum e causou-lhe a morte, ele deverá restituir um escravo como o escravo (morto);

 

§ 220: Se ele abriu a sua nakkaptum com um escalpelo de bronze e destruiu o seu olho, ele pesará a metade de seu preço;

 

§ 221: Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente, o paciente dará ao médico 5 siclos de prata;

 

§ 222: Se foi um muskenum, dará 3 siclos de prata;

 

§ 223: Se foi o escravo de um awilum, o dono do escravo dará 2 siclos de prata.

É possível que os atos cirúrgicos além de atuarem em lesões superficiais e nos membros, mesmo em menor número, também fossem praticados no tórax e abdome. Mesmo danificadas, foram identificadas quatro tábuas de escrita cuneiforme tratando de algumas cirurgias e cuidados pós-operatórios:

– Em uma delas, existe a descrição do cirurgião incisando o peito do paciente com o objetivo de remover pus da pleura, isto é, dentro do tórax;

– Duas outras, pertencem à coleção chamada Receitas para Doenças de Cabeça, onde o cirurgião utiliza a faca do asu para incisar levemente a cabeça do paciente;

– A última, menciona os cuidados pós-operatórios de cirurgia no tórax, recomendando atadura de óleo de gergelim, planta herbácea reconhecida com atividade Medicinal.

Outro ponto importante da prática médica mesopotâmica é o uso sistemático de vários remédios, descritos com clareza, envolvendo componentes animais e vegetais. Infelizmente, não é possível a identificação de muito deles porque os nomes são metafóricos, como gordura de leão, lírio do tigre, etc. Entre as porções com as origens já esclarecidas, usadas pelo asu, constam extratos de plantas e resinas com reconhecida capacidade antibiótica e anti-séptica.

Fora dessa clara atuação da Medicina-oficial atuado em conjunto com a Medicina-empírica, os povos mesopotâmicos utilizavam, no cotidiano, a Medicina-divina com o grande panteão de deuses e deusas curadores. Alguns templos desses taumaturgos, quase sempre situados próximos aos rios, possuíam bibliotecas dedicadas aos temas da saúde e da doença.

Alguns registros indicam a crença coletiva no poder curador da água. Dessa forma, em alguns abrigos eram construídos próximo às margens dos rios para ajudar nos tratamentos de certos doentes.

A partir dos pressupostos de os astros visíveis representarem deuses e as doenças dependerem inteiramente da vontade dessas divindades, as práticas médicas em grande parte, estavam ligadas à capacidade de certos elementos da sociedade, os agentes das Medicinas-divina, Medicinas-empírica e Medicinas-oficial, para decifrar as mensagens dos deuses que poderiam causar a doença ou determinar a cura.

Dessa forma, desenvolveram-se duas vertentes da adivinhação: astrologia e hepatoscopia:

– Astrologia pretendeu estabelecer a relação entre os movimentos dos astros, as estações e as doenças. A aceitação coletiva dessa suposta inter-relação, como verdade acabada, gerou formidável exército de especialistas capazes de interpretar a irregularidade no movimento dos astros como sinais de diagnóstico e prognóstico;

– Como vestígio das primitivas relações dos nossos ancestrais com o sangue, o fígado, o mais sangüíneo dos órgãos, era identificado como o centro da vida. Assim, quem pudesse interpretar as mensagens contidas no fígado dos animais sacrificados, estaria mais próximo de saber onde, quando e como as doenças acometeriam as pessoas.

Parece que o mais antigo deus protetor da Medicina, na Mesopotâmia, foi representado pela lua, com o nome de Sin. Essa divindade noturna governava o crescimento das ervas Medicinais, por esse motivo, não poderiam ser expostas ao sol.

Os deuses protetores do panteão mesopotâmico:

– Marduk, o grande deus curador;

– Ninib, filho de Enlil;

– Nabu, deus das ciências e da arte de curar;

– Ninchursag, deus ligado a oito divindades, cada uma com poder de curar uma doença específica;

– Ninurta, deus dos médicos;

– Gula, mulher de Ninurta;

– Ningischzida, filho de Ninurta, representado pelas duas serpentes enroladas no bastão;

– Sachan, a deusa-serpente;

– Ishtar, a deusa da graça, da fecundação e criadora da libido no homem e na mulher.

Além desses deuses deusas, são citados alguns demônios que responsáveis pelo aparecimento das doenças:

– Nergal, da febre;

– Ashakku, do pulmão

– Tiu, dor de cabeça;

– Namtaru, da boca, do nariz e das orelhas.

A Medicina mesopotâmia é uma das mais antigas de que se tem conhecimento através de registros históricos. Estes foram preservados em tábuas que contém tais informações no sistema cuneiforme.

Nas tábuas de escrita cuneiforme, os relatos médicos eram bastante detalhistas, o que demonstra a preocupação e o cuidado com o indivíduo acometido por determinada doença. Outro fato importante que fica esclarecido pelas tábuas é a importância social do médico, especificamente, Ashipu, responsável pelo diagnóstico. O outro, também reconhecido, Asu, prescrevia a terapia utilizando ervas Medicinais.

 

Índia

 

Características gerais

 

A Índia, situada na Ásia meridional apresenta duas áreas geográficas distintas. O Sul, a península do Decan; o Norte; contida na cordilheira de Himalaia, que separa a Índia dos outros países. Entre essas duas regiões localiza-se a planície do Hindustão, sulcada pelos rios que descem do Himalaia, o Indo, o Ganges e o Bramaputra.

O fato de a Índia ser cercada por mares, o mar de Oman e o oceano Indico, aliado à presença de montanhas contribui para o isolamento geográfico e cultural.

A região da planície do Hindustão, extremamente fértil e chuvosa ou fácil de irrigar, é onde se acumulam as grandes massas de população da Índia.

A partir de 3.000 a.C., o primeiro Império, os Maúrias estavam assentados, no noroeste, no vale do Pendjabe. As`principais cidades eram: Harapa e Mohenjo-Daro, que ofereciam impressionante organização social, com ruas bem traçadas, silos e especial atenção com os esgotos.

Nessa época, os indus praticando agricultura baseado no regime de cheia e vazante, em conjunto com a criação de animais domésticos e gado (carneiros, búfalos, zebus, e porcos). Também utilizaram o bronze para a fabricação de instrumentos de trabalho, armas e utensílios.

O desenvolvimento do artesanato propiciou o aparecimento de grupo social, possivelmente próspero que interferiu no aumento do comércio. Foram encontradas provas arqueológicas de comércio local, nas ruínas de Moendjo-Daro, ao lado das habitações, representadas pelos depósitos com características de loja que podem ser comparada ao atual bazar indiano.

Na primeira metade do segundo milênio a.C., começou a decadência dessa civilização, sem resistência à invasão e a dominação pelos arianos ou indo-europeus.

Da metade do segundo à metade do primeiro milênio, no início da Idade do Ferro, os registros contam com os textos sagrados, os Vedas, e com poemas épicos, Maabarata e Ramaiana, o que não aconteceu com os períodos anteriores, onde só é possível estudar os dados arqueológicos.

A terra caracterizava-se como propriedade comum, cultivada pela comunidade, sendo o excedente da produção só se tornava mercadoria a partir do instante em que era apropriado pelo Estado.

Os trabalhos agrícolas eram executados pela irrigação e drenagem do solo por meio de instrumentos de ferro. Por essa razão, regiões do vale de Ganges e da Índia Central foram exploradas de maneira mais sistemática, resultando no aparecimento de cidades prósperas.

Ao lado dessa parcela social produtiva, em forma de comunidade, apareceram grupos de pessoas com funções sociais específicas:

– Juiz, chefe de policia e cobrador de impostos, exercidas por uma única pessoa;

– Escriba;

– Encarregado da proteção dos viajantes;

– Guardas fronteiriços;

– Inspetor das águas;

– Sacerdote;

– Mestre-escola;

– Brâmane astrólogo;

– Ferreiro;

– Carpinteiro;

– Oleiro;

– Barbeiro;

– Lavador;

– Ourives.

É possível, nessa fase, perceber o fortalecimento de uma aristocracia cada vez fechada e que acentua a desigualdade social, constituindo uma hierarquia caracterizada pelas varnas ou castas. A hierarquia social era composta:

– Aristocráticos de nascimento se agrupava em dois varnas:

– Brâmanes ou grupo sacerdotal;

– Xátrias formado pelos governantes e militares;

– Não aristocráticos:

– Vaicias constituída de pessoas livres, artesãos e comerciantes;

– Sudras ou estrangeiros livres, nada possuíam dentro da comunidade, sem direito de participar nas cerimônias do culto e nas decisões comunitárias.

– Sem castas:

– Párias ou intocáveis.

A administração na Índia antiga era centralizada, hierarquizada e exercida nesse estágio, pelo bramanismo que colocava o Estado como caráter divino, enaltecendo a pessoa do rei (Raja).

Não ha registros de onde surgiu a crença coletiva na metempsicose como possibilidade de dever cumprido na vida anterior, isto é, após a morte, a pessoa poderia ascender socialmente (mudança de casta) se tivesse cumprido os deveres na vida precedente.

Entre os séculos 5 e 6 a.C., a Índia era formada por vários reinos independentes que lutavam entre si, disputando a supremacia política. Aos poucos esse número foi se reduzindo devido a conquista militar dos mais fracos pelos mais fortes e hegemônicos. O reino de Magada depois de ferrenha luta com o de Coçola, se tornou o principal da Índia., cujo domínio abrangia todo o vale do Ganges e território da Índia central.

Em conseqüência do maior relacionamento com outros países, as riquezas e a prosperidade da Índia provocaram o interesse de outros reinos belicistas. Dario I, no final do século 6, dominou regiões do vale do Indo. O mesmo aconteceu, em 327 a. C., após a destruição do Império Persa, na conquista de Alexandre da Macedônia.

Embora Alexandre tenha firmado alianças com alguns reis da Índia, não conseguiu estender seu domínio da maneira que desejava porque o seu exército enfraquecido pelos combates, não quis continuar a invasão. Apesar de ter instalado, em algumas regiões conquistadas, vários comandantes macedônios, pouco adiantou porque em 317 a. C., foram expulsos pelos povos locais.

O bramanismo já não conseguia justificar as enormes desigualdades sociais e, como conseqüência, os conflitos se acentuaram surgindo assim outra interpretação do sagrado – o budismo – que pregava a passividade e resignação com a condição social de cada um. De certa forma, ajudou a fundamentar um conjunto de ações sociais e políticas propícias a formação dos Estados escravistas nascentes.

Após a expulsão dos macedônios, diferentes impérios independentes e inimigos entre si, disputaram os territórios mais férteis e prósperos. Pouco a pouco, a religião budista tornou-se dominante.

O comércio interno era vigoroso por meio das trocas comerciais e circulação de moedas de cobre e prata. Por via marítima, o comércio alcançava o Egito, Mesopotâmia, Ceilão, países do Sudeste Asiático; por via terrestre, Irã e países da Ásia Central. Paralelamente, como sociedade escravista, escravos trabalhavam nas propriedades reais e nos trabalhos domésticos.

 

Práticas médicas

 

É provável que a Medicina da Índia antiga já estivesse sistematizada como especialidade social séculos antes da sua invasão pelos arianos vedas em torno do ano 2.000 a.C.

Essa suposição é baseada nos estudo arqueológicos feitos na cidade Mohenjo-Daro, no noroeste da Índia, nas margens do rio Indo. Nesta cidade foram encontrados diferentes seguimentos aluvionai, datados de até 7.000 anos, o que lhe confirma a primazia de estar entre as cidades mais antigas do mundo, desde que o homem começou o seu irreversível processo de sedentarismo.

As escavações arqueológicas de Mohenjo-Daro evidenciaram ruas bem traçadas com rede de esgotos, canalização para água e banhos públicos. Estes achados colaboram na confirmação de que a civilização que se desenvolveu no vale do Indo possuía precisa da importância dos cuidados de saúde pública na profilaxia da doenças.

Essa cidade e outras do mesmo período, que floresceram no vale do Indo e dos cinco afluentes, conhecidos como Pendjad, eram constituídas por diferentes grupos étnicos que obtinham o sustento na agricultura e comercializavam o excedente.

A primeira sistematização da Medicina na Índia antiga está contida no Ayurveda, escritos originalmente em sânscrito com forte religiosidade.

O Ayurveda significa veda da longa vida e constitui a base teórica da Medicina tradicional da Índia. O texto original tem no seu conjunto mil capítulos divididos em cem mil versículos ou Shlokas, por sua vez, subdivididos em Ashtânga, palavra que até hoje é utilizada na Índia como prática médica.

O Ayurveda contém oito capítulos bem definidos que tratam de diferentes temas médicos:

1. Shalya: cirurgia para retirada de corpo estanho, feto morto retido intra-uterino, drenagem de ferida com pus e a utilização de instrumental cirúrgico para efetuar estes e outros procedimentos;

2. Shalakya: cirurgia dos olhos, nariz, orelhas e garganta, considerado hoje como um verdadeiro tratado de oftalmologia e otorrinolaringologia;

3. Kayacikitsã: trata da terapêutica em geral e descreve mais de oitocentos diferentes tipos de plantas Medicinais;

4. Bhutavidya: são os ensinamentos que permitem tratar com os espíritos dos mortos, com os demônios e com os doentes que foram possuídos pelos deuses que causam as doenças;

5. Kaumarabhritya: cuidados dos recém nascidos e das mulheres grávidas;

6. Agadatantra: se refere a toxicologia, aos venenos e os antídotos;

7. Rasayana ou Jarâ: estuda as ervas do rejuvenescimento e os afrodisíacos que contribuem para a manutenção da saúde;

8. Vajikarana ou Vrisha: descreve as propriedades dos afrodisíacos.

Como as Medicinas antigas, do Egito e da Mesopotâmia, denominadas pré-gregas, a da Índia não possuía estrutura teórica para explicar a saúde e a doença fora das idéias e crenças religiosas. Dessa forma, cada doença era uma entidade nosológica específica.

Contudo, existia esforço para compreender o binômio saúde-doença, na Índia antiga, entrelaçado à natureza circundante. Essa aproximação era entendida por meio de cinco elementos fundamentais:

– Dhatu: éter ou vazio;

– Vayu: vento;

– Agni: fogo;

– Jata: água;

– Bhumi: a terra.

O corpo humano seria resultante da complexa combinação desses elementos e as doenças seriam formadas pelo desequilíbrio entre eles.

Construção semelhante ocorreu, no século 4 a.C., na Grécia, na Escola Médica de Cós, com a teoria dos Quatro Humores de Políbio, o genro de Hipócrates. No livro “Da Medicina antiga”, Políbio ancorado nos quatro elementos de Empédocles (agua, ar, terra, fogo), fora das idéias e crenças religiosas, preconizou a origem da saúde a partir do equilíbrio entre os humores: sanguíneo, linfático, bilioso preto, bilioso amarelo.

A diferença entre as propostas teóricas reside na presença do dhatu ou éter ou vazio, na indiana, que poderia ser considerado como resíduo das idéias e crenças religiosas, portando não representando uma proposta teórica completamente desatada da religião.

Os alimentos inadequados eram considerados a principal causa do aparecimento da desarmonia entre os cinco componentes maiores da natureza humana. Como conseqüência, a dieta e a higiene desempenhavam papel importante na terapêutica contida no Ayurveda.

As diferentes formas de tratamento encontradas no Ayurveda, distingue os remédios que fortaleciam o organismo dos que curavam. Os primeiros eram os afrodisíacos e os segundos eram os vegetais com propriedades terapêuticas, que deveriam ser tomados segundo as normas rituais contidas nos Vedas. Nesse tratado de terapêutica estão descritas mais de setentas diferentes espécies de vegetais usadas, na Índia, durante mais de três mil anos.

Até hoje, nas cidades da Índia, ainda é encontrado o curandeiro andarilho shivaista, que carrega consigo os conhecimentos da formulas mágicas, administrando-as aos doentes ao som mítico dos hinos védicos cantados em tom melodioso.

Segundo os ensinamentos contidos no Ayurveda, as doenças se dividem em três tipos:

– Curáveis ou sadhya;

– Melhoráveis ou yapya;

– Incuráveis ou pratyakhyeya.

Do mesmo modo, admite claramente que as doenças são conseqüentes das culpas das vidas anteriores ou karmaja e que para curá-las totalmente é indispensável a penitência ou prayashcitta.

Após a invasão ariana veda, seguida da destruição das cidades e fortificações, os indianos foram transformados em escravos e passaram a constituir a quarta e mais inferior das castas dos tempos védicos, os shudras. Essa conquista na Índia também é relatada nos textos dos Vedas.

Esses textos podem ser entendidos como a compreensão do corpo ligado ao mundo circundante, donde Veda = o conhecimento, o saber e Ayur ou Ayu = o corpo vivente religado ao mundo pelos cinco sentidos. Dessa forma, também é aceitável compreender a palavra Ayurveda como o conhecimento da vida humana ou a ciência da vida humana.

Esse conjunto de saberes milenares tem como objeto o estudo das funções físicas e mentais dos homens e da mulheres, onde a alma (jiva) deve unir-se ao ser cósmico (divino). O corpo em si representaria uma espécie de doença, por impedir a alma de viver livremente, principalmente se ele apresentar doença.

Essa complexa relação que submete as pessoas à vontade do divino, foi implantada pelos arianos, após a conquista.

Existem quatro Vedas e eles tratam das relações míticas da trindade bramânica ¾ Vishnu, Brahma e Shiva:

 – Rigveda: formada das estrofes rik que são cantadas durante os sacrifícios rituais;

 – Yarjurveda: agrupam os Yajus ou as fórmulas dos sacrifícios;

– Sâmaveda: que reúne os Sâman ou melodias sagradas;

– Atharvaveda: compõe no seu conjunto a Atharvan ou as formulas sagradas.

A totalidade destes textos constitui a base doutrinária da religião védica e do bramanismo. Transmitidos oralmente durante milhares de anos, serviram para consolidar o controle social pelo conquistador ariano, tendo a Medicina papel destacado nessa estratégia de substituição.

Os deuses e os demônios representam parte importante da compreensão da saúde e da doença nos textos védicos. Os deuses curadores mais importantes são:

– Os gêmeos Ashvin, de certa forma lembrando São Cosme e São Damião, da religião cristã, que no Rigveda (X, 39, 3b) aparecem como médicos dos cegos, dos desnutridos e dos que sofreram fraturas;

– Rudra, de duplo caráter, maléfico e caridoso. É adorado como o primeiro médico divino nos versos do yajurveda;

– Shiva, oriundo da metamorfose de Rudra, manteve a dupla interpretação deste deus, sendo simultaneamente o deus caridoso e colérico;

– Varuna, considerado o ordenador da ordem cósmica. De certa forma, as doenças são entendidas como o castigo pelo pecado cometido contra essa ordenação.

Por outro lado, os demônios são os principais causadores das doenças incuráveis:

– Nirrit, encarna a perdição;

– Grahi, o endemoninhado;

– Rakshas, especializado em abortos;

– Sitala, a deusa da varíola.

É possível que esses demônios estivessem relacionados a certas situações comuns e temidas: alteração de comportamento, excessiva agressividade, abortos e a varíola.

A relação entre a doença e o castigo divino é constante e muito estreita. Como em outras culturas escravistas, nos segundo e primeiro milênios a. C., Egito e Mesopotâmia, era comum o uso de amuletos para a proteção contra as doenças temidas e adereços voltados a sexualidade.

A maior parte das etiologias das doenças físicas estavam relacionadas à domínio das transgressões das normas de conduta social. Em extensas áreas geográficas da atual Índia, alguns aspectos desses antigos conceitos continuam vivos.

Esse processo contribuiu para que a formação do pensamento coletivo indiano atual em relação aos significados dos binômios saúde-doença e vida-morte tivessem marcas profundas da influência dos conceitos védicos contidos no Yajurveda. Por exemplo, o termo yaksma usado muitas vezes nos textos védicos, com o sentido de debilidade e caquexia, continua sendo utilizado na atualidade pela Medicina-divina indiana, com o sentido preciso de caracterizar as doenças crônicas como a tuberculose que exaurem cronicamente o organismo.

De acordo com a mitologia védica a Medicina teve origem divina. Ela foi revelada por Brahma a Prajapati, o senhor de todas as criaturas, que transmitiu aos Ashvin, os médicos gêmeos; estes, à Indra, o rei dos deuses e este último, a Divodasa, rei de Kâshi (atual Benares). Finalmente, o rei de Benares a ensinou aos homens mortais, revelando os segredos da Medicina aos médicos. Entre eles, estava o lendário médico indiano Sushruta.

É possível que entre esses personagens míticos, tenha existido autores reais que contribuíam para a transmissão do conhecimento médico historicamente acumulado. Um dos exemplos é o personagem semidivino Atreya, que é cantado em várias lendas ao longo de centenas de anos.

O médico Sushruta, o último da cadeia da origem mítica da Medicina da Índia antiga, escreveu o Sushrutasamhita ou Manual Médico de Sushruta. Esse tratado de Medicina, com pouco mais de novecentas páginas, nas edições modernas, é conhecido como Corpus Sushruta.

Provavelmente, o Sushruta-samhita já estava elaborado nos últimos séculos antes de Cristo. Aborda os diagnósticos e os tratamentos descrevendo, minuciosamente, as plantas com as respectivas modalidades de preparo. Está dividido em seis livros que tratam de:

– Clínica;

– Cirurgia;

– Higiene pessoal e coletiva, banhos e massagens;

– Doencas;

– Dieta e exercícios;

– Gravidez.

O segundo mais importante tratado médico da Índia antiga é atribuído a Charaka. De data posterior ao de Sushruta, é caracterizado pela pouca importância dada a cirurgia como forma de tratamento das doenças. O achado de vasilha especialmente destina à guarda de remédios, fortalece a idéia de que as práticas de cura estavam perfeitamente assentadas.

A semelhança dos conceitos é muito grande para ser somente uma mera coincidência entre a teoria grega dos Quatro Humores e a indiana dos cinco elementos. Um dos exemplos da confluência dos conceitos é a referência ao vento nas obras de Sushruta e a da Escola de Cós. No livro “Dos Ventos, Águas e Ares”, atribuído a vários autores, escrito em torno do século 4 a.C., na Grécia, existem pontos muito semelhantes as dos livros indianos.

O juramento que era feito pelos iniciados na Medicina, da Índia antiga, também guarda notável similaridade ao Juramento atribuído a Hipócrates. Os pontos doutrinários de ambos os juramentos são basicamente os mesmo:

– Dedicação plena às atividades de curar;

– Origem divina da Medicina;

– Resistência frente as tentações da sexualidade;

– Manutenção do segredo profissional;

– Obediência as normas sociais.

As rotas comerciais regulares entre a Índia e a Grécia, descritas por Estrabão e Plinio, e a presença dos gregos, bem documentada, a partir do século 4 a.C., quando sob o reinado de Dario, foi fundada a cidade de Barce, na região de Cirenaica, onde já florescia um importante núcleo de conhecimento médico, explicam as trocas dos conhecimentos entre as duas populações.

O tratado médico de Charaka Samhita, composto de oito livros, uma das mais extraordinárias produções da Medicina indiana, é apresentado em forma de um diálogo entre o mestre e discípulo, descreve impressionantes conhecimentos de cirurgias, especialmente a que utiliza um retalho de pele para a reconstrução nasal, até hoje conhecida como retalho indiano.

É possível que o desenvolvimento dessa técnica cirúrgica específica tenha sido conseqüência das pressões sociais exercidas pelo grande número de pessoas que sofreram a punição, resultando na amputação do nariz, como por exemplo, no adultério.

Sushruta explica o procedimento cirúrgico: da folha de determinada planta, cortava um pedaço do tamanho do nariz para moldar a exato formato do retalho de pele a ser utilizado na reconstrução plástica. Ao final, para possibilitar que o paciente respirasse, inseria dois pedaços de junco nas cavidades nasais.

O exame clínico compreendia procedimentos semelhantes aos da Medicina grega, notadamente, os recomendados pela Escola de Cós: a inspecão e palpação das partes do corpo e a ausculta do coração e dos pulmões.

As doenças eram atribuídas ao desequilíbrio dos três humores:

– Físico-espiritual;

– Bílis;

– Fleuma.

Várias doenças foram descritas com notável precisão, como a diabetes e a tuberculose. De igual modo, existem indícios de a malária ter sido associada ao mosquito e a peste, ao rato.

Os tratamentos eram divididos em:

-Clínicos:

– Purgativos;

– Enemas;

– Sangrias pela flebotomia e sanguessugas;

– Hidroterapia;

– Banhos de vapor;

– Inalações;

– Cerca de 760 plantas Medicinais foram descritas, inclusive a Atropa belladona a Rauwolfa serpentina como sedativo.

– Cirúrgicos:

– Cirurgia plástica, para reconstrução nasal ;

– Fístulas anais;

– Hemorródas;

– Tumores no pescoço;

– Amígdalas;

– Drenagem de abscessos;

– Amputações de membros;

– Má fomação congênita do lábio e palato (fissura lábio-palatina);

– Hérnias;

– Cálculos vesicais;

– Catarata;

– Cesariana era praticada com grande precisão, de modo a salvar tanto a mãe quanto o filho;

– Retirada de feto morto retido: quando o feto já estava morto, no útero materno, era realizado o cuidadoso desmembramento através da vagina, com a finalidade de evitar o risco representado pela abertura do abdômen materno;

– Mudança da posição fetal por meio de manobras intra-uterinas para facilitar o parto

Além desses procedimentos cirúrgicos, o livro descreve o tipo e a profundidade de incisão mais recomendada. A delicadeza dos instrumentos cirúrgicos voltados à diérese e a síntese, reforçam a convicção de que a cirurgia fazia parte integrante das práticas de cura:

– Nos abscesso deveria ter dois dedos de profundidade;

– Sempre na direção das cavidades;

– Em certas áreas específicas, como pálpebras, bochechas, têmporas, lábios, axilas, deveriam acompanhar as pregas naturais;

– Direção transversa, nas para as regiões palmares;

– Circulares e semicirculares, para o ânus e o pênis;

– No término da cirurgia, a área deveria ser lavada com morna;

– Uso de retalho de linho como drenos nos abcessos que deveriam ser retirados após três dias;

– Renovação diária dos curativos;

– Imobilização das fraturas e das luxações

O médico indiano utilizava grande variedade de instrumentos cirúrgicos:

– Fórcepes;

– Especulos;

– Escalpelos;

– Tesouras;

– Serras;

– Agulhas curvas e retas para sutura;

– Cautérios;

– Seringas;

– Drenos.

De modo sistemático, as mudanças uterinas na gravidez foram abordadas nos textos médicos hindus, particularmente, a circulação materno-fetal. Do mesmo modo, chamaram a atenção para a influência que o modo de vida materno poderia interferir na saúde do recém-nato: a mulher grávida violenta e mal humorada, poderia produzir um epilético; a ingestão de bebidas alcoólicas durante a gravidez, provocaria o nascimento de crianças debilitadas; os excessos sexuais, causaria a homossexualidade.

As normas de higiene desempenhavam, pelo menos entre as camadas mais abastadas ou as próximas do poder político-militar, papel muito importante. De acordo com as leis de Manu, as prescrições higiênicas eram rigorosas e as lavagens do corpo formaram parte dos ritos religiosos.

Entre as recomendações, destacam-se:

– Higiene das mãos e da boca após cada refeição;

– Banhos completos do corpo após contatos com coisas sujas ou pessoas que apresentassem sinais de doença;

– Excrementos e água servida deveriam ser removidos, imediatamente, para fora de casa;

– Maior higiene das mulheres nos períodos menstrual e perpério;

– Lavagem dos olhos com água limpa;

– Dieta mais vegetariana;

– Cremação dos mortos;

– Punição severa do alcoolismo;

Devido a importância no conjunto normativo da Índia antiga, entre os séculos 2 a. C e 2 d. C., as Leis de Manu, semelhante ao código de Hammurabi, na Mesopotâmia, também ordenaram os procedimentos médicos, punindo os erros médicos e obrigando o pagamento dos serviços profissionais.

O processo formador do médico consistia, em grande parte, memorizar e receitar as recomendações prescritas nos textos védicos.

Parece lógico supor que somente a parcela mais abastada da população, aquela que poderia aprender a ler, estaria apta a receber esse treinamento teórico. Os exercícios práticos consistiam nas visitas aos enfermos, reconhecimento das plantas Medicinais, preparo dos medicamentos e a realização das técnicas cirúrgicas em animais mortos, frutas e bolsas de couro. Quando o mestre considerava que o discípulo estava preparado, apresentava-o ao governante, para receber a anuência da administracão, como requisito indispensável, sem o qual o aprendiz não poderia ser considerado médico.

O compromisso final do estudante assemelhava-se muito ao juramento hipocrático grego:

“Dedica-te por inteiro a ajudar ao enfermo, mesmo a custo de tua própria vida. Nunca agraves o enfermo, nem sequer com o pensamento. Esforça-te sempre em aperfeiçoar teus conhecimentos. Não trates as mulheres se não em presença de seus maridos. O médico observará todas as normas do bem trajar e da boa conduta.”.

 

Leitura complementar

 

BOTELHO, João Bosco. Medicina e religião: conflito de competência. 2ª Ed. Manaus. Valer. 2005.

BOTELHO, João Bosco. História da Medicina: da abstração à materialidade. Manaus. 2a. Valer. 2010.

Botelho, João Bosco. Epidemias: a humanidade contra o medo da dor e da morte. Manaus. Valer. 2008.

BOTELHO, João Bosco. Arqueologia do prazer. Manaus.Metro Cúbico. 1992.

BOTELHO, João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Plexus. 1998.

BOTELHO, João Bosco. O Deus-genético. Manaus. EDUA. 2000.

BOTTÉRO, Jean. La magie et la médecine règnent à Babylone. In: Les maladies ont une histoire. L’Histoire/Seuil. Paris. 1984.

Bouzon, E. O Código de Hammurabi. 3. ed. Petrópolis: Vozes. 1980.

Kramer, Samuel Noah. L’Histoire commence à Sumer. Paris Arthaud. 1986. Le Goff, Jacques & Sournia, Jean-Charles. Les maladies ont une histoire. L’Histoire. Paris: Seuil. 1985. Lyons, Albert S. Petrucelli, R. Joseph. Histoire ilustrée de la médecine. Paris: Presses de la Renaissence. 1979. Zaragoza, Juan R. La Medicina de los pueblos mesopotámicos. In: Entralgo, Pedro Lain. História Universal de la Medicina. v. 1. Madri: Salvat. 1981.

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