Práticas médicas no Brasil colonial

 

 

Práticas médicas no Brasil colonial

 

 

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

A presença da Medicina portuguesa, no século 17, no Brasil-colônia

 

A Medicina, em Portugal, começou a ser ensinada no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, fundado por D. Afonso Henriques, em torno de 1130, pouco depois da autonomia do Condado Portucalense, formando a nação portuguesa.

A utilização dos conventos e abadias para a posse do conhecimento e como núcleos do aprendizado foi uma constante durante grande parte da Idade Média. Entre as razões principais desse fato, destaca-se a guarda, pela Igreja, dos instrumentos de ensino, os manuscritos das traduções dos textos gregos e certas condições que essas instituições preenchiam, capazes de estimular o estudo em poucas pessoas, que dispunham do sustento garantido.

É certo que o Concílio de Tours, no ano de 813, já recomendava a mudança da homilia do latim para a língua vulgar. Essa prática foi aumentando, gradualmente, e contribuiu para o processo de transmissão do saber acumulado em todas as áreas do conhecimento, possibilitando maior acesso às fontes gregas e romanas. O processo cumulativo de informações em documentos escritos contribuiu para vulgarizar, mesmo em pequena parcela da população, muitos livros, que marcaram o pensamento ocidental para firmar o cristianismo como principal religião do Ocidente.

Algumas cidades, sob forte influência cristã, como Toledo depois da sua reconquista do domínio muçulmano, em 1085, notabilizaram-se pelo importante corpo de tradutores, que, aproveitando a experiência deixada pelos árabes, traduziram para a língua vulgar muitos livros gregos e latinos. Foi nesse período que a Medicina cristã tomou conhecimento das obras de Galeno, Avicena, Razes e Albucassis.

As cópias dos documentos traduzidos por letrados e reescritos pelos escribas eram guardadas nas abadias e mosteiros, construídos ao longo da Idade Média, na Europa, para abrigar as diferentes ordens religiosas que se iam formando. Essas instituições religiosas, edificadas nos moldes arquitetônicos de diferentes épocas, tinham, quase sempre, na sua estrutura física, além das suas famosas bibliotecas, certos espaços destinados ao abrigo de doentes, da própria sede e viajantes necessitados.

As primitivas enfermarias foram diferenciando-se e, com o tempo, passaram a funcionar como pequenos hospitais, dirigidos por quem mais conhecia as propriedades medicinais das ervas e tinha habilidades suficientes para prestar socorro imediato às necessidades primárias da saúde. Freqüentemente, não eram médicos, e, na maioria das vezes, tratava-se de curadores populares admitidos nas ordens religiosas. O fortalecimento desse aspecto da vida monástica deu-se à medida que as ordens religiosas tomaram parte importante no cumprimento das suas obrigações no socorro aos seus próprios membros e aos peregrinos necessitados.

As principais e mais conhecidas escolas de Medicina da Europa, no medievo, iniciaram as atividades dentro ou nas proximidades dos conventos e abadias.

A prática médica, exercida no hospital da abadia de Monte Cassino, tornou-se famosa, durante vários séculos, pela competência dos monges médicos e pela biblioteca, que abrigava as principais obras de Hipócrates e Galeno e articulava, com muita competência, as Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial.

Especificamente, os beneditinos ficaram ligados à Medicina por meio da Escola de Salerno, cidade no sul da Itália, próxima de Nápoles. É provável que esse centro de aglutinação da Medicina em Salerno já existisse, antes do ano 1000, num mosteiro que havia nas cercanias. Essa região tinha mantido a forte influência do conhecimento grego e adicionou as informações da Medicina árabe, conquistadores da vizinha Sicília.

É impossível não pensar que tenha havido uma integração de conhecimentos entre os médicos laicos e os monges que se dedicavam à cura das enfermidades dentro dos conventos para o aparecimento das primeiras escolas de Medicina.

Os religiosos desfrutavam de maior proteção dentro dos muros das instituições religiosas contra a fúria popular, quando o tratamento não dava certo e o paciente morria. Os agentes da Medicina-empírica que moravam nas cidades (aqui com sentido de comunidade urbana) tinham a vantagem de estar mais perto das mazelas da população e conhecer melhor os fatores causadores da doença. Essa troca de informações entre religiosos e leigos provocou conflito real, suficiente para gerar a reação da cúpula da Igreja, que proibiu, no Concílio de Reims, em 1131, posteriormente ratificado pelo Concílio de Latrão, em 1139, aos sacerdotes exercerem a Medicina fora dos limites das abadias.

Alguns métodos terapêuticos utilizados eram muito agressivos e causavam grandes seqüelas ou a morte dos doentes, dando origem aos conflitos que acabavam com o linchamento do curador, em especial, do cirurgião-barbeiro. Nessas circunstâncias, era muito mais seguro praticar a Medicina dentro dos conventos do que se expor à vingança popular fora deles.

Pode ter sido para manter a autoridade ou mesmo para melhor disciplinar os clérigos resistentes às orientações conciliares anteriores ao Concílio de Tours, em 1163, que as autoridades eclesiásticas proibiram, definitivamente, aos religiosos realizarem sangrias e outros procedimentos invasivos, frequentemente determinantes da morte do paciente, com base na Bula “A Igreja abomina o sangue (Ecclesia abhorret a sanguine).

A sangria, como terapêutica reconhecida estruturada a partir da teoria dos Quatro Humores, oriunda da ilha de Cós, na Grécia antiga, era largamente utilizada pelas Medicina-oficial e Medicina-empírica, na Idade Média, e, na maioria das vezes, determinava mais dano que vantagem ao doente. Apesar de as complicações serem igualmente graves para todos os agentes da cura que executavam a sangria, foi imposta particular perseguição aos médicos judeus, resultando na morte por linchamento de muitos deles, determinada pelo insucesso do tratamento. Importantes autores professos do cristianismo reconheceram também a posição de insegurança dos médicos judeus frente à fúria do povo.

Entre os séculos 12 e 13, em virtude das ordens conciliares de Trento e Tours, começou o processo de afastamento dos agentes da Medicina-empírica das abadias e a Medicina-oficial começou a ser ensinada no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.

Alguns religiosos que se destacaram no exercício da Medicina, na exclusividade das abadias e mosteiros portugueses, organizaram o primeiro esboço da escola de Medicina em Coimbra e, por essa razão, foram mandados por D. Sancho (1185-1211) para estudar em Paris e, quando voltaram, reforçaram o já existente modelo de ensino ligado ao poder eclesiástico.

O ensino da Medicina em terras portuguesas só foi consolidado mais de um século depois, em 1290, no reinado de D. Diniz (1279-1325), ao fundar a Universidade dos Mestres e Escolares de Lisboa, autorizada a ensinar leis, artes e Medicina. Alguns meses depois, o Papa Nicolau IV (1288 -1292) reconheceu a nova universidade cristã com a Bula “De statu regni Portugaliae quod super hoc factum est, ratum et gratum habemus”.

Até 1493, o ensino em Portugal resumia-se a uma única cátedra com um lente, que lia os textos de Medicina. O mestre João, fundador da Congregação dos Cônegos Seculares de São João Evangelista, tornou-se o mais conhecido.

Somente os membros do clero e os homens ricos dispunham de tempo livre e rendimentos suficientes para se dedicarem aos estudos. As relações dos estudantes com a burguesia nunca foram amenas. Ao contrário, existiram vários atritos, que foram levados a sério pela Igreja e pelo Estado. A mesma Bula que autorizou o funcionamento da Universidade portuguesa, recomendou facilidade para o aluguel das casas aos estudantes, sendo o seu preço avaliado por dois clérigos especialmente designados para esse fim.

Entre os laicos de melhor posição socioeconômica, que podiam pagar o aluguel e o sustento, estavam os filhos dos comerciantes judeus. Com as facilidades que desfrutavam, por não serem obrigados à obediência às regras conciliares, distinguiram-se como grandes curadores, alguns com o reconhecimento da corte. Foi o caso do Mestre Nasim, ao receber carta de exclusividade concedida pelo rei Dom Duarte, em 1434, para tratar das doenças dos olhos. Essa aparente contradição, por um lado os judeus eram perseguidos e alguns médicos judeus privilegiados,  parece ter sido norteada pela competência da cura. Como esses médicos não mantinham obediência às restrições das Bulas papais, é possível que obtivessem melhor resultados se comparados aos dos médicos cristãos e ainda mais em relação aos cirurgiões-barbeiros.

É difícil avaliar com precisão como se passava, realmente, o ensino da Medicina em Portugal daquele tempo e quais foram os critérios para que os alunos obtivessem a autorização real para exercer a profissão. É provável que o candidato não enfrentasse grandes dificuldades e era suficiente dispor de tempo e dinheiro. Por outro lado, se algum curador da Medicina-empírica conseguia obter bons resultados terapêuticos no tratamento de algum cortesão importante ou financista influente, tornava-se mais fácil obter a licença para medicar.

Somente em 1493, no reinado de D. João II, foi introduzida a segunda cadeira no curso de Medicina. Seguindo as prescrições canônicas, ficaram conhecidas como Prima, ministrada nas primeiras horas da manhã, com a leitura das obras de Galeno, e a Véspera, após o almoço, para os ensinamentos de Hipócrates, quando eram lidas, sem discussão, as recomendações médicas, prescritas pela Escola de Cós e elaboradas a partir dos anos 400 a. C. Os livros, conhecidos como “Corpo Hipocrático”, eram compostos de vários manuscritos, provavelmente traduzidos por médicos árabes e judeus, que continham recomendações importantes de normas para a saúde pública, voltadas para a realidade da Grécia antiga.

A leitura dos manuscritos da experiência médica grega dos tempos hipocráticos deve ter sido muito conflituosa para os primeiros estudantes portugueses. A mensagem recebida estava muito distante da realidade vivida. Os textos gregos, oferecendo uma interpretação jônica da saúde, onde a relação do homem com a natureza era preponderante, chocavam-se de modo frontal com a Medicina de Coimbra, que valorizava a cristianização da Medicina, com o predomínio do pouco cuidado com a higiene pública, além da proibição do contato com o sangue, interdição dos estudos anatômicos nos cadáveres e fortíssima presença da autoridade eclesiástica. Grande parte dos remédios, advindos da experiência grega, eram obtidos no Oriente e comercializados por comerciantes judeus e árabes, que acabaram dominando grande parte da farmacopéia européia central medieval.

Esse fato contribuiu para que, durante a Idade Média, muitas cidades medievais tivessem boticários hebreus e florescesse a publicação de farmacologia, como o livro da “Explicação da Droga Medicinal”, de Abu Imran Musa, e o “Compendium Aromatium”, do médico Saladino di Ascoli.

A necessidade de sobreviver às perseguições político-religiosas fez com que esses letrados se adaptassem às mudanças ocorridas durante e após as lutas pelo poder entre cristãos e não cristãos. Foi o que aconteceu com o médico Yehuda Halevi, que trabalhava na cidade espanhola de Toledo, na fase cristã. Com a decisão do Concílio de Béziers, em 1246, proibindo a prática da Medicina pelos judeus, ele se dirigiu para Córdoba, onde continuou as atividades. A situação vivida por Yehuda deve ter sido semelhante a de outros curadores, que sofreram as angústias da intolerância religiosa contra os judeus e árabes.

O ensino da Medicina em Portugal atravessou três séculos sem grandes mudanças e pouco atendeu às necessidades sociais geradas pelas guerras e epidemias. Os inúmeros conflitos entre os doentes e os médicos foram agravados pela ineficiência dos tratamentos recomendados para fazer frente aos freqüentes surtos de doenças infecto-contagiosas. As fórmulas prescritas variavam de excremento de rato ao pó de múmia. As queixas da população aumentaram muito, a ponto de, em várias ocasiões, terem organizado manifestações de protestos contra os médicos. A principal denúncia era o abandono dos pacientes depois de receberem o pagamento pelos serviços prestados.

O distanciamento entre a Medicina-oficial e as necessidades de saúde do povo geraram, em 1472, uma manifestação popular junto à corte, para garantir o direito de trabalho dos agentes da Medicina-empírica. O rei não cedeu e continuou vigorando a ordem real para o físico-mor examinar todos os que pretendiam exercer a Medicina-oficial. As medidas tomadas pela Coroa portuguesa, com o objetivo de fiscalizar a prática da Medicina, estavam contidas dentro do mesmo contexto centralizador da assistência hospitalar.

Não dispondo de médicos formados em número suficiente para assumir as necessidades da população, foi montado um complicado jogo de aparências, para aplacar a fúria popular diante dos tratamentos que levavam à morte, com dois pesos e duas medidas, de acordo com os interesses imediatos. As atitudes tomadas pela administração real, para cercear a liberdade de ação dos agentes da Medicina-empírica revelaram-se competentes, com bons resultados e elogiado pelos doentes e familiares. Ao mesmo tempo em que os aceitavam com reservas, os representantes do rei perseguiam os mais desastrados, os que geravam maus resultados, aplicando-lhes punições, desestimulando outros com idéias semelhantes e incentivando a autoridade dos alunos da universidade.

As pequenas alterações feitas em 1537, no reinado de D. João III, ao introduzir novas Cátedras, inclusive abrindo certo espaço ao estudo da anatomia humana, não produziram efeitos significativos ao serem comparados aos da Reforma Pombalina, de 1772, quando foi concretizada a primeira revisão dos métodos utilizados desde a criação da Universidade dos Mestres e Escolares.

Foi Ribeiro Sanches, ministro de D. José I (1714-1777), o autor do projeto que introduziu o “Novo Método para Aprender e Estudar a Medicina”, que consolidou a obrigatoriedade das aulas de anatomia humana com a construção do Teatro Anatômico e do hospital destinado também ao ensino.

O novo horizonte proporcionado por Ribeiro Sanches, cristão-novo, com sólida formação cultural, foi o resultado da comparação dos conhecimentos que ele adquiriu em universidades européias, inclusive a de Portugal. Era evidente o grande descompasso da Medicina-oficial portuguesa. Enquanto a Universidade de Paris, em pleno Renascimento, havia desvendado a anatomia humana e ensaiava  entender os mistérios da micrologia nos trabalhos de Marcelo Malpighi (1628-1694), trazendo as diferenças entre a macroestrutura e a microestrutura, utilizando as lentes de aumento, a Universidade de Coimbra ainda resistia ao estudo da anatomia em obediência à ordem do Concílio de Tours, de 1163, que proibiu o contato com o sangue humano, por meio da Bula “A Igreja abomina o sangue”.

Esses representantes da Medicina-oficial portuguesa acompanharam os viajantes aportados nas terras do Brasil, entre os séculos 16 e 17, ainda carregados das limitações impostas pelas bulas conciliares, sem conhecer a anatomia, acostumados à passividade frente ao avanço da doença, sempre atribuindo a dor e a morte como vontade divina e usuários intransigentes das cataplasmas, sangrias, vomitórios e purgatórios para equilibrar os humores, em acordo com os textos de Hipócrates e Galeno.

Entre os séculos 16 e 18, foram poucos os médicos formados em Coimbra que se dirigiram às Colônias para trabalhar. O maior número dos curadores que se aven­tu­ra­ram além-mar foram os representantes da Medicina-empírica e da Medicina-divina, compostos de judeus, árabes, padres, alguns benzedeiras e parteiras perseguidos pela implacável Inquisição portuguesa. Essa situação só seria modificada, a partir de 22 de janeiro de 1808, com a chegada, à Bahia, da frota que conduziu D. João e a Corte, todos fugidos do exército napoleônico.

Parece ter havido a presença judia na formação de intelectualidade portuguesa, no século 16, particularmente na Medicina-oficial. Os judeus fugidos dos rigores da intolerância de todos os matizes, nos reinos cristãos da Europa medieval, ajudaram a empurrar esses especialistas em direção às novas terras descobertas, ao Brasil inclusive. Além de médicos, cirurgiões e boticários, eles povoaram as cidades brasileiras como artífices, lavradores, soldados e criadores de gado, facilmente identificados como cristãos-novos.

Outros curadores da Medicina-empírica, como parteiras, benzedores, erveiros, sangradores, cirugiões-barbeiros, mesmo professando o cristianismo, foram considerados incursos em crimes de feitiçaria e condenados em processos conduzidos pela Inquisição, a partir de denúncias assentadas na disputa dos espaços entre as Medicinas-oficial, Medicina-empírica e Medicina-divina, deslocando os fugidos ao Brasil.

 

Prática médica colonial

 

As perseguições aos médicos que ousavam enfrentar o domínio do clero não ficaram restritas à intolerância religiosa na Metrópole. Em 1729, foi queimado vivo em Lisboa o médico cristão-novo João Thomaz de Castro, brasileiro, natural do Rio de Janeiro, com trinta e um anos de idade, por ser considerado convicto, ficto, falso, simulado, confidente, diminuto e impenitente.

No Brasil-colônia, no século 18, as queixas da incompetência dos profissionais diplomados em Portugal eram permanentes e duras. O desembargador Brochado repetia que eles curavam por ignorância e matavam por experiência. O frei Caetano Brandão, bispo do Grão Pará, era mais veemente ao negar a utilidade dos médicos de Coimbra: “Melhor tratar-se uma pessoa com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto de que com um médico desses vindos de Lisboa”.

A Metrópole administrava a saúde dos súditos das colônias da África, Ásia e do Brasil por meio da Fisicatura-Mor, cujo primeiro estatuto data de 1260. A reforma administrativa da segunda metade do século 18, durante o governo de D. Maria I, transformou a velha estrutura na Junta do Protomedicado. É provável que a intenção tenha sido fazer frente às novas necessidades coloniais, sem, contudo, modificar a centralização anterior. A sede continuou em Lisboa com o físico-mor controlando os delegados nas colônias. Essa Junta passou a fiscalizar a prática da Medicina desde a concessão da licença para exercer a Medicina-oficial até o controle de preços dos remédios. O desempenho dessa administração nunca foi competente. A principal causa do fracasso em administrar a saúde da Colônia foi o fato de só haver representantes nas grandes cidades coloniais. Mesmo que as obrigações ficassem restritas aos centros urbanos, ainda assim seria incapaz de exercer as obrigações pelo grande número de itens a cumprir como entidade fiscalizadora, dispondo somente de um funcionário em cada sede.

A Junta exigia que o candidato a médico fosse examinado em Lisboa para ter o diploma reconhecido. Essa foi uma das dificuldades burocráticas impostas pela Junta do Protomedicado ao exercício da Medicina nas colônias.

Os médicos formados em Coimbra eram em número insuficiente para suprir as necessidades da Metrópole; poucos se dispunham a trabalhar nas colônias além-mar.

Não pode ser negligenciado o imaginário seiscentista, que descrevia povos antropófagos e incríveis animais bicéfalos antropófagos. Outros empecilhos se somaram a esses, como a própria distância da Metrópole e a dificuldade de transporte, que podem ter contribuído para limitar a vinda de médicos tão reclamados.

Com a gradativa certeza da necessidade de o colonizador adotar a Medicina-empírica apreendida dos povos indígenas, a única disponível, para curar as doenças dos europeus, os poucos cirurgiões barbeiros, benzedores, erveiros, sangradores, beatas e parteiras, também preencheram os vazios das novas necessidades

Quando interessava à administração colonial aproveitar os saberes de algum curador popular, ele era valorizado publicamente pela corte, que buscava nele a solução para as enfermidades que não eram curadas nem pela Medicina-empírica dos índios e, muito menos, pelos curadores portugueses.

O próprio D. João VI (1767-1826) reconheceu a habilidade do soldado Antônio Rodrigues, que curava com o simples toque das mãos, concedendo-lhe pensão anual de quarenta mil réis.

A reprodução do imaginário europeu medieval em torno da bruxaria se fortaleceu entre os curadores de todos os matizes recém chegados que  utilizavam, nos ritos terapêuticos, a intermediação de bruxas, demônios e duendes, que supostamente provocavam a cura dos amigos e faziam adoecer, até a morte, os inimigos. É conhecido o exemplo da curadora, na Bahia, do século 16, a Maria-arde-lhe-o-rabo, que adquiriu fama por curar muitas doenças causadas pelos demônios.

A população desassistida, que já povoava as principais cidades no Brasil-colônia, só utilizava as alternativas oferecidas pela Medicina-empírica, originadas do conhecimento historicamente acumulado dos indígenas, africanos e europeus, para explicar o aparecimento e a cura das doenças, dando como resultado um rico mosaico de atitudes simbólicas frente às dificuldades, que permaneciam vivas entre a população européia.

A angústia pessoal vivida pelo doente, vítima das doenças tropicais desconhecidas, amedrontado frente à dor sem controle e à morte precoce, gerou novas respostas culturais processadas na complexa mistura entre o índio, o branco e o escravo africano. Naquele momento, o conhecimento indígena tinha sido empurrado para o sertão, fugindo da destruição, e os recursos oferecidos pela Medicina-oficial causavam mais prejuízos que vantagens.

Para tudo havia uma ladainha salvadora rezada com fé junto ao Santo da preferência, fazendo com que o rezador de sucesso se destacasse entre os agentes da cura. Entre as mais conhecidas se destacaram as para curar a bicheira. espinhela caída, soluço, o engasgo pela espinha de peixe e o mau-olhado,

O mau-olhado é um capítulo à parte no mundo dos conflitos sociais gerados pelas doenças e está relacionado aos muitos aspectos culturais que se perdem no tempo, Na mitologia grega, a mortal Medusa, com a cabeça coberta de serpentes e os olhos com brilho excepcional e penetrante, transformava em pedra quem ousasse fixá-la. A origem, provavelmente, é pré-grega, tendo sofrido adaptações ao longo do tempo, até chegar à conhecida concepção helenística.

Essa mesma sociedade também reconhecia a excepcionalidade dos efeitos causados à saúde pelo mau-olhado, que somente poucos representantes da Medicina-divina, com poderes especiais, poderiam tratar. As pessoas que tinham nascido envelopadas, isto é, envoltas na membrana amniótica possuíam poderes especiais e eram as mais indicadas para tratar esse mal.

A crença no mau-olhado parece ser universal. Está presente até hoje em muitas sociedades, significando sempre a mesma coisa: o malefício intencional causado pelo olhar carregado de inveja e malquerença. Quem é atingido pelo mau-olhado sente imediatamente, ou algumas horas depois, apatia generalizada, dores no corpo e na cabeça, alterações na digestão, inapetência , irritação e desânimo. Quando o alvo é criança, os efeitos são naturalmente mais graves com sonolência profunda, olhos encovados e moleiras afundadas.

Exatamente como no Brasil-colônia e, ainda hoje, em outras regiões do mundo, o mau-olhado é reconhecido como uma das doenças que deve ser tratada pelos curadores das Medicina-empírica e divina.

A inviolabilidade do corpo feminino, introduzido de modo marcante, segundo as regras da castidade preconizadas por São Paulo, constituiu outro elemento complicador nas relações entre os curadores oficiais e as doentes. A interdição de palpar as partes íntimas da mulher européia doente, notadamente os seios, o abdome e o órgão genital, causava extraordinária dificuldade de colocar em prática os ensinamentos hipocráticos aprendidos na Universidade de Coimbra.

Como existia grande escassez de mulheres brancas, na Colônia, os maridos não se arriscavam a deixá-las sentir o contato das mãos de outros homens, mesmo sendo médicos. Não raras vezes, eram os próprios maridos que palpavam as partes sugeridas pelo médico na alcova da doente. Esse problema nunca era enfrentado pelo benzedor, um dos agentes da Medicina-divina e da Medicina-empírica, porque não existia o contato direto com o corpo do doente, evitando o conflito gerado pela intimidade da relação, interdito pela vigilância social e religiosa.

Nas ruas do Rio de Janeiro e de Salvador, na segunda metade do século 17, era comum, nos anúncios pregados nas portas, a caracterização da profissão médica, feita em linguagem capaz de proporcionar o conhecimento prévio dos tipos de instrumentos utilizados pelos seus agentes na cura das doenças, como o anúncio oferecendo o tratamento por meio das chupadas das sanguessugas.

Compreendia toda a intencionalidade dos cirurgiões-barbeiros, que exerciam também o ofício de cortar os cabelos e barbas. O aparecimento dos cirurgiões-barbeiros é confuso, em torno do século 11, não existindo, antes dessa data, qualquer referência a eles. É interessante notar que o surgimento dos sangradores como curadores separados dos médicos é coincidente com a decisão do Concílio de Tours (1163), que proibiu o contato com o sangue por meio da Bula “A Igreja abomina o sangue”.

Dessa forma, é possível que tenha sido um rearranjo social para superar a interdição e continuar executando as orientações de Hipócrates e Galeno, em torno da Teoria dos Quatro Humores, a base essencial de toda a estrutura teórica da Medicina exercida no medievo.

Existem citações bíblicas no Antigo Testamento, que consideram o sangue como elemento sagrado ligado à vida e no Novo Testamento, ligando-o ao sacrifício de Jesus Cristo para salvar os homens.

Dessa forma, o cirurgião-barbeiro pode ter surgido para ocupar o espaço deixado pelos médicos que não mais queriam misturar-se com os que exerciam essa prática combatida pela Igreja.

Estava criado um impasse. Apesar de o manuseio do sangue humano, naquela época, não ser aceito pela hierarquia eclesiástica, existiam manuscritos atribuídos a Hipócrates e a Galeno, respeitados pela Igreja, e amplamente divulgados entre os curadores, que recomendavam a retirada de determinada quantidade de sangue para curar todas as doenças. Esse fato foi propício para a reprodução dos curadores que faziam sangrias.

Alguns cirurgiões-barbeiros ficaram famosos e descreveram técnicas cirúrgicas de amputação e desarticulação dos membros, imobilização das fraturas e outros procedimentos cruentos com sucesso. Um dos mais famosos, Ambroise Paré (1510-1590) inicialmente como cirurgião-barbeiro e, por fim, como primeiro cirurgião, servindo quatro reis de França: Henrique II, Francisco II, Carlos IX e Henrique III.

Entre as mais famosas afirmações de Paré, figuram duas com destaque: as feridas por arma de fogo não eram envenenadas por si mesmas e a absoluta necessidade de ligadura dos vasos sangrantes durante qualquer cirurgia. Esses dois preceitos, que hoje parecem insignificantes, representaram grande avanço na obtenção de melhores resultados nas feridas de guerra.

Com as observações feitas nos campos de batalha dos reis de França, Paré afirmou e comprovou que o ferimento determinado pelo corpo estranho metálico deveria ser tratado como todos os outros e, nas amputações dos membros gangrenados ou dilacerados, os vasos sangüíneos de grosso calibre deveriam ser ligados com fios e não mais comprimidos com esterco de boi.

Ambroise Paré deixou importante contribuição teórica para a consolidação da cirurgia como parte da Medicina, além do livro “Obras Completas”, composto por vinte e seis volumes, que foram usados, pelo menos, nos dois séculos seguintes como normas absolutas dos procedimentos cirúrgicos.

O cirurgião-barbeiro era considerado inferior ao médico porque o tratamento das feridas de qualquer natureza era compreendido como arte mecânica, ao contrário da do clínico, tida como arte liberal. Essa situação perdurou até o decreto de Luís XIV, de 23 de abril de 1723, que consagrou, definitivamente, a separa­ção dos barbeiros dos cirurgiões, quando esses últimos passaram a ser considerados mestres em arte e foram admitidos na Universidade de Paris, em condições iguais às dos médicos.

Os agentes da Medicina-empírica que se intitulavam cirurgiões-barbeiros, na França, eram numerosos e desfrutavam da boa aceitação popular. O decreto real que iniciou a extinção, respeitou o direito de escolha dos que não concordaram em prestar exames, para obterem a condição de médico, agente da Medicina-oficial.

A separação entre cirurgiões e barbeiros, efetivada em Paris, em 1723, teve repercussão no Brasil-colônia, com a chegada, nas décadas seguintes, dos poucos cirurgiões diplomados em Coimbra, que começaram a substituir, gradualmente, os antigos cirurgiões-barbeiros e os padres-sangradores, uma espécie de subproduto entre os religiosos que praticavam a Medicina-empírica.

Os religiosos que praticavam a sangria, principalmente jesuítas, tiveram grande participação na difusão dessa forma de tratamento, oriundo da teoria dos Quatro Humores, descrito por Políbio, o genro de Hipócrates, na Escola de Cós, no século 4 a.C.

Se, durante a sangria, algumas vezes executada nas ruas, o cirurgião-barbeiro, por imperícia, cortava algum vaso sangüíneo mais importante, causando hemorragia incontrolável, a solução era dada pela compressão local com esterco de jumento, que o sangrador sempre tinha na sua bolsa de utensílios. Essa terapêutica em nada diferia de algumas recomendações herdadas das práticas populares, dos agentes da Medicina-empírica que atravessaram incólumes a Idade Média, utilizando excrementos humanos e de ratos, urina de rato e de burro, ossos e carne de sapo.

A colocação de sanguessugas tinha, na prática, o mesmo significado da sangria. Eram postas várias delas em contato com a pele do paciente e deixadas durante determinado período de tempo. O número variava com o tipo e a gravidade da doença. A quantidade de sangue que elas sugavam era desprezível, quando comparada com a retirada pela sangria através da abertura de uma veia periférica, que tirava, no mínimo, um copo de 200 ml de sangue com a ajuda do torniquete.

Não são claros os registros de quando as sanguessugas foram usadas com o objetivo de provocar sangria como forma de tratamento. Sabe-se que esses pequenos animais eram empregados na Roma antiga, provavelmente depois da conquista da Gália, onde este recurso terapêutico era muito difundido entre os povos autóctones. Contudo, antes do século 15, os dados são escassos. Na Alta Idade Média, o uso das sanguessugas era recomendado pelos mais conhecidos médicos da época.

As qualidades atribuídas à chupada desses hirudíneos alcançaram o século 19, quando a França importou, em 1833, mais de quarenta milhões de sanguessugas para fins medicinais e a Austrália ofereceu para o mercado londrino mais de um milhão delas.

A sangria pela aplicação das bichas como forma de tratamento, objetivando a retirada gradativa de certa quantidade de sangue, era feita em todos os doentes, ricos e pobres; só variava a origem do animal sangrador e a forma como era colocado no corpo do doente, isso correndo por conta da fama do curador. As boticas de todo o Brasil tinham sanguessugas da Espanha, Itália, Noruega, Rússia, Suécia, Túnis, Portugal para os que podiam pagar caro e as de preço mais modesto, vindas dos pântanos brasileiros do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Paraíba.

Durante os vinte e três dias de febre e convulsão que antecederam a morte da Princesa Paula Mariana, filha do primeiro imperador do Brasil, foi submetida à chupada de quarenta sanguessugas, onze vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres, prescritos pelos dez médicos da corte, que se revezavam à cabeceira real.

O mesmo tormento sofrido por um homem comum, presenciado pelo viajante inglês Lindley, que esteve no Brasil, no início do século 18, quando presenciou o doente ser sangrado vinte e uma vezes em nove dias para curar uma dor de estômago, como instrumento legal, para curar muitas doenças, como variações dos preceitos hipocráticos e galênicos e provocar a sangria.

As autorizações para que os cirurgiões-barbeiros pudessem trabalhar no Brasil, suprindo a falta de médicos, reclamada pelos colonos, continuaram sendo dadas pelo Protomedicado de Lisboa, como a emitida, em 13 de janeiro de 1787, e apresentada às autoridades coloniais, no Rio de Janeiro, por Joaquim da Silva Ramalho. Com os papéis reconhecidos, os médicos diplomados em Coimbra, agentes da Medicina-oficial, eles podiam sangrar, sarjar, amputar e colocar bichas.

A obstetrícia era exercida quase exclusivamente pelas parteiras e comadres conhecedoras dos mistérios da gestação. Eram identificadas pela grande cruz branca sobre a porta da casa. Antes de começar o acompanhamento do trabalho de parto, era colocada a espada desembainhada e entoada a ladainha, evocando a ajuda do Anjo Gabriel.

Os conhecimentos das comadres eram suficientes para saber que o parto seria bom se a criança nascesse de cabeça para baixo com os olhos voltados para as costas da mãe. O bom parto significava sempre o nascimento de uma criança chorona com pouco ferimento no períneo da mãe. Se a criança nascesse envelopada pela membrana amniótica, teria muita sorte e fortuna ao longo da vida. A comadre era uma personagem de certa idade, com conhecimento empírico dos segredos do parto, dos remédios caseiros e das rezas. Não raras vezes, quando o parto complicava, era chamado o médico mais próximo, que raramente resolvia as dificuldades.

A situação da saúde pública no Brasil-colônia, como cópia das condições sanitárias na Metrópole, era catastrófica. As autoridades reais não tinham registros das doenças infecciosas e sequer qualquer planejamento para garantir o programa mínimo de prevenção. A alta mortalidade infantil pouco significava. Ao contrário, o morto de poucos anos iria juntar-se ao grande exército dos anjos de Deus.

 

Processo de substituição das práticas de curas do pajé pelas do colonizador.

 

A estrutura da Medicina, no Brasil-colônia, ficou encurralada: por um lado, o médico formado em Coimbra representando a Medicina-oficial e o e o cirurgião-barbeiro, a Medicina-empírica; do outro lado, o pajé, dono de incalculável saber historicamente acumulado, respeitado e temido pelo seu poder de curar e fazer morrer.

Os relatos do médico holandês Guilherme Piso, desembarcado em Pernambuco em 1637, sob as ordens de Maurício de Nassau, avaliaram com precisão a importância do pajé.

A desastrosa experiência hospitalar da cristandade da alta Idade Medieval, em nada parecida a da Grécia hipocrática. A Europa medieval ficou marcada pela caridade cristã, em grandes albergues, acolhendo os desvalidos e os leprosos, enfim, vítimas de todas as doenças, sempre tratados pelas ordens religiosas, que se dirigiam em multidões desorganizadas e famintas aos santuários cristãos de cura, notadamente o de Compostela, na Espanha.

A evolução desse hospital, que mais se assemelhava com depósito de doentes recusados pela família e, na maior parte, andarilhos, para o modelo das Santas Casas foi lento. Somente no século 16, pressionado pela enorme quantidade de doentes que perambulavam nas ruas de Lisboa, a realeza iniciou o processo de organização em torno da caridade, como marco fundamental do aproveitamento social dos imemoriais elos da solidariedade em torno de um território protegido – o hospital – com garantia de alimento sem esforço.

A transformação do albergue dos séculos 12 e 13, como o lugar onde todos os doentes poderiam receber a caridade cristã, para o hospital, no modelo das Santas Casas, representou o primeiro esboço do poder real em amenizar as elevadas tensões sociais, entre os miseráveis e doentes crônicos.

A primeira Santa Casa de Lisboa, fundada em 1498, certamente também representou um instrumento para exercer melhor o controle da Medicina-oficial, Medicina-divina e Medicina-empírica, quando a grande mortalidade provocada pela peste negra poderia desestabilizar o poder.

Não é exagero articular sobre esse fato, a construção do hospital com o dinheiro das esmolas, como um dos marcos que, verdadeiramente, chamou a atenção das autoridades do reino português para a perspectiva da caridade, agora sob dois aspectos: em primeiro, aumentar e centralizar a arrecadação das doações; em segundo, diminuir as tensões sociais.

As enfermarias pavilhonadas das Santas Casas, dirigidas pelas religiosas das Ordens d’Assunção e do Espírito Santo, com os seus hábitos brancos, em clara associação simbólica ao sagrado e sob a égide do apóstolo Marcos, reproduziram a prática curativa quatrocentista portuguesa, fortemente ligada ao imaginário cristão da caridade, nascida da obediência aos preceitos bíblicos e dos interesses do Estado português.

Quando D. João e a sua corte de quinze mil desempregados chegaram ao Brasil, depois da fuga das tropas do general Junot, encontraram uma situação caótica na assistência médica. A Colônia não tinha médicos nem hospitais. É provável que a sensação próxima do pânico tenha tomado conta dos portugueses temerosos das febres tropicais.

O pequeno número de médicos diplomados, isto é, agentes da Medicina-oficial, que trabalhava no Brasil, já tinha sido motivo de reclamação veemente do vice-rei Luís de Vasconcelos, em 1789, denunciando que só havia quatro deles, insuficientes em quantidade e qualidade.

 

Ensino da Medicina no Brasil-colônia

 

A situação de insatisfação arrastou-se por mais de um século e já era do conhecimento da Metrópole. Imediatamente após a chegada do rei, sentiu-se a necessidade imperiosa da criação de estrutura de ensino capaz de fazer frente à absoluta falta de médicos para atender os recém-chegados. A pronta resposta do Príncipe Regente, futuro D. João VI, ocasionou a criação, pela Carta Régia de 18 de fevereiro de 1808, da Escola de Cirurgia da Bahia, que começou funcionando nas dependências do Hospital Militar.

Esse hospital iniciou as atividades em 4 de outubro de 1799, nas antigas dependências do Colégio dos Jesuítas, por ordem de Dom Fernando José, governador da Capitania, depois das denúncias das péssimas condições da Santa Casa de Misericórdia de Salvador.

Fato semelhante ocorreu no Rio de Janeiro, motivado por igual necessidade em outros setores da administração colonial. Poucos meses depois da chegada da corte ao Rio de Janeiro, aumentou muito a pressão para reestruturar, com maior autonomia, várias repartições públicas para que pudessem suprir as dificuldades impostas pelo distanciamento metropolitano. Assim, passaram a funcionar, no Brasil, algumas repartições que só existiam anteriormente em Portugal, como a Junta de Comércio, Junta da Agricultura, Fábrica e Navegação do Brasil, a Real Fábrica de Pólvora e também a Escola Anatômica e Cirúrgica.

Em 1768, o vice-rei Dom Antônio Rolim de Moura Tavares, Conde de Azambuja, fundou, nas antigas dependências desativadas do Colégio dos Jesuítas, no Morro do Castelo, o Hospital Real Militar e de Ultramar, onde, inicialmente, foram dadas as primeiras aulas de Medicina na cidade do Rio de Janeiro.

Apesar da valorização dos hospitais militares para a instalação dos primeiros núcleos de ensino da Medicina, o Brasil só teve o seu corpo de saúde no Exército em 1849. Entretanto, desde muito cedo, na experiência colonial, os médicos e cirurgiões-barbeiros que atendiam os militares feridos, estavam organizados como agregados às tropas e, mesmo sem patente, tinham remuneração regular, o que, certamente, contribuiu para a organização precoce dos hospitais militares.

Foi inaugurado, desse modo, com o rei utilizando os médicos recém-chegados e os hospitais militares, o ensino da Medicina no Brasil. Tudo feito rapidamente para formar as bases da assistência médica para D. João, D. Maria I, D. Carlota Joaquina e seus sete filhos, acrescidos dos quinze mil refugiados que vieram nas trinta e seis embarcações escoltadas pelos navios ingleses. Seguiram-se as nomeações dos cortesões para os cargos de direção das academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e de Salvador. Para a primeira, foi o cirurgião-mor José Corrêa Picanço, futuro barão de Goiana, e para a segunda, Manoel Vieira da Silva, barão de Alvaizete.

Para conseguir a matrícula no curso, não era necessário muito dote intelectual, bastava que o candidato soubesse ler e escrever. O período de aprendizado durava cinco anos e, até 1832, as aulas eram ministradas por apenas seis lentes e dois substitutos. O diploma recebido não oferecia os mesmos direitos do de Coimbra. Esse reconhecimento parcial pelas autoridades portuguesas gerou vários atritos entre os estudantes e o físico-mor. A tensão ficou em nível crítico depois das manifestações violentas de ambas as partes, forçando o imperador D. Pedro I a assinar, em 1826, o decreto que dava às escolas de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia a autoridade para diplomar os seus alunos.

O decreto imperial, de 9 de setembro de 1826, concretizou a reforma das Academias Médico-Cirúrgicas, transformando-as nas Faculdades de Medicina. O acontecimento ficou gravado no quadro a óleo do pintor Manoel Araújo Porto Alegre, em exposição permanente na Universidade Federal do Rio de Janeiro, retratando o imperador D. Pedro I entregando o pergaminho ao professor Vicente Navarro de Andrade, Barão de Inhomerin.

Com o crescimento das atividades escolares e maior liberdade administrativa, cresceu a pressão por melhores condições de ensino. Os alunos passaram a reclamar por melhor material didático, depois que ficou constatada a inexistência de livros editados em português. Para sanar a dificuldade, passou a ser exigido o conhecimento de inglês e francês pelos novos alunos. Esse estatuto ficou conhecido como bom será, porque além de exigir que os candidatos soubessem ler e escrever, acrescentava: Bom será que entendam as línguas francesa e inglesa.

O curso passou a ter seis anos e, pouco a pouco, os professores e alunos adotaram livros e procedimentos usados pela Universidade de Paris, considerada o centro cultural por excelência.

As diferenças no modo de vida e padrão de controle da saúde pública entre a França e o Brasil, na segunda metade do século 19, eram gritantes. Logo após a Revolução Francesa, foram tomadas medidas sanitárias pelos médicos revolucionários, que modificaram completamente a incidência das doenças infecciosas. Nessa mesma época, em que o incipiente ensino médico brasileiro adotava os métodos da universidade francesa, já ajustada à realidade pós-revolucionária, as principais cidades da França, tinham política de saúde definida.

Afora as grandes diferenças peculiares a cada sociedade, a França já tinha estruturado o ensino médico gratuito, voltado às próprias necessidades, que eram muito diferentes das brasileiras. Por exemplo, Paris tinha cerca de oitocentos quilômetros de esgotos funcionando em galerias subterrâneas. A preocupação das autoridades francesas, naquele tempo, era como poderiam evitar que os dejetos fossem lançados diretamente no Sena. No Brasil, não havia nem o projeto para diminuir a prevalência de inúmeras doenças infecciosas e nenhuma cidade dispunha de rede sanitária adequada.

A análise da grade curricular da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, depois da reforma de 1832, assinada pela Regência Trina (Bráulio Muniz, Costa Carvalho e Lima e Silva), mostra que não havia qualquer referência ao estudo das condições sanitárias e das doenças infecciosas. A atenção era projetada para as doenças mais comuns na Europa e na elite brasileira, sendo a sífilis a maior delas.

O tema central das teses apresentadas pelos primeiros alunos diplomados pode servir como indicador dessa realidade, refletindo o desajuste do ensino da Medicina com a realidade social:

– Influência das religiões e, particularmente, da religião cristã sobre a saúde pública e privada;

– Breves considerações sobre o casamento;

– Medicina e ciência filosófica.

O Estado brasileiro, ainda fortemente atado aos resíduos da estrutura colonial, e sem condição para atender às novas necessidades que acompanharam as transformações sociais, plantou a semente do ensino particular no oitavo artigo do novo regulamento, de 1833, das Faculdades de Medicina, sancionado como lei pela Câmara dos Deputados:

O ensino da Medicina fica livre; qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, poderá estabelecer cursos particulares sobre os diversos ramos das ciências e acessórias e lecionar à sua vontade, sem oposição alguma da parte das Faculdades.

Esse importante item da regulamentação do ensino médico permaneceu até o final do Império, quando os diplomas ainda traziam impresso podeis exercer e ensinar livremente a Medicina, tendo contribuído para o aparecimento posterior do professor livre-docente.

A necessidade sentida para superar as graves deficiências do ensino estava assentada em dois aspectos: o gritante distanciamento da realidade social e a impossibilidade de os formandos atenderem às exigências dos grupos privilegiados em ascensão, que recebia as notícias dos avanços da Medicina editadas nas revistas parisienses.

O primeiro aspecto e o mais grave não obteve resposta, porque estava assentado nas necessidades da maior parte da população, desorganizada nas suas aspirações sociais. Restava a este estrato da sociedade procurar salvaguardar a saúde nos agentes da Medicina-empírica. Contudo, o segundo aspecto da mesma questão gerou imediata resposta dentro e fora da estrutura do ensino. Foram organizados vários cursos de especialização dados por ilustres médicos que não faziam parte do quadro docente, principalmente relacionados às doenças comuns dos ricos. Os cursos eram fartamente divulgados na imprensa leiga, de tal modo que toda a população tomava conhecimento deles e desestimulava os que pretendiam viajar para a Europa na procura de melhor assistência médica.

O acesso aos cursos de Medicina tornou-se mais difícil aos pretendentes situados fora de certo padrão socioeconômico. Passaram a ser exigidos os conhecimentos de inglês, francês, português, latim, filosofia, aritmética e geometria. As barreiras aumentavam porque as tarefas do aprendizado ocupavam todo o dia, não sobrando tempo para o aluno ganhar o seu próprio sustento. Não eram muitas as famílias que podiam manter o filho durante seis anos somente estudando. Se for considerado que só havia duas faculdades de Medicina, em Salvador e no Rio de Janeiro, recebendo alunos de todo o país, a despesa com a manutenção aumentava muito, incluindo os custos de moradia. Apenas os filhos dos grandes proprietários de terras, comerciantes ou nobres podiam estudar Medicina, porque eles tinham a exclusiva garantia do sustento sem o trabalho pessoal.

Nessas condições, a abertura do ensino aos professores sem vínculo com a faculdade foi concretizada sem resistência de ambas as partes. De um lado, interessava à administração compensar as deficiências escolares do aprendizado e, de outro, o corpo discente podia arcar com as despesas. Só a matrícula desses cursos custava vinte mil réis e eram oferecidos nos jornais de maior circulação. As aulas particulares passaram a fazer parte da formação universitária, dadas principalmente pelos estudantes que ocuparam a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Em 1834, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro diplomava os sete primeiros médicos da sua história, seis séculos depois da Universidade de Paris.

A convivência entre alunos e professores não foi sempre pacífica. Os atritos começaram com as denúncias feitas pelos Mordomos da Santa Casa do Rio de Janeiro, no que diz respeito à desordem feita pelos estudantes. Depois de algumas negociações, os estudantes foram aceitos acompanhados de professores, somente nas enfermarias masculinas. Os Irmãos da Misericórdia não concordaram em expor a intimidade das pacientes aos alunos.

Os atritos repetiram-se nos anos seguintes e geraram um regulamento muito severo, em 1835, interditando os alunos de andarem em grupos pela cidade. A reação foi imediata. Os estudantes, junto com a imprensa, conseguiram abrandar a dureza, limitando as medidas disciplinares ao interior das salas de aula. No entanto, foi mantida a punição de três meses de prisão para quem cometesse ofensa injuriosa contra qualquer professor.

O clima permaneceu tenso e as ameaças continuaram acesas entre as partes. A congregação endureceu na cobrança das obrigações escolares, introduzindo uma prova escrita eliminatória. Este novo fato motivou, em 1871, a rebelião dos estudantes, pois estavam faltando professores, livros e laboratórios adequados ao ensino. Novas confusões surgiram na convivência universitária com a volta da presença obrigatória às salas de aula. Muitos alunos foram reprovados pela ausência e reagiram destruindo completamente os poucos laboratórios em 1879.

Apesar de ter havido produção de textos médica, eram insuficientes para as necessidades dos alunos que continuavam estudando nos livros dos autores franceses, ingleses e alemães.

Enquanto o corpo universitário no Rio de Janeiro continuava ajustando-se, nem sempre pacificamente, as publicações médicas continuavam trazendo, de forma contundente, a discussão maior das fases de conflito de competência da Medicina com a religião, enquanto práticas de cura.

A mesma situação foi sentida de diferentes formas em várias cidades brasileiras, de tal modo que gerou respostas semelhantes no seu conjunto: a perseguição sistemática aos agentes da Medicina-empírica por parte dos poucos estudantes de Medicina.

Em algumas ocasiões, o discurso da Medicina-oficial tornava-se claro na disputa do espaço, que acreditava ser exclusivamente seu; em outras, reconhecia o conflito de competência e investia abertamente contra os curadores populares, mesmo sem poder assumir completamente a responsabilidade de assistência à saúde da população.

 

Processo de substituição do pajé pelo médico

 

O processo de substituição iniciado pelo colonizador contra a população nativa foi feito, simultaneamente, por meio da destruição do universo mítico autóctone, da morte na ponta da espada e pelas novas doenças trazidas pelo europeu. O índio não conhecia e não estava preparado para lutar com nenhuma delas e por esta razão foi rapidamente batido na própria terra.

O principal inimigo das relações míticas dos povos autóctones foi o poder da Igreja. Sem dúvida, as autoridades eclesiásticas entenderam, precocemente, que era necessário e a qualquer preço a substituição cultural da âncora de autoridade ¾ o pajé ¾ responsável pela sustentação dos instrumentos da coesão social das sociedades indígenas.

O respaldo legal dessa perversa atitude colonial estava contido na bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, na qual o Papa Nicolau V fixou as normas da colonização cristã em todos os territórios conquistados.

No Brasil, os primeiros que sofreram esta ação conjugada foram os tupis, chamados pelos brancos de tupinambás. O grupo étnico tupinambá era formado por várias tribos pertencentes ao mesmo tronco lingüístico e tinham algumas características socioculturais comuns. Incluíam o Tamoio, Tomimin, Tupiniquim, Caeté, Tabajara, Potiguara e Guajajara e ocupavam a extensa faixa litorânea bem caracterizada. Os grupos indígenas que formaram a grande família Tupinambá foram os primeiros que sofreram o contato com o europeu e participaram das pioneiras expedições ao sertão.

Desses povos que os portugueses encontraram no litoral brasileiro nos anos que se seguiram à ocupação, poucos grupos consegui­ram sobreviver, em número reduzido e completamente descul­turados. Existem estimativas, algumas desencontradas, da população indígena brasileira existente em 1500, todavia os dados populacionais do início do século são bastante significativos.

 O articulado processo de substituição cultural estava atrelado, com laços finos, à compreensão da língua falada pelos povos ágrafos do litoral brasileiro. Sem dúvida que a ancoragem lingüística possibilitou, num primeiro momento, compreender os mundos míticos, em seguida, desmoralizar e, finalmente, substituir. Contudo, ocorreu lentamente, em virtude das dificuldades de compreensão das muitas línguas e também pelo limitado número de europeus que se arriscavam ao contato direto com os ind;igenas.

A partir dessa leitura, é mais fácil compreender por que somente no início do século 18 estava consolidada a marcha do processo de substituição. Nesse conjunto complexo de relações entre o elemento colonizador e o índio, ficou claro a importância do pajé como principal alicerce de muitos grupos indígenas.

Considerando o fato da presença de poucos médicos europeus, até o século 18, e que o elemento colonizador registrou o medo coletivo das desconhecidas doenças tropicais, o pajé, sabedor dos mistérios da sobrevivência, exerceu papel importante nas primeiras aproximações do colonizador em terras brasileiras. Tornou-se evidente, logo nos momentos iniciais, que o pajé oferecia tratamentos mais eficazes, se comprados aos do cirurgião‑barbeiro medieval.

Em pouco tempo, após a ocupação colonial, os europeus constataram que as soluções dadas pelos pajés eram muito mais eficazes e simples do que as sangrias, os purgativos e os vomitórios dos cirurgões‑barbeiros.

Os motivos da atenção colonial ao pajé podem ser agrupados em quatro fatores:

– Os aspectos exóticos e eficazes do tratamento do pajé nas feridas de guerra;

– O aproveitamento dos métodos aprendidos para tratar as próprias doenças, já que não tinham qualquer outra alternativa disponível;

– A associação feita entre as funções do pajé e a do médico europeu;

– A certeza política de que o poder concentrado no pajé deveria ser destruído, a qualquer custo, para que a dominação e a substituição cultural fossem efetivadas.

De modo geral, o europeu se interessou em conhecer as razões pelas quais os índios tinham tanta saúde e não sofriam das mazelas conhecidas e temidas na Europa. Esse fato se mostrou claro na invasão holandesa. O médico holandês Guilherme Piso, vindo na comitiva do Conde Maurício de Nassau, que não nutria rancores e preconceitos como os portugueses registrou a sabedoria dos pajés:

De sorte que daqui se pode ver a uniformidade com que os povos, embora ignorantes e de nenhuma letra, exercem a Medicina conosco. Conservam tão arraigados os preceitos de cura transmitidos tradicionalmente de mão em mão, que hão de sofrer antes a morte do que abandonar as suas opiniões nesta matéria.

Quanto ao último fator, os registros são bastante mais explícitos e precoces. A intenção colonial de substituir os valores do pajé está clara, desde o início da colonização.

A leitura das fontes primárias mostra que a saúde dos tupis, apesar de ter despertado grande interesse no conquistador, não foi o assunto sobre que eles mais escreveram. Entretanto, é possível tirar algumas informações de como se passava a compreensão da doença entre eles, com a ajuda das narrativas feitas pelos cronistas e viajantes que relataram sobre a guerra, a antropofagia, a religião, os mitos e o papel social do pajé. O valor histórico das narrativas sofreu diferentes influências que variaram com a época em que foi assinalada a observação.

Quanto ao valor das fontes, parece existir certa diferenciação em relação à fidelidade dos eventos. Apesar das dificuldades conceituais que envolvem até hoje a palavra saúde a partir dos primeiros relatos, é possível buscar, nos conhecimentos da sociedade tupinambá, alguns aspectos importantes para compreender me­lhor como esses grupos entendiam e tratavam as doenças.

 Esses documentos do colonizador que nos deram notícias da vida dos tupinambás foram feitos na chegada dos portugueses:

– A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manoel, datada de 1.0 de maio de 1500, escrita de Porto Seguro;

– A carta do bacharel mestre João ao rei D. Manoel com a mesma data. Nesse documento, o cirurgião do rei, que estava doente com úlcera na perna, tratou, unicamente, de justificar por que tinha feito pouco. O primeiro médico a pisar as terras brasileiras somente descreveu a sua própria doença e se limitou a montar o astrolábio na praia e determinou a latitude de 17 graus austrais. A sua habilidade de cirurgião‑barbeiro da corte portuguesa não teve qualquer utilidade nos poucos dias que a esquadra passou em Porto Seguro;

– O relato da viagem de ida e volta da frota de Pedro Álvares Cabral feito por um piloto anônimo.

 Nos quatro séculos que se seguiram a esses relatos, muita desgraça e destruição atingiram as sociedades tupinambás. Elas foram extintas com tamanha violência e rapidez que é difícil avaliar com exatidão a grandeza do genocídio.

É possível fazer estimativa aproximada da população indígena da América nos primeiros decênios de colonização. A Escola de Berkeley, uma das pioneiras nesse estudo, apresenta números impressionantes do desastre demográfico dos povos americanos durante os séculos 16 e 17.

É reconhecido que determinado grupo social pode ser extinto, principalmente por meio de dois mecanismos: pela assimilação inconseqüente dos seus membros dos novos valores da sociedade dominante e pela morte dos seus membros.

Na estratégia do processo de substituição cultural, promovida pelo elemento colonizador, a destruição moral e física do pajé assumiu o caráter prioritário na conquista. O pajé, nas sociedades indígenas, era muitíssimo mais do que um simples curador e, por isso mesmo, era respeitado e temido, como bem assinalaram os cronistas. Ele também detinha o conhecimento historicamente acumulado, passado entre as gerações, sustentáculo da coesão social, capaz de interpretar a hora adequada da nova guerra, preservar o equilíbrio populacional, a hora do plantio e da colheita, as migrações e as expedições de caça.

Uma pequena avaliação do que aconteceu aos índios, na costa sudeste brasilei­ra, pode ser sentida a partir dos estudos setoriais de alguns grupos que foram acompanhados, no século 20. Os padres dominicanos calcularam a população Kayap entre seis e oito mil pessoas em 1903. Em 1918, estavam reduzidos a quinhentos; em 1929, apenas 27.

Em poucos anos, os tupinambás passaram de uma gente parda, vistosa, baça e bem disposta, provavelmente com milhões de pessoas saudáveis desfrutando de um universo sociocultural próprio e vigoroso, para algumas centenas de caribocas perdidos, doentes e sem memória que sobrevivem na esteia de uma sociedade que continuam sem compreender.

 

Pair, pajé ou xamã?

 

É interessante o rumo europeu que tomou a nominação do pajé na literatura especializada. Recentemente, foi introduzida a palavra xamã como sinônimo de pajé. Em realidade, esse termo está associado às práticas religiosas asiáticas.

O vocábulo xamã teria a sua raiz etimológica do sânscrito ramanas = asceta com o sufixo ismo e de xaman = esconjurador, exorcista, também usado pelos tungues, povo da Sibéria Ocidental, além de referir a possível associação do xamanismo com o budismo a partir da semelhança entre as palavras sânscrita, ramana; em pali, xa‑man e em chinês, ximan.

Dessa forma, é possível identificar certa confusão na literatura entre as figuras sociais do pajé e a do xamã. Essa situação pode ter sido resultante da introdução da palavra xamã nos trabalhos publicados sobre os índios, das Américas, por alguns antropólogos e etnólogos europeus. É interessante ressaltar que essa identificação do pajé com o xamã asiático é encontrada com maior assiduidade nos escritos do nosso século. Os cronistas e viajantes do período colonial só utilizaram a palavra pajé.

Todos os que estudaram as funções sociais do pajé confirmam que a maior parte do seu poder médico-mítico está assentado na sua capacidade de comunicação com o espírito dos mortos. Este fato, certamente, contribuiu para alimentar a associação com o xamã asiático. Ambos, para concretizar as suas práticas estabelecem estreita intimidade com os mortos

Parece que a relação de intimidade que os índios pareciam ter com os espíritos não era exclusivo do pajé. Nesse sentido, outros membros do grupo eram capazes de estabelecer certo tipo de ligação com os mortos, porém somente os pajés eram detentores do poder da intimidade com os espíritos mais importantes e capazes de modificar os acontecimentos.

Entre os pajés existiam alguns que eram mais poderosos, sendo capazes de se comunicar com espíritos e determinar maior número de previsões e de curas. Talvez aqui ocorra algo parecido com a hierarquização do sagrado. A partir desse escalonamento em função da competência, fica mais fácil estabelecer o valor simbólico de cada elemento que compõe o conjunto social.

Mesmo com toda a desestruturação cultural sofrida pelos diferentes grupos indígenas, é possível verificar que, nos grupos indígenas mais resistentes à colonização, restam vestígios da tradição oral dos mitos cosmogônicos mais antigos, ainda que com sinais do sincretismo cristão, pois os pajés continuam exercendo a sua complexa função no equilíbrio social.

A linguagem dos padres salesianos que trabalharam no Alto Rio Negro, no Amazonas, até os anos 1970, quase quinhentos anos desde o início do processo de substituição cultural, ao abordar a origem das doenças, continua distante do majestoso universo da pajelança e oferece, sob a linguagem cristã, uma idéia da dimensão da tragédia dos povos indígenas:

Seus conhecimentos neste setor ficaram prejudicados pela magia e superstição. Embora a natureza que o rodeia lhe seja pródiga, o indígena quase não usa remédios caseiros, pelo conceito que faz das doenças, sob a influência do xamã ou pajé.

Longe das corredeiras do Alto Rio Negro, outros antropólogos que analisaram parte do mundo cosmogônico dos Yawalapti do Alto Xingu na relação entre os índios e os espíritos, concluiu que não é possível estabelecer relacionamento entre o conceito de doença dos brancos com o deles:

Duas figuras da sociedade humana mantêm uma relação especial com os apapalutapa: os xamãs e os feiticeiros…

De modo semelhante, o registro da transformação que resultou no desaparecimento dos pajés entre os Tapirapé desde a sua primeira visita ao grupo, em 1935, e as últimas notícias recebidas, em 1963, evidenciaram a riqueza cultural da pajelança:

O que eu, em 1935, consegui averiguar acerca do xamã tapirap mostrava‑o, principalmente, como defensor da comunidade contra os maus espíri­tos. Digno de destaque o fato de que ele, representante duma tribo tão avessa às ações bélicas na terra, tornava‑se tão combativo nas viagens ao céu… Além disso, o xamã tinha de saber sonhar para, em sonho, poder empreender as grandes excursões às regiões terrestres e celestes a fim de localizar aglomerações de caça, conhecer outros fatos interessantes para a vida da comunidade e trazer espíritos de crianças. O mais espetacular dessas viagens era a que se realizava anualmente até a casa do Trovão, na época em que violentas tempestades com chuvas ameaçavam as novas plantações… As últimas informações sobre os Tapirap me foram dadas em 1963… Nem praticavam mais atos xamânicos nem intoxicação pelo fumo, para cair em transe. Chamavam de bobagem a cerimônia do Trovão.

Em 1986, as principais agências de notícias divulgaram com ampla publicidade a pajelança feita pelos caciques Raoni e Sepain no pesquisador Augusto Ruschi. Esse acontecimento não teria tido a mesma dimensão sem o apoio explícito de autoridades públicas. Foi essa interferência de caráter político que mais chamou a atenção dos correspondentes internacionais. O jornal Liberation na sua edição de 28 de janeiro, do mesmo ano, estampou em reportagem de página inteira:

Augusto Ruschi, 70, ornitólogo, de renome mundial, parece estar condenado. A origem da sua doença é incurável, mordida de um sapo é a causa. Para salvar o naturalista, o presidente brasileiro apela aos pajés, que farão o milagre.

O ornitólogo já estava, àquela época, gravemente enfermo com cirrose hepática e insuficiência renal. Ele próprio explicava que a sua doença teria começado, dez anos antes, nas suas andanças amazônicas, quando teria sido inoculado com o veneno do sapo dendropata.

Milhões de pessoas, em todo o mundo, viram as imagens pela televisão, do cacique, no papel de pajé, soprando a fumaça de tabaco e fazendo gestos invocativos aos espíritos dos mortos para ajudar na cura do grande naturalista. A pajelança durou alguns dias e não conseguiu mudar o curso da doença e o inesquecível Ruschi morreu, algumas semanas depois, num centro de tratamento intensivo em Vitória do Espírito Santo.

As sociedades científicas divulgaram notas explicativas assegurado que o sapo do gênero Dendropates não é capaz de provocar qualquer tipo de lesão hepática. Por outro lado, esses animais possuem glândulas subcutâneas que secretam alcalóides e causam somente pequenas queimaduras na pele quando permanecem em contato.

Esse episódio em torno do sofrimento do grande cientista, que durou alguns dias, ficou publicamente exposto que a pajelança vista por milhões de pessoas, nos muitos canais de televisão, representou uma reconstrução do antigo poder do pajé.

Essa reconstrução adotou a substituição do termo pajé como sinônimo de chamam. Esse equívoco, igualando o pajé ao chamam, tem sido a regra. As fontes primárias identificaram o pajé:

É o médico, o conselheiro da tribo, o padre, o feiticeiro, o depositário autorizado da ciência tradicional. Pajé não é qualquer. São os fortes do coração, os que sabem superar as provas de iniciação, que têm o fôlego necessário para ser pajé.

Os estudos linguísticos identificaram algumas palavras que estão diretamente ligadas ao que o elemento colonizador entendeu o pajé: Pagi, Pay, Payni, Pai, Pa, Piaec, Piach, Pantch. Todas são formadas etnologicamente estruturadas a partir da raíz pa‑y ou aquele que diz fim ou profeta.

Existem várias expressões de origem tupi para designar esse extraordinário personagem que exercia, durante os primeiros séculos da colonização, entre os tupinambás, tamanha importância entre os grupos indígenas, inclusive o domínio das práticas das curas.De modo muito especial, o relevante destaque do pajé não se restringia à cura das doenças.

A importância que ele desfrutava chamou imediatamente a atenção do colonizador, porque, apesar de não ser o chefe maior, ele era primeiramente temido pelos seus poderes de provocar e bem ou o mal. Dessa maneira, o grupo obedecia-lhe e respeitava-o, sendo as suas ordens acatadas. Certamente, essa importância social, com os anos, passou a ser a principal razão pela qual as hierarquias eclesiástica e leiga identificaram o pajé como um dos mais importantes pilares a serem destruídos, como a base do processo de substituição cultural. Por outro lado, o conjunto europeu recém-chegado passava a avaliar a sociedade tribal com os mesmos olhos e ideário de onde estava vindo.

As palavras do grande jesuíta Anchieta, o conflito de competência entre os poderes da Igreja e do pajé está absolutamente explícito:

Já não ousas agora servir‑te de teus artifícios, perverso feiticeiro, entre povos que seguem a doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes, nem com lábios imundos chupar as partes do corpo que os frios terríveis enregelaram, nem as vísceras que ardem de febre, nem as lentas podagras nem os lábios inchados.

As práticas médicas coloniais, unindo as relações-médico-míticas e o dom terapêutico dos santos cristãos, assumiram grande destaque na estratégia de comunicação do colonizador.

A relevância social do pajé tupinambá, estruturada na suposta possibilidade de ele poder se comunicar com os espíritos, interpretada como manifestação do demônio por vários viajantes, durante os séculos 16 e 18, e por esse motivo deveria ser duramente reprimida: Gabriel Soares de Souza, Claude d’Abbeville, Frei Vicente do Salvador, André Thevet, Maurício de Heriarte e o jesuíta João Daniel.

Por outro lado, não existem muitos registros de como era a formação do pajé. As descrições são insuficientes para que se possa avaliar com maior segurança o processo que culminava na consolidação das relações do pajé com o seu grupo social. É possível que a ascensão do iniciante se desse de vários modos, entretanto pelos relatos dos cronistas que tratam do assunto, os pajés tinham, antes de mais nada, que mostrar competência no desempenho das suas funções médico‑míticas, ter êxito no tratamento de determinadas doenças, fazer previsão do tempo e das colheitas, antever acontecimentos importantes relacionados com as guerras.

Como a figura do pajé era de grande importância na sociedade tupinambá, os europeus, além de terem percebido este fato, muito rapida­mente tiveram a certeza da absoluta necessidade de destruí‑lo. Esta certeza é da maior importância porque sobre ela se fundamentou parte do processo de substituição das aspirações em torno da saúde e das doenças dos índios pelas dos colonizadores.

Era o poder concentrado nas mãos do pajé que intermediava as forças da natureza com o conjunto social indígena. Para os cristãos era impossível conviver com essa realidade, porque se chocava com tudo quanto carregavam da ordem feudal e, principalmente, da hierarquia eclesiástica. Dessa forma, a maior parte da vigilância de dissuasão colonial esteve voltada para a eliminação física e moral do pajé e de todos os símbolos ligados à pajelança. Existem várias comprovações que mostram o quanto a cruz e a espada atuaram, conjuntamente, na substituição das memórias dos povos indígenas. A maior parte delas, mesmo reconhecendo a utilidade social, faz absoluta questão de assinalar o inadmissível poder concentrado no pajé como o pior dos males da organização social autóctone.

Está claro que, na comunicação empregada pelo conquistador para ocupar os novos espaços, o papel instrumental das memórias obteve grande importância nas relações de forças na nova ordem que se instalava. Além da relação de forças que estavam atuantes entre as culturas do branco e do índio na luta pela conquista do espaço, existiu também a interação da utilidade que os novos conhecimentos estavam tendo para os elementos dos dois grupos oponentes.

Considerar somente as relações de forças, por si mesmas, é insuficiente para determinar mudanças significativas no conjunto social. Por outro lado, se estiverem associadas às manifestações sociais das aspirações genéticas, as transformações e substituições serão duradouras e, em muitos casos, irreversíveis.

De igual modo, não há como negar que, se os pajés não tivessem sustentado tanta competência para identificar e resolver os problemas sociais dos respectivos grupos, ao longo de milhares de anos, não teriam desfrutado do imenso prestígio identificado pelos viajantes.

Assim, os saberes dos pajés não ficavam restritos à cura das doenças, mas principalmente ao extraordinário saber historicamente acumulado da natureza circundante.

O emprego da palavra caraíba como sinônimo de pajé, entre os colonizadores, traduz modificações lingüísticas, na trama entre os saberes dos índios e dos brancos, nascidas a partir de algumas características da vida dos homens e mulheres portadores do dom e, por outro lado, tem importância na análise das fases ora em conflito, ora em cooperação entre a Medicina e a religião, no período colonial brasileiro, onde ambas lutam na demonstração da maior competência para empurrar os limites da vida e evitar a morte prematura.

A atitude das mães em fugir com os filhos para a floresta com medo do batismo, que causava sofrimento, pode ter sido o resultado do trabalho do pajé, fomentando a resistência, ao chamar atenção do grupo para a ligação que existia entre a morte dos menores e a chegada do branco.

Dessa forma, as palavras que designam o poder mágico do pajé estão relacionadas com mistério envolvendo pessoas e coisas. Sob essa perspectiva, o termo mair está relacionado com as primitivas designações que os tupinambás deram aos brancos.

Os primeiros viajantes também deixaram clara essa múltipla leitura dos termos mair, caraíba e pajé. Independente da designação recebida, esses elementos humanos muito especiais para os silvícolas eram dotados, sem dúvida, do dom de curar e empurrar os limites da vida e, dessa forma, tornaram-se o alvo principal do ataque da nova ordem político-religiosa.

O modo recluso de viver dos pajés, associado com alguma coisa misteriosa em relação à diferença entre os outros membros da tribo, inclusive o tipo da habitação, descrita em vários autores, em períodos diferentes do processo colonial, de algum modo fortaleceu a proposição étnico‑cultural de colonizador para destruir o universo médico‑mítico dos povos autóctones.

O padre curador, intérprete e agente da nova ordem, traduziu o mesmo fato sob a ótica colonial e iniciou a deturpada associação de caraíba com cristão, já que os indígenas estavam chamando caraíba aos pequenos índios mortos depois de receberem os sacramentos cristãos. Talvez esse fato tenha resultado nas múltiplas associações lingüísticas em torno da identificação do pajé que persistiram, pelo menos, até a invasão holandesa.

Essa leitura torcida, dando à palavra caraíba o sentido de cristão, continuou sendo reproduzida como coisa sagrada e coisa santa, na edição de 1859 da Chrestomathia da Língua Brazílica. É significativa a antinomia da intencionalidade do silvícola, que sentiu a morte dos seus filhos depois de receberem o batismo.

Contudo, no curso do processo colonial, quando os silvícolas perceberam que, como eles, o europeu também adoecia e morria, concluíram que não tinham nada de sagrado e passaram a associá-lo com outro ser mítico ¾ mair ¾ pouco respeitado.

Os séculos passaram e a principal estratégia colonizadora ¾ a desmoralização do pajé frente ao padre curador ¾, representante da Medicina-divina cristã, continua ressoando forte, como ondas centrífugas na superfície de um lago chegando tardiamente à margem, depois de lançada a primeira pedra, ainda no papado de Gregório I. Apesar disso a resistência cultural foi mantida em pequenos grupos que moravam longe da costa, ou que fugiram em direção ao sertão e, por essas razões, tiveram o contato retardado com os brancos.

A conquista cristã do Rio Negro, no Amazonas já esteve sob a égide dos franciscanos, jesuítas, carmelitas, mercedários e capuchinos. A Prelazia do Rio Negro, sob a atual responsabilidade da Ordem Salesiana, em 1965, comemorou cinqüenta anos de atividades missionárias, quando expôs a força histórica do pajé:

Na realidade o pajé intervém na vida dos indivíduos desde o nascimento até a morte. Donde se deduz toda a importância social do pajé, e o respeito e temor que o envolvem da parte de todos os índios, não só da própria tribo, como das outras tribos também. Talvez o maior sacrifício que a catequese católica impõe aos indígenas cristãos seja a renúncia na crença no poder do pajé. Em alguns casos só o consegue parcialmente.

 

 

LEITURA COMPLEMENTAR

 

ANCHIETA, José de. De Gestis Mendi De Saa. São Paulo: Loyola. 1986.

BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das Missões: política Indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola. 1993.

BOTELHO, João Bosco. Epidemias: a humanidade contra o medo da dor e da morte.  Manaus. Valer. 2009.

BOTELHO, João Bosco. História da Medicina: da abstração à materialidade. 2a. ed. Manaus. Valer. 2011.

BOTELHO, João Bosco. Medicina e religião: conflito de competência. 2ª Ed. Manaus. Valer. 2006.

BOTELHO, João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Plexus. 1998.

CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia. 1980.

GOMES, Ordival Cassiano. História da medicina no Brasil no século XVI. Rio de Janeiro: Aurora. 1974.

MARTINS, Edilson. Nossos índios, nossos mortos. São Paulo: Círculo do Livro. 1978.

METRAUX, A. A religião dos tupinambás. São Paulo: Nacional. 1977.

 

 

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