Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 8/11

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

Micrologia

A palavra higiene se impõe no sentido regulador não só da alimentação, mas também como caráter educativo na rotina do trabalho. A ginástica passou a fazer parte da manutenção da saúde. Por esta razão, os ginastas permaneceram independentes frente ao crescente poder médico nas relações sociais e também conquistaram papel importante no aconselhamento do corpo sadio.

O texto De um Regime de Vida Saudável se propõe servir de guia ao público. O autor desconhecido estabeleceu os parâmetros da cultura médica mínima que todos deveriam ter para permanecerem saudáveis. O objetivo central seria estabelecer, pela lei, o caminho que as pessoas deveriam seguir para evitar a doença.

O propósito parece ser o mesmo do autor do livro Da Dieta que aborda, em quatro capítulos, a teoria dos Quatro Humores. Se as patologias eram causados pelo desequilíbrio dos humores – o sanguíneo, o linfático, o bilioso amarelo e o bilioso negro – e estavam relacionadas com ao cotidiano das pessoas, nada mais lógico do que estabelecer normas alimentares com o intuito de evitar os males da alimentação.

A estrutura teórica da Medicina como paideia, na Grécia, no século 3 a.C., estava tão bem elaborada que perpassou o mundo romano. No século 2 d.C., o médico Galeno (138-201), o mais conhecido representante da medicina-oficial romano-cristã, acoplou aos humores da Escola de Cós as novas categorias denominadas temperamentos. Os escritos galênicos, valorizados durante mais de quinze séculos, no Ocidente cristão, valorizava a sangria sobre todas as alternativas de tratamentos. Para cada humor haveria um temperamento que ditaria as condições de saúde, de doença, e da capacidade intelectual de cada indivíduo:

Humor                                             Temperamento

Sanguíneo                                         Sanguíneo

Fleuma                                             Linfático

Bilioso preto                                    Melancólico

Bilioso amarelo                               Colérico

A imensa flexibilidade da Medicina como paideia acabou ferida, na Idade Média, pela intolerância restritiva exaltando a medicina-divina, onde Jesus Cristo e os Santos ao substituírem os deuses e deusas greco-romanos, tornaram-se a única terapêutica requerida pelos incontáveis doentes sem esperanças, nos incontáveis santuários, especialmente em Jerusalém e Compostela.

A influência hipocrático-galênica trazida pelo elemento colonizador esteve claramente presente no Brasil, quando a princesa Paula Mariana, filha do primeiro imperador do Brasil, sob os cuidados dos mais importantes médicos da corte, faleceu após ser submetida às muitas sangrias e clisteres para expurgar os “maus humores”. No século 19, o viajante Von Martius descreveu o temperamento dos índios como “fleumático, por terem pouco sangue nas veias”.

Micrologia e pensamento micrológico

Apesar dos claros resíduos do pensamento grego da Escola de Cós, nas práticas médicas, até o século 19, o processo de mudança estava delineado no Renascimento, especificamente, na busca da materialidade da doença em dimensões cada vez menores da matéria. Esse novo avanço em direção à matéria invisível aos olhos desarmados – pensamento micrológico – foi iniciado com os trabalhos de Marcelo Malpighi (1628-1694), que publicou o livro De Viscerum Structura, em 1666, no qual descreve alguns aspectos da micrologia dos tecidos da língua do boi iniciando o segundo corte epistemológico da Medicina.

O século 17 foi caracterizado pelo aperfeiçoamento das lentes de aumento, fazendo com que o microscópio ficasse mais competente e, como consequência, o pensamento microscópico ocupasse mais espaço na busca da etiologia das doenças, identificando essa etapa da busca da materialidade da doença por meio do invisível aos olhos como o segundo corte epistemológico da Medicina.

O maior fruto da iatrofísica foi Marcelo Malpighi (1626-1696), aluno de Santório. Ele foi o responsável pela introdução do pensamento micrológico que aumentou as margens da materialidade da saúde e da doença.

A histologia, o estudo das microscopias dos tecidos, propostas por Malpighi, trouxe a doença da macroestrutura (corpo), para a microestrutura (célula). Com este fato foi aberta a porta que desvendou a base da Medicina da atualidade: o diagnóstico microscópico, sem dúvida, deslocou a doença da macro para a microestrutura e renorteou as práticas médicas. A maior parte das ações de saúde que são realizadas, na atualidade, é alicerçada no diagnóstico da infecção (qual a bactéria) ou do tumor (qual o tecido onde o tumor iniciou).

Nessa conjuntura, o pensamento micrológico atenuou os medos pessoais e coletivos em relação ao diagnóstico de onde está o tumor ou a infecção. Este fato é facilmente comprovado pelas grandes campanhas mundiais de esclarecimento de como podemos evitar o câncer e as infecções. Em todos esses casos o diagnóstico é obtido do estudo da microestrutura.

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