Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 7/11

Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 7/11

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

Vida saudável

A relação da medicina-oficial com a natureza, que os gregos tão bem assimilaram ao atingir o social, em sistemas de valores e respostas claramente configurados, reforçava-se como paideia. Nesta perspectiva, foi evocada por Sólon ao descrever os elos entre as doenças pessoais e coletivas com a desorganização social. Baseado nessa relação, esse legislador fundamentou parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiam na qualidade da saúde de uma população.

Platão (Górgias 464b, 465a, 501) utilizou parte da estrutura teórica da medicina-oficial grega como instrumento para compor algumas linhas mestras da sua concepção ético-filosófica. Nesse genial processo, estabeleceu valor significante à verdadeira tékhne, como forma de conhecimento na natureza do objeto destinado a servir ao homem.

Os conceitos platônicos confirmaram o médico como a pessoa que, baseada no que sabe sobre a natureza do homem sadio, conhece também o contrário, o homem doente, e competente para encontrar os meios para restituí-lo à saúde.

Com base neste modelo, Platão traçou a imagem do filósofo tendo a mesma função no trato da alma. Existiu, neste ponto do pensamento platônico, uma semelhança viva entre o médico e o filósofo, ao se completarem na busca da harmonia plena do homem com a natureza.

Os médicos gregos interpretaram um dos mais complexos problemas do diagnóstico: as múltiplas formas como uma mesma doença pode se manifestar. Para superar o estorvo, os teóricos das escolas de Knido e Cós viabilizaram classificações descrevendo essas manifestações, mas reconhecendo-as como uma doença (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les belles Lettres. 1981). O genial dessa nova interpretação, nunca antes usada, é o fato de ter evitado o erro cometido nas medicinas-oficiais anteriores, praticadas nas primeiras Cidades, onde as muitas manifestações clínicas da mesma moléstia eram consideradas doenças diferentes. Esse método foi identificado por Platão como dissecação ou divisão dos conceitos universais nas suas diferentes classes (Cornford, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. 2. ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1981).

A Medicina como paideia também contribuiu para que Platão reconhecesse as três virtudes do corpo – saúde, beleza e força – que harmonizariam com as quatro virtudes da alma – piedade, valentia, moderação e justiça.

As atitudes educadoras da Medicina como paideia ultrapassaram os limites da terapêutica e incluíram a massagem, a prática dos esportes, a música, a dança, o teatro e os banhos coletivos no cotidiano da busca da saúde. No texto Das Epidemias (Darember. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855), da Escola de Cós, esta ideia está clara:

“A arte do médico consiste em eliminar o que causa dor e em sarar o homem, afastando o que o faz sofrer. A natureza pode por si própria conseguir isto. Se sofre for estar sentado, não é preciso mais que levantar-se; se sofre por se mover, basta descansar. E tal como neste caso, muitas coisas da arte do médico a natureza as possui em si própria”.

Também é possível sentir, ao longo do século 3 a.C., o vigor da ação médica ligada à noção global da natureza jônica. O livro Das Epidemias confirma os conceitos de harmonia e medida (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855): “ … o esforço físico é o alimento para os membros e para os músculos, o sono o é para as entranhas. Pensar é para o homem o passeio da alma”.

Nesse sentido, o médico era chamado para recompor a saúde, por meio de técnicas desconhecidas dos não médicos. Para esse fim, utilizava os saberes como instrumento de leitura da natureza, como a justa medida da saúde. Hipócrates e os médicos da Escola de Cós, na obra Da Medicina Antiga, seguiram esse pressuposto ao afirmarem que o médico não pode saber de Medicina nem tratar os seus doentes sem conhecer a natureza do homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “… os argumentos deles apontam para a Filosofia tal como a de Empédocles e de outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído”.

A concepção teórica de saúde dos gregos também envolveu a harmonia. Sendo de natureza harmônica em si mesma, isto é, preenchendo na medida e simetria exatas as vicissitudes individuais, a saúde deveria ser procurada neste contexto da compreensão do normal. Sob essa mesma perspectiva, Platão (Fédon, 93e; Leis 773a; Górgias 504c) entendeu a saúde como a ordem do corpo e Aristóteles (Aristote. Ética a Nicômaco. X 1180b) associou o multiplicidade do comportamento moral às múltiplas dietas prescritas pelos médicos para as febres, mas não para todas as febres.

A tendência classificatória do pensamento grego, especialmente o aristocrático, estimulou as tentativas de ordenar as doenças em grupos que apresentassem alguma semelhança no diagnóstico, no tratamento e no prognóstico.

Com a literatura médica contendo as recomendações específicas das normas que deveriam ser obedecidas para evitar a doença, a medicina-oficial grega inicia outra importante contribuição para consolidar-se como paideia – a saúde não dependeria só dos médicos. A dieta, a higiene, o laser, a cultura, o esporte são partes do corpo são.

Os hospitais construídos nesse período eram grandes e possuíam divisões destinadas aos médicos e enfermos. O hospital da Escola Médica, na ilha de Cós, possuía salas de exames, alojamentos individuais para os doentes, salas de banhos coletivos, praça de esportes e anfiteatro para dez mil pessoas. É um dos muitos exemplos de como a arquitetura grega amparava o discurso teórico da harmonia com a natureza na busca da saúde.

O novo espaço da Medicina como Paideia junto aos conceitos jônicos com objetivos educadores, contribuíram para o surgimento das mais importantes obras médicas destinadas ao público não médico. Essas obras, Da Dieta, De um Regime de Vida Saudável e Da Natureza do Homem contêm fantásticas sugestões de como deve ser a vida das pessoas para evitar as doenças. Entre muitos aspectos, descrevem detalhes da caminhada após cada refeição dependendo da idade e das condições físicas de cada pessoa nas diferentes estações do ano.

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