Memórias-sócio-genéticas e as linguagens-culturas: construções essenciais da vida – 5

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

A consciência da vida confortável atingida trouxe a inconformidade com o desprazer. Sendo mais inteligente, não poderia ter a mesma importância das bestas. Logo, é inaceitável uma morte nos moldes da dos outros animais. Tornou se imperativo ficcionar o conforto também após a morte. Mas, não para todos. Somente os aliados e os concordantes com a ordem teriam um repouso perfeito depois da vida.

Nos tempos primordiais, as mudanças operadas no corpo, causando a angústia da deformidade dolorosa, eram as primeiras evitadas. A barriga eviscerada no acidente de caça ou nas disputas pela liderança, ligava o consciente à dor e à morte e era parte do mundo temido.

O prazer, capaz de descontrair o músculo enrijecido, trazia sempre a lembrança do evento agradável. A estrutura dos neurônios foi continuamente adaptada para identificar, na MSG, a polaridade entre prazer e dor, como o caminho mantenedor da vida.

O castigo, necessariamente carregado de sofrimento doloroso, era imposto pelo homem ou pela divindade, nos espaços sagrado e profano, para gerar obediência. O medo, advindo da ameaça ou da dor física, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos violentados, do permitido e do proibido.

O arcabouço da dor física na MSG, transposto para o sofrimento coletivo, moldou a dor histórica na MSGC. A coesão do grupo atingido é reforçada ao identificar as causas e, assim, orientar, através das linguagens, o caminho para eliminá la da ordem social.

A categoria denominada dor histórica é o grito humano pela vida, pela liberdade, pela saúde, pelo conforto, pela dignidade, pela paz e pela ruptura das correntes que prendem o homem à tirania dos outros homens e dos deuses.

É a razão por que sempre existiu a procura de uma ética na conduta humana, ligada à sobrevivência comum, registrada nos códigos de postura, presente no Código de Hammurabi e nos livros sagrados de todas as expressões de religiosidade.

O sagrado ficcionado como mecanismo biológico moldando a forma com a função para compensar a dor, imponderável por si mesma, encontrou unissonância no brado dos espoliados em nome do território e do alimento negados.

Não é intenção simplificar processo de tamanha complexidade. A partir de determinada referência, impõe se a crença numa memorização lenta e gradual, onde as necessidades básicas para sobreviver desempenharam um papel fundamental.

A bioquímica da memória é um dos pontos mais angustiantes do saber acumulado, abriga a quase completa ignorância de como funciona o sistema nervoso humano. Contudo, as informações articuladas com o movimento social mostram a fascinante anatomia funcional no cérebro. A procura das soluções, há mais de quinhentos mil anos, para os problemas enfrentados pelos nossos ancestrais, fez se em etapas.

Os instrumentos foram aparecendo, ao mesmo tempo em que ocorriam mudanças significativas no cérebro, identificadas nos crânios fósseis. Todavia, o avanço foi descontínuo. A arqueologia não deixa dúvida da coexistência entre formas diferentes de artenasato num mesmo período, ajudando a superar as novas dificuldades, impostas pelo aumento gradual das trocas com o meio circundante.

As primeiras evidências do surgimento das idéias estéticas e religiosas são encontradas no Paleolítico Superior. Apesar da impossibilidade de rastrear os sistemas religiosos na pré história, antes de 10.000 anos, tudo indica que o homem, no Neolítico, se comportava como o atual: dominava os mais fracos, modificava a natureza para obter o alimento, fugia da dor e da morte.

Inicialmente foram atribuídos à divindade os anseios da vida. Como a escolha não satisfez as exigências da crítica e não ressoava no observável, iniciou se a longa caminhada de conflitos para achar outras vertentes, capazes de responder às indagações.

O exercício do poder dos representantes da divindade, os sacerdotes e as sacerdotisas, mistos de curadores e adivinhos, impondo o castigo doloroso aos resistentes, resultou nos princípios da dinâmica social, onde a coesão e a dissolução, em equilíbrio dinânico, são dependentes, respectivamente, do predomínio do conforto e da dor, em determinado segmento da sociedade.

Os contestadores das autoridades dominadoras, compreendidos como agentes da dissolução ou pecadores, eram punidos com o pior dos castigos: a exclusão pela enfermidade, mensageira do sofrimento e da morte.

Inicialmente, a linguagem oral e, depois, a escrita retiraram a doença do mundo abstrato. Passou a ser nominada e evitada pela obediência obsequiosa.

A parte significativa da MSGC, ligada à sobrevivência comum, aperfeiçoada durante centenas de gerações, foi transcrita na passagem da oralidade para a escrita. Os adivinhos, encarregados de prever os malefícios mandados, como castigo, pelos homens ou pela divindade, assumiram um papel destacado no poder político.

Os livros sagrados, referência maior da ambiguidade sagrado/profana, são claros quanto ao destaque do curador e do adivinho no controle das mentalidades e na ordem do espaço ocupado.

A adivinhação e a cura sempre estiveram associadas ao mesmo universo de ideias. Elas impõem duas vertentes de abordagem: como atitude mental dos usuários, agente e cliente, e como instituição social. Não existem separadas; são associadas e dependentes.

A reprodução de um evento, exigindo conduta específica para mudar o cotidiano, só é consolidada se houver a prévia coerência com os registros memorizados. É exatamente o que acontece com a prática divinatória. Pouco importa a veracidade individual do ato. O peso da representação está no convencimento dos atores, amparados pela aceitação coletiva onde atuam.

De modo semelhante, o cientista, hoje, trabalhando no espaço profano, pode também mitificar a infabilidade da ciência, adotando postura igual, com as mesmas implicações sócio políticas, iguais às operadas no espaço sagrado.

Os mais antigos registros escritos, feitos na Mesopotâmia, são contundentes. Os assírios e babilônicos entendiam o pecador como o rebelde possesso da antidivindade. Nos textos cuneiformes, as palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento aparecem como sinônimas.

O conflito gerado na convivência dos nossos ancestrais no espaço sagrado, onde a coisa seria engendrada pela divindade, e no espaço profano, com o predomínio do conhecimento empírico, determinou os rumos escolhidos.

A cultura grega antiga, notadamente a da época hipocrático platônica, portou-se como o marco divisor da necessidade de distinguir a opinião do conhecimento. Não bastava mais alguém achar, era imperativo acrescentar os argumentos demonstrativos da linha condutora do evento.

Naquela ocasião, foi mais bem delimitada a materialidade do espaço profano, onde iria florir, com maior vigor, os saberes para iniciar o moroso processo tentando desvendar o corpo e as coisas.

Esta entrada foi publicada em HISTÓRIA DA MEDICINA. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *