Memórias-sócio-genéticas e as linguagens-culturas: construções essenciais da vida – 4

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

II. AS MEMÓRIAS SÓCIO-GENÉTICAS

Apesar de os estudos da anátomo fisiologia terem desvendado alguns aspectos importantes da forma e da função do SNC relacionados com as linguagens oral e escrita, estamos longe, muito longe, de compreender a maior parte das dúvidas.

A principal barreira é a fantástica multiplicidade das formas, no ser vivente, gerando funções semelhantes. Apesar de os homens e as mulheres possuírem áreas anátomo funcionais semelhantes, relacionadas com a linguagem, jamais se expressam igualmente.

As maneiras de articular as palavras, formando as frases e as idéias ficcionais são infinitas. Cada ser humano possui, como produto da interação genético social, a própria marca na linguagem utilizada. Apesar de a gramática ser finita, a língua gerada por ela é incomensurável.

O produto final das linguagens oral e escrita é, consequentemente, um dos vetores que modulam os componentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e os intrínsecos (os padrões genéticos herdados na reprodução sexuada).

O estudo das mentalidades, em diferentes períodos, mostra um histérico repetir coletivo, a partir da ordem vinda de um ponto perdido na escala filogenética, atrás dos anseios fundamentais, ditados por uma categoria nominada neste ensaio de memória sócio genética (MSG). É traduzida na vida de relação, desde os tempos imemoriais na liberdade para buscar, mais e mais, o conforto físico e emocional (aqui compreendido como a liberdade de ir e vir, de falar, de explorar e, sobretudo, a sede e a fome saciadas, o abrigo do calor e do frio) nunca resolvidos para a maior parte da humanidade.

Todos fogem da dor e procuram o prazer. A polaridade entre o conforto e o desconforto, sentido no corpo, são as chaves acionadoras da MSG. Todas as relações pessoais e com a natureza, com ou sem ajuda da técnica, que resultem prazerosas são acatadas, sem esforço, pela maioria. Sempre que a ordem social insiste em limitá las, ocorre resistência. A rebeldia contra o sexo limitado e seus símbolos, em todas as variáveis, o alimento escasso e a incrível sedução pelas drogas proibidas são partes importantes do mesmo universo.

A constância transmitida aos descendentes, pela reprodução sexuada, dos pontos comuns das memórias sócio genéticas pessoais, forma a “memória sócio genética coletiva” (MSGC), contida no cérebro primitivo, herança do traço filogenético comum.

Com reserva por ser mais abrangente e estar contida numa base anátomo funcional, a MSGC pode englobar a categoria junguiana do inconsciente coletivo.

As mensagens escritas ou orais, estruturadas na ambiguidade objetivo subjetivo ou, sob certas leituras, do sagrado profano, trazendo a esperança (não é necessária a certeza, basta o leve indicativo da possibilidade) de amenizar a dor e o sofrimento, são sempre bem aceitas e festejadas pela MSGC. Os acontecimentos, no Leste europeu, entre 1989 e 1992, são adequados para avaliar quanto o poder político age, sem obter êxito, sobre a informação consentida, tentando mudar a MSGC.

Nenhum poder ordenador amparado pela força explícita conseguiu conter, apesar da brutal repressão nos porões da intolerância de todos os matizes, a expressão clara da MSGC, oriunda dos tempos arcaicos, ativada pelo choque das idéias.

O estudo dos regimes autoritários, em todos os tempos, mostra a ordem mais forte criando, pela ficcão, alternativas para influenciar e manter, pela coação, o pensamento idêntico.

A diversidade manifestada na linguagem, através da interpretação do subjetivo é a primeira grande vítima. Os discordantes são perseguidos pela implacável caça ao dissidente. Considerados loucos, os corpos perdem o valor de identidade e o confinamento compulsório, sob a guarda do poder, retira os da cena.

Nada mais esclarecedor do que o politicamente correto, guiando a conduta da maioria, modificando a linguagem superficial e as atitudes, convencida da verdade na nova postura.

A capacidade de convencimento, fazendo parte da idéia institucionalizada, assenta se, sobretudo, na história das representações, das ideologias e das mentalidades constituídas a partir do saber acumulado e sobre ele. Por essa razão, continua muito significativo, junto às massas populares, a sedução exercida pelos políticos, prometendo maior conforto.

Os saberes pós industriais, baseados nos pressupostos da racionalidade, aqueles considerados durante longo tempo como garantia de progresso e abandonados depois de Auschwitz, Hiroxima e das denúncias acerca dos porões da intolerância das ditaduras de direita e de esquerda, não são mais capazes de negar o quanto o corpo sofre durante as emoções violentas.

O empenho do poder, ordenado para orientar a mudança, não obtém resultados, quando toca, de modo inadequado, na memória das lembranças historicamente acumuladas. O medo da dor e do desconforto continuam tão fortes quanto os mecanismos subjetivos, criados pela ficção, para atenuá los ou confundi los.

As investidas político ideológicas para remodelar o mundo, tentando suprimir as lembranças das MSGs, fracassaram. A História também mostra que nem a ameaça da morte coletiva é capaz de desestimular a resistência.

O ato de escrever acoplado à transformação tecnológica, adaptou se, continuamente, a esse querer coletivo: aumentar o conforto e afastar a dor.

Mesmo contestados pelas observações corriqueiras, muitos continuam resistindo à idéia da estreita dependência entre o subjetivo emocional (o mundo das ideias) e o objetivo biológico (o corpo).

É possível compreender, nesse ponto, a fantástica relação entre o ato de escrever com o nascer da consciência, diferenciando o cérebro da mente, traduzindo uma etapa significativa da corrente, entrelaçando a natureza, o social e a História nas MSGs.

Ao mesmo tempo, colocou o homem e a mulher numa condição singular e difícil: possuir a inteligência diferenciada e manter as mesmas características biológicas dos outros animais menos inteligentes, ligados no elo comum da filogênese. Enquanto procuram identificar se entre si, baseados nesse pressuposto, têm a plena certeza de que, mesmo fabricando os artefatos mais sofisticados, também precisam eliminar os excrementos pelos orifícios do corpo, exatamente como o símio preso entre grades no zoológico.

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