Processos históricos na ética médica (5/7)

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

5. Em Roma, antes da cristianização

A deontologia e a ciência médica, em Roma, até o século 5 d.C., foram construídas em torno da herança greco-hipocrática.

Após a conquista militar romana da Ásia Menor e da Grécia, nos anos vinte do século 2 a.C., ocorreu certo esvaziamento político-econômico de algumas cidades-estados gregos que não interessavam ao poder romano. Os médicos dessas cidades, alguns sob forte influência da Escola de Cós, migraram para cidades romanas importantes.

O forte conjunto organizador romano impôs severo controle da saúde pública aumentando a oferta de água potável por meio dos aquedutos, coleta dos esgotos, banhos púbicos, rígida regras para o sepultamento fora do perímetro urbano, aterro dos pântanos, presença do médico pago pelo poder público em muitas cidades. No Império de Adriano, no século 2 d.C., os médicos foram dispensados do serviço militar e, nessa época, a maior parte das cidades romanas, mesmo as nos territórios conquistados, tinha médico remunerado pela administração pública.

Possivelmente, para suprir a demanda crescente de médicos nos novos territórios conquistados, Júlio Cesar ampliou as prerrogativas oferecidas por Diocleciano e ofereceu aos médicos os direitos de cidadão romano e prerrogativas fiscais.

É possível que no fim do século 2 os médicos gregos ocupassem lugares destacados na estrutura administrativa da Medicina romana. Esse fato provocou forte resistência, entre os cidadãos romanos mais cultos, gerando queixas pessoais e coletivas que fazem pensar que tenham se distanciado dos preceitos hipocráticos. Plínio, o Velho, no seu livro Histórias Naturais, e o historiador Marco Pórcio Catão fizeram algumas das mais severas críticas aos médicos gregos.

Como resposta da administração aos descaminhos de muitos médicos, no fim do século 3, o imperador Júlio César assinou a Lei Aquilia e a Lei Cornelia, que puniam severamente a prática do aborto e com o banimento dos médicos que provocassem a morte do doente.

6. Na cristianização de Roma e reinos europeus

O processo da cristianização de Roma, durante o reinado do Constantino e após, fruto do enfraquecimento das fronteiras romanas pelas invasões dos visigodos, introduziu mudanças no sistema mercantil escravista para o feudal e em outros conceitos éticos e morais à prática médica.

Nesse processo complexo, a Medicina se distanciou dos conceitos gregos jônicos da físis e se aproximou da doença como mal, como castigo pela afronta a Deus, já valorizada nas culturas da Mesopotâmia, Índia e Egito. Sem pretender simplificar muito, o tratamento mais importante para a doença como mal, seria a força de Deus e de Jesus Cristo, intervindo para promover a cura por meio do milagre.

É possível compreender essa abordagem, que motivou outros conceitos teóricos à ética e moral, também nas práticas médicas, como uma regressão às conquistas greco-romanas. Regressão que iria se materializar na organização urbana, no medievo cristão europeu, com as administrações das cidades se descuidando dos cuidados com a higiene pessoal, traçados das ruas, abastecimento de água potável, enterramento dos corpos nos limites urbanos e esgoto sanitário. Seguindo o exemplo de Jesus Cristo e dos apóstolos, cujos sacerdócios incluíram muitas curas milagrosas, o milagre passou a ser a principal fonte de recuperação da saúde. Nesse sentido, nos séculos seguintes se intensificaram as peregrinações aos santuários católicos curadores e a devoção aos santos com poderes de curar determinadas doenças.

Com o fechamento das escolas de Medicina nos moldes greco-romanos, no final do século 5, as práticas médicas se aproximaram das abadias e mosteiros, onde padres e freiras prestaram assistência aos doentes sob a égide da ética e da moral cristã.

Nesse período, sob a guarda das proibições eclesiásticas impondo nova ordem à ética médica, impedindo as práticas cirúrgicas, mais duramente a partir do século 9, certamente motivadas pelos maus resultados, as necessidades sociais buscaram caminhos alternativos para sanar as dificuldades. Entre os séculos 10 e 11 existem muitas referências sobre um personagem estranho e temido, que preencheu os espaços vazios deixados pela proibição eclesiástica da prática cirúrgica: o cirurgião-barbeiro. Sem qualquer formação médica e vínculo institucional, esses homens andarilhos percorriam os caminhos entre as cidades medievais, cortando cabelos, barbas e unhas, sem qualquer obrigação ética, amputavam membros gangrenados, lancetavam abscessos, quase sempre seguidos de morte dos doentes. Para evitar que fossem mortos pelos parentes do doente morto, de tempos em tempos, eram obrigados a fugir rapidamente.

Cada vez mais fechada sob si mesma, no interior das abadias e conventos, distante das recomendações hipocráticas, os padres sem qualquer preparo médico que exerciam a Medicina fora dos muros das instituições cristãs, provocaram tantos conflitos, motivados pela má prática nos procedimentos cirúrgicos, causando sequelas e mortes, que as autoridades cristãs, nos Concílios de Rems (1131) e de Roma (1139) proibiram que os religiosos exercessem a Medicina fora das abadias e mosteiros.

Ao mesmo tempo, os grandes teóricos do cristianismo como Abelardo, Bernard de Chartre, Tomas de Aquino, entre outros, iniciam o processo de resgate doutrinário das obras de Platão e Aristóteles, obrigando novas leituras da ética médica.

No século 13, tentando vencer as resistências eclesiásticas, Jean Pitard, um cirurgião-barbeiro, funda a Confraria dos Cirurgiões, sob a guarda de São Cosme e São Damião, introduzem normas éticas aos cirurgiões-barbeiros e roupas diferenciadas que os distinguiriam dos outros que permanecem contrários ao novo código ético das confrarias.

Do outro lado, esses núcleos médicos em algumas abadias e certos mosteiros, serviram como sementes às futuras universidades que seriam criadas a partir do século 13, em vários reinos da Europa, na alta Idade Média, quando a ética médica sob forte influência da Igreja, passariam por novas mudanças.

As abadias de Salerno e Montpelier, dois dos núcleos mais importantes das futuras universidades, se distinguiriam por retomarem antigos conceitos éticos gregos da Escola de Cós. Ambas valorizaram a base ética da Medicina, até hoje válida: “Em primeiro lugar, não façam mal”.

Outrossim, o lado sombrio da intolerância, patrocinada pelos julgamentos políticos da Inquisição, destruiu os núcleos éticos da Medicina, colocando-os sob o fogo das fogueiras de lenha verde sob o estigma da bruxaria, assassinando milhares de pessoas que praticavam a Medicina-empírica fora dos dogmas cristãos: herveiros, parteiras e benzedores.

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