Naquela época, o médico assumiu atributos mais amplos, reconhecido como um dos especialistas sociais que poderiam contribuir na edificação do pensamento coletivo, sem dúvida, transpondo as funções históricas somente centradas na cura das doenças, presentes em muitas sociedades, tempos antes da polis grega.
A influência jônica, buscando a materialidade dos fenômenos corporais, mais ou menos visíveis, foi tão intensa que a maior parte da literatura médica da época foi registrada em prosa jônica, apesar de ter sido escrita na ilha de Cós, de população e língua dóricas, onde floresceu a Escola Médica de Hipócrates. Esse fato por si só, retrata a relevância da cultura jônica naquele tempo.
Não há dúvida de que a importância social do médico, na Grécia, como o principal agente na busca da saúde já era reconhecido, coletivamente, desde Homero, que sentenciou no magistral Ilíada: “O médico vale por muitos homens”. A mudança dessa abordagem mítica do médico, ligada ao panteão, especialmente em Apolo e Asclépio, presente tanto nos versos da Ilíada quanto nos da Odisséia, para aquela valorizando os princípios jônicos, contribuiu para consolidar o destaque social do médico sob outra perspectiva: a busca da relação do corpo com a natureza, referida de diferentes modos por Platão (Protágoras 313D, Górgias 450A, 517E, República 298A e Timeu 78B).
Os vínculos da Medicina com a natureza, tão bem assimilados pelos gregos, claramente, ultrapassavam o senso histórico da cura das doenças e fixavam regras no conjunto social, objetivando a melhoria das condições de saúde. Essa afirmação também pode ser comprovada em Sólon, que descreveu a conexão das doenças ao todo social. Baseado nesse pressuposto, Sólon fundamentou parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiram na qualidade da saúde coletiva.
De modo semelhante, os elos entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante também estão nítidos na introdução do livro Dos Ventos, Águas e Religiões, de autor desconhecido, escrito nesse magnífico período:
Parece lógico pressupor que como uma das consequências dessa influência jônica, floresceu a Escola de Cós, que congregou médicos e filósofos, sob a influência de Hipócrates, em quem Platão reconheceu a personificação da Medicina.
Hipócrates foi realmente respeitado como símbolo de uma Medicina corretamente aplicada, essencialmente, voltada ao bem-estar e à recuperação do enfermo, como está claro nas conhecidas passagens de Platão (Prot.313 B-C e Fedro 270 C) e de Aristóteles (Pol. VII, 1326).
O aparecimento de uma literatura médica específica, discursiva na busca das condutas que poderiam melhor ajudar o doente, mostrou-se importante no desenvolvimento e aceitação da importância da Medicina nas relações sociais. Nesse sentido, tornou-se fundamental a interpretação do papel social do médico registrada por Platão (Leis, 857 D e 720 C–D), onde abordou as terríveis diferenças entre as Medicinas praticadas nos escravos e nos homens livres. Com arguta percepção, o magistral filósofo descreveu de modo satírico a conduta dos médicos que tratavam os escravos, correndo de um doente para o outro e oferecendo instruções rápidas sem convencimento, com os que atendiam os homens livres, sempre bem remunerados, com tempo disponível para explicar cada etapa do tratamento preconizado.
O interesse pelo saber das matérias médicas, presentes no homem culto grego, pode ser compreendido na figura do jovem Eutidemo, que Xenofonte descreveu como grande entendido da Medicina sem ser médico, e do historiador Tulcídides, que relatou com incrível minúcia o quadro médico-social da peste que assolou Atenas entre os anos 430 e 427 a.C.
Aristóteles vai longe e chega a distinguir na sua obra Política (I, II, 1282), o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções especificas.
Esse conjunto de informações é suficiente para afirmar a existência de uma literatura médica que alcançava os letrados da polis. Nesse conjunto, também é possível perceber a complexa interdependência entre os conceitos produzidos pelos filósofos não médicos e pelos médicos. Algumas vezes, estavam em acordo; em outras, em completa discordância.
A compreensão mútua, perceptível entre médicos e filósofos, de que a saúde era o produto do equilíbrio de várias forças antagônicas no organismo, contribuiu para consolidar outra corrente de pensamento, liderada por Políbio, o genro de Hipócrates, que, sob a influência da idéia dos quatro elementos de Empédocles — fogo, ar, água e a terra — e da noção do justo equilíbrio, proposto por Anaximandro, produziu a teoria dos Quatro Humores — sanguíneo, linfático, bilioso amarelo e bilioso negro — para explicar as causas da saúde e das doenças. A teoria dos Quatro humores, atribuída a Políbio, descrita no livro Da Natureza Antiga:
– Que no caso de um doente afetado por uma alimentação cozida, não é possível dizer se a causa foi o calor, se o frio, se a humanidade ou a secura;
– Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de tomar água quente ou vinho quente ou leite quente e a água o vinho e o leite têm propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor.
Em torno dessa discussão dos acordos e desacordos entre filósofos e médicos gregos no século 4 a.C., é possível entender a teoria dos Quatro Humores como o primeiro corte epistemológico da Medicina, antepondo-se frontalmente às práticas médicas, sob a tirânica influência das idéias e crenças religiosas, nas primeiras cidades, margeando os rios Nilo, Indo, Tigre e Eufrates.
A teoria dos Quatro Humores norteou os rumos da Medicina dominando as técnicas dos diagnósticos e das terapêuticas por quase dois mil anos.