Paraíso, caridade e hospitais na Europa medieval

 

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
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L’Hôtel de Dieu – Séc XIV.
A etimologia de paraíso tem ligação com paradaiza, do persa, que originou pardes, no hebreu, e paradeisos, no grego, significando jardim. Sem dúvida, não um jardim qualquer, mas retratando o lugar pleno de conforto e prazeres.

Cipriano, no século III, destacou-se na primeira concepção cristã de eternidade com bem-aventurança, plena de fartura e felicidades: “Uma terra luxuriante, na qual os campos verdejantes estão cobertos de plantas nutritivas e guardam intactas suas flores perfumadas”. Na mesma linha, São Pedro Damião, no século XI, adicionou o pressuposto de que, no paraíso, não existiria a miséria presente no medievo: “Não vemos mais nem lama, nem lodo, nem contágio. Aqui, o horrível inverno não castiga mais, nem o tórrido verão. A floração contínua de rosas cria uma primavera perpétua”.

Atentos ao protestantismo que recusava as idéias de um paraíso materializado, os teóricos do Concílio de Trento (1545-1563) iniciaram o processo para adicionar obrigações que justificassem o acesso à bem-aventurança após a morte, com destaque à participação laica na graça santificante.

Os cristãos uniram as determinações conciliares à caridade, para garantir as delícias do paraíso, após a morte. Com a aquiescência da Igreja, entenderam que a ajuda prestada aos enfermos desamparados, com certeza, contaria créditos para que fossem esquecidas, no Julgamento Final, as injúrias e crimes cometidos durante a vida, não importando quantos malefícios tivessem causado.

Sem que os teóricos trentinos tivessem especificado como seria a ajuda aos doentes, o senso comum firmou duas alternativas: abrigar os doentes nos castelos ou agrupá-los em instituições administradas pela Igreja. A primeira, presente nas canções de cavalaria, foi discretamente rejeitada pelos senhores feudais, temerosos da contaminação pelas doenças infecciosas, em especial, a lepra e a peste. Então, só para os ricos, a segunda tornou-se instrumento para alcançar o paraíso por meio das generosas contribuições para construir os L’Hôtel de Dieu (Hotel de Deus) e os Xenodochium pauperum, debilium et infirmorum (Hospital dos pobres, dos fracos e dos enfermos) e manter longe os pestilentos.

Como os donativos somaram quantias inimagináveis, afinal, os abastados desejavam as delícias do paraíso depois da morte, tornou-se necessário criar novas ordens religiosas para administrar a fortuna e os novos hospitais. Entre as mais importantes, destacaram-se os Hospitalários de São João, Antoninos e Espírito Santo, que atuaram intensamente em vários reinos europeus, em especial em Portugal, onde os avanços sociais e políticos contra os dogmas eclesiásticos medievais foram muito mais tardios, se comparados aos reinos da França, Itália e Inglaterra.

De modo geral, quanto maior a miséria coletiva, maior é o chamamento à caridade. Nesse sentido, Portugal foi particularmente castigado pela peste negra, pelo menos com duas dezenas de surtos, registrados entre 1188 e 1496.

As epidemias do século XIV, agravadas pelas guerras intestinas da nação portuguesa, mostraram-se tão desesperantes que o enterro dos mortos tornou-se impossível. Os cadáveres acumulavam-se por toda parte, oferecendo aos que sobreviviam a ideia da chegada do fim dos tempos e o cumprimento das previsões apocalípticas.

Impedidos ao acesso de Jerusalém, conquistada pelos muçulmanos, os que resistiram à morte, pela doença ou fome, marcharam em grandes procissões na direção de Compostela, na busca do milagre, no santuário de São Jaime. Muitos peregrinos morriam no caminho ou não conseguiam continuar, impedidos pela fragilidade física. Com o dinheiro da caridade, muitas hospedarias-hospitais foram construídas nos caminhos que levaram a Compostela e utilizadas pelos devotos, seja para recuperar as forças e seguir a procissão ou morrer.

Em Portugal, junto à caridade também permearam outros interesses. Não se deve estranhar que, em muitos casos, estivessem ligados às vantagens financeiras. O argumento ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao irmão D. Duarte, sugerindo a intervenção real na administração das hospedarias-hospitais, como alternativa para reabilitar a debilitada economia do reino.

A Igreja e Portugal passaram a disputar acidamente esse filão inesgotável de recursos que a caridade representava. As ordens religiosas devem ter sido mais ágeis, ao ponto de a situação ter ficado insustentável, causando prejuízo à arrecadação real. A reação foi imediata. Por ordem de D. Duarte, publicada nas Ordenações Alfonsinas, de 1446, ocorreu a intervenção nas albergarias-hospitais, instruindo que todos os legados doados às irmandades deveriam ser encaminhados aos tribunais laicos e não mais aos religiosos.

A dissolução compulsória das albergarias-hospitais foi seguida de medidas tomadas por D. João II, para organizar um hospital único, sob o controle da administração real. Somente em 1479, por meio da Bula de Xisto IV (1471-1484), o rei de Portugal recebeu a autorização para construir um hospital único nas principais cidades e sob a administração laica.

Contrariando a expectativa, a unificação das incontáveis instituições de caridade voltadas à assistência médica, idealizada para fugir do controle de Roma, não deu certo. Pouco mais de dez anos depois, a Igreja suplantou o Reino português adaptando o antigo projeto centralizador para criar as Santas Casas, sob a administração dos Hospitalários de São João, dos Antoninos e do Espírito Santo, que se firmaram da Ásia às Américas, inclusive chegando a Manaus, no século XIX, que continuaram receberam doações ainda mais abundantes dos ricos desejosos do paraíso.
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Hospital dos Peregrinos, em Compostela.
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