Anatomia humana: resistências ao desvendar do corpo no monoteísmo

 

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
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Lição de anatomia do Dr. Tulp, por Rembrandt (1606-1669).
O estudo da anatomia não encontrou proibições nas sociedades greco-romanas. Na Grécia do século 4 a.C., na ilha de Cós, Hipócrates e os seus discípulos iniciaram a ruptura da Medicina com as idéias e crenças religiosas hipocráticas, trazendo para os médicos a responsabilidade do diagnóstico e do tratamento. No período pós-hipocrático, em Alexandria, o empirismo dos geniais Erasístrato, Sorano e Herófilo valorizaram a anatomia humana e as necropsias. Em Roma, no século 2 d.C., Cláudio Galeno (129-200) afirmou que “o cirurgião deve conhecer a anatomia para evitar lesar os vasos e nervos”.
Em contrapartida, o monoteísmo judeu manteve e o catolicismo e o islamismo seguiram atados à dependência da saúde e da doença com Deus. A História mostra com fartos registros que o estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou dificuldades nas estruturas de poder das religiões monoteístas.
A maior justificativa da resistência está contida no dogma fundamental de o Homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1, 26: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra”).
Compondo parte significativa dessa construção, o sangue como um elemento essencial do corpo, foi entendido de modo semelhante pelos teóricos das três religiões monoteístas: a proibição do manuseio reforçou a restrição à anatomia humana.

JUDAÍSMO
Os teóricos do monoteísmo do povo de Israel obrigaram-se a contornar um enorme empecilho, aparentemente insolúvel, refletido na realidade sociocultural dos povos que viveram no Oriente Médio: a forte tradição politeísta anterior.

A fantástica superação desse estorvo está em grande parte contida na narrativa da criação, transformando-se no ponto culminante da epopéia teológica monoteísta.
Com o pressuposto de o indivíduo observável — o homem e a mulher — representar a cópia fiel de Deus, nada justificaria o estudo do corpo. Desse modo, o naturalmente desconhecido — o corpo humano — compunha o milagre criador.
Por essa razão, os médicos judeus, alguns também rabi­nos, só estudaram os cadáveres insepultos dos heréticos e condena­dos, sem significado para a coesão social do grupo (Talmud, Bekhoroth 45a: “Um dia os discípulos de Rabin Ismael dissecaram o corpo de uma prostituta que o governante tinha condenado à fogueira… ”).

CRISTIANISMO
Em relação à sacralidade do corpo, o cristianismo — a Nova Aliança — introduziu novos ajustes na estrutura do espaço sagrado oriundo do judaísmo. Um dos mais significativos relaciona-se às explícitas diferenças entre o corpo visível e o espírito invisível (Mt 10,28: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”).

Com essa clareza, a teofania neo-testamentária fortaleceu o Homem sendo composto de um corpo e um espírito interligados. Após a morte, o espírito receberá o prêmio ou o castigo em dependência do conjunto de ações que o corpo fez durante a vida: (2Cor 5, 10: “Aliás, todos nós temos de comparecer às claras perante o tribunal de Cristo, para cada um receber a devida recompensa — prêmio ou castigo — do que tiver feito ao longo de sua vida corporal”).
A compreensão do sangue, compondo o corpo como parte inseparável e essencial, tanto no Antigo Testamento (AT) quanto no Novo Testamento (NT), manteve sentido semelhante (Mt 16,17: “Respondeu-lhe Simão Pedro: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Disse-lhe Jesus: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelou, mas meu Pai, que está nos céus”. 1Cor 15,50: “Mas digo isto, irmãos, que carne e sangue não podem herdar o reino de Deus; nem a corrupção herda a incorrupção”).
Em comparação ao AT, o NT aborda de maneira muito mais marcante a importância do sangue na construção da vida ligada a Deus. Enquanto Moisés inaugurou a aliança entre Deus e o povo eleito com o sangue dos animais sacrificados, a Nova e Eterna Aliança foi selada por Jesus com o seu próprio sangue (1Cor 11,25: “Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei‑o em memória de mim”).
Esse conjunto teórico de salvaguardas contra o estudo da anatomia humana culminou com a absoluta proibição do manuseio do sangue, no Concílio de Tours, em 1163, com a proclamação da bula Eclesia abhorret sanguine (A igreja abomina o sangue).
O fechamento das escolas de Medicina, o aparecimento dos cirurgiões-barbeiros que cortavam cabelos e barbas, drenavam os abscessos e amputavam os membros, destacam-se entre as consequências dessa intolerância.

ISLAMISMO
A palavra árabe correspondente a anatomia, ilm al‑tasrib, é precedida pela raiz saraha que significa literalmente trinchar, cortar, separar.

Como o islamismo entendeu a criação dependente e sequenciada (Sura 23,13‑14: “Depois, transformamos o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e revestimos o osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o melhor dos criadores”), a dilaceração da carne, indispensável ao estudo da anatomia, foi seguidamente impedida pela convicção de que a integridade do corpo era indispensável à ressurreição.

CORPO DESVENDADO
Com a decomposição da ordem feudal, houve a sedução coletiva para renascer a cultura grega. O desejo de conhecer o que estava encoberto sob a pele dominou a interdição, já irremediavelmente enfraquecida pela corroída ordem feudal.

As novas universidades impulsionaram os médicos, cirurgiões, artistas e pintores; começaram movimentos conjuntos para levantar o véu opaco que cobria os músculos e as vísceras. Entre os séculos 17 e 18, só na França, foram fundadas mais de vinte escolas médico‑anatômicas apoiadas por uma centena de confrarias de cirurgiões.
A harmonia dos limites interiores do corpo desvendado encantou todos e fez vibrar também a caneta dos poetas e os pincéis dos artistas. A sensibilidade de Leonardo da Vinci (1452‑1519) buscou a profundidade da forma e produziu inúmeros desenhos dos ossos, das artérias e veias com uma perfeição próxima do eterno.
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Outros artistas, contagiados pela importância do tema, conseguiram transpor para a tela o instante em que o saber é a emoção. Foi o caso de Rembrandt (1606‑1669) ao pintar a Lição de Anatomia do Dr.Tulp. O quadro que deu vida à atitude majestosa do cirurgião e aos semblantes dos alunos, inflados de fascínio, é uma prova inquestionável do quanto o desvendar renascentista do corpo encantou os homens.
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Estudo de anatomia feminina, por Leonardo da Vinci (1452-1519).
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