A COISA SAGRADA: O CORPO DA MEDICINA POPULAR

 

 Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

     “Por nove dias, as setas do deus dizimaram o exército… Filho de Atreu, quero crer que nos cumpre voltar para casa sem termos nada alcançado, no caso de à morte escaparmos, pois os Aqui­vos, além das batalhas, consome‑os a peste. Sus! consultemos, sem mora, qualquer sacerdote ou profeta, ou quem de sonhos entenda ‑ que os sonhos de Zeus se originam ‑ para dizer‑nos a causa de estar Febo Apolo indignado: se por não termos cumprido algum voto ou, talvez, heca­tombes, ou se lhe apraz, porventura, de nós receber o perfume de pingues cabras e ovelhas, a fim de livrar‑nos da peste.” Homero (Ilíada, I, 53).

     A análise das heteropráxis (práticas marginais ou paralelas nas instituições consagradas pela ordem política) ajuda entender o conflito de competência entre a medicina e a religião que se manifesta nas relações sociais há milhares de anos.

     Esse conjunto complexo nos envia, a cada momento, à coisa sagrada fazendo parte de uma religião popular desvinculada da estrutura hierárquica e transformada na religião do corpo.

     Sob essa perspectiva, se torna aceitável justificar como é possível que os curadores, cartomantes, pais e mães de santo, gurus, kardecistas, adivinhos, padres, pastores, magnetizadores, feiticeiros e benzedores, ligados às crenças e ideias religiosas, nos quatro cantos do mundo, com práticas essencialmente semelhantes – a cura mágica de doença e infortúnios – portando representando atores análogos, com nomes ajustados as respectivas culturas, atuem desde os primeiros registros, se compreendam como curadores competentes e nunca cessaram de receber os consulentes. Todos, sem exceção em claríssimo conflito de competência com o médico, mesmo com incontáveis dúvidas, o único dos curadores que mantém processos teóricos para compreender o escondido atrás da pele.

     Por essa razão, esse repensar deve suscitar contínuo interesse da Medicina. Aqui não pode existir nenhum compromisso cartesiano em torno do certo e do errado. Em muitas situações, as práticas médicas também estão inseridas na credulidade espontânea, talvez na mais pura manifestação. O processo reprodutor desse fenômeno social passa necessariamente pela crença, pessoal ou coletiva, no sagrado poder de curar. Deste modo, a coisa sagrada é antes de tudo aquilo que cura.

            A presença da coisa sagrada nas práticas dos curadores, como uma religião do corpo, transcendeu no tempo e chegou a nós vivifi­cada tão intensamente que fica impossível saber onde terminam os limites. Esse fato se passa tão naturalmente e é compreendido com tanta certeza que não existem questionamentos da his­toricidade.

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