A FOME, A MEDICINA DOS RICOS E A MEDICINA DOS POBRES

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

Há muito tempo existe o reconhecimento das diferenças entre a Medicina dos ricos e a Medicina dos pobres e, entre as duas, a fome como marco divisório. Onde há fome, seja a qualitativas ou a quantitativa, predomina a ausência ou a pouca escolaridade, as doenças infecciosas mais frequentes, maior violência e a vida mais curta. Na mesma esteira, tem sido assinalado que o tratamento médico dispensado ao rico é sempre melhor daquele recebido pelo pobre.

Algumas semanas atrás, ouvimos o Dr. Antonio de Pádua, Conselheiro do CRM-AM, explicar que se comparados aos ricos, os pobres gastam muito mais dinheiro para iniciar o tratamento ambulatorial ou hospitalar. Proporcionalmente ao salário do rico, para comprar os remédios prescritos em uma receita, o doente pobre gasta mais da metade do ganho mensal; se hospitalizado, desfalca a renda familiar. Essa conclusão impactante está contida na “lei da inversão dos cuidados de saúde”, de Julian Tudor Hart, publicada na prestigiada revista The Lancet, em fevereiro de 1971.

A questão não é nova! De modo contundente e jocoso Platão, em duas referências, (Leis, 857 c-d e Leis, 720 c-d), denunciou a diferença entre os atendimentos médicos entre ricos e pobres: enquan­to para os doentes ricos, os médicos dispunham de tempo e gentileza para explicar, vagarosamente, o tipo de doença e as prescrições; para os pobres, as consultas eram rápidas, sem qualquer esclarecimento.

É possível teorizar que o marco divisório entre a Medicina dos pobres e a Medicina dos ricos seja a fome! Como nos tempos de Platão, os famintos de comida são os mesmos que estão longe da justiça social; também sem escolaridade, penalizados. A fome permanece como a mais trágica fábrica dos deficientes físicos e mentais, das violências urbanas e injustiças sociais.

No Brasil, mesmo com os esforços institucionais, despontando entre as primeiras economias do mundo, em muitas áreas do território, tanto nos centros urbanos quanto nos interiores, as crianças têm expectativa de vida semelhante às da Etiópia e Uganda.

Essa triste realidade é conhecida dos médicos e dos estudantes de Medicina. No cotidiano convivem com as doenças da fome e sabem que a miséria retratada na face disforme da criança faminta não tem solução nos medica­mentos. Na maioria das ve­zes, os pequenos doentes conseguem sair vivos da diarreia amebiana para retornarem, poucos meses depois, com pneumonia mortal.

A fome que distancia a medicina dos ricos e a medicina dos pobres, no Brasil, será atenuada na mesma proporção da fiscalização do dinheiro público e das decisões políticas capazes de aumentar ainda mais o acesso ao alimento de boa qualidade, à educação, moradia, águia potável e esgoto sanitário.

Nas últimas semanas, a mídia nacional noticiou o médico que faltou ao plantão no hospital público no Rio de Janeiro. Como consequência, uma criança pobre, que brincava na porta da casa, vítima de bala  perdida, na periferia urbana, em coma, esperou oito horas pela cirurgia, seguida da morte três dias após. Não importa se os ferimentos fossem graves para determinar o óbito com ou sem a cirurgia!  A vítima da estúpida agressão, retrato das áreas urbanas onde a fome predomina, deveria ter sido submetida a cirurgia no menor tempo possível. As ausências não justificadas dos profissionais de saúde, nos hospitais e ambulatórios públicos e privados, causando ou não prejuízos à saúde dos doentes, obrigatoriamente, precisam ser apuradas ética e administrativamente. Não há dúvida desse fato!

Também é importante assinalar que a esmagadora maioria dos médicos, no Brasil, cumprem árduas jornadas de trabalho com ética e competência, nos hospitais e ambulatórios públicos e privados, executando diariamente dezenas de milhares de consultas e cirurgias (os dados estão acessíveis no SUS), possibilitando a reconstrução da saúde de ricos e pobres.

Os médicos como agentes sociais, não são responsáveis pela fome que mantém a distancia entre a medicina dos ricos da medicina dos pobres, referidas desde os tempos platônicos. Por outro lado, esse pressuposto, sob nenhuma hipótese, desobriga os médicos de manterem a qualquer custo a essência da medicina: a generosidade, o mais importante instrumento capaz de aproximar a medicina dos ricos da medicina dos pobres.

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