DESCONSTRUINDO RITOS DE CURAS

O corte nos saberes separando o antes e o depois, da Medicina como paidéia, ligando os diagnósticos e as doenças às ideias laicas, afastando dos deuses e deusas, se destaca no livro “Das Doenças Sagradas”, de autor desconhecido, do século 4 a.C.: ?Quanto à doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras?.
Pela primeira vez, uma doença foi explicitamente assentada no domínio da tékhne, fora do domínio dos deuses e deusas curadoras. Não é demais repetir que também nessa época, na ilha de Cós, ocorreu o ápice da medicina grega. O genial Hipócrates, o principal representante da Escola de Medicina de Cós, foi reconhecido como o marco nos saberes médicos por Platão (Protágoras 313b-c e Fedro 270c) e, posteriormente, por Aristóteles (La Politique. Paris. J. Vrin. 1989. p. 484).
Os integrantes da Escola de Cós construíram o maior legado da Medicina como paidéia: a teoria dos Quatro Humores, aqui considerada como primeiro corte epistemológico da Medicina. A teoria dos Quatro Humores, atribuída a Políbio, genro de Hipócrates, assenta as doenças e os tratamentos no mundo laico das ideias: ?O corpo humano contem sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza?.
A Medicina como paidéia saltou do domínio casual e ametódico para o método construído em torno da busca da etiologia nos desequilíbrios dos humores. O diagnóstico acompanhava o prognóstico e a terapêutica para identificar o excesso ou da falta do humor desequilibrado. Como consequência, os tratamentos se voltaram para excretar as sobras por meio de vomitórios, sudoreses, diureses, diarréias e sangrias. O prognóstico se materializava na boa ou na ausência de resposta à terapêutica.
O médico era chamado para recompor a saúde utilizando saberes como instrumento de leitura da natureza, como a justa medida da saúde. Hipócrates e os médicos da Escola de Cós, na obra Da Medicina Antiga, seguiram esse pressuposto ao afirmarem que o médico não pode saber de Medicina nem tratar os seus doentes sem conhecer a natureza do homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d?Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: ?… os argumentos deles apontam para a Filosofia tal como a de Empédocles e de outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído?.
A concepção teórica de saúde dos gregos também envolveu a harmonia. Sendo de natureza harmônica em si mesma, isto é, preenchendo na medida e simetria exatas as vicissitudes individuais, a saúde deveria ser procurada neste contexto da compreensão do normal. Sob essa mesma perspectiva, Platão (Fédon, 93e; Leis 773a; Górgias 504c) entendeu a saúde como a ordem do corpo e Aristóteles (Aristote. Ética a Nicômaco. X 1180b) associou o multiplicidade do comportamento moral às múltiplas dietas prescritas pelos médicos para as febres, mas não para todas as febres.
Platão (República 407b-c-d-e) retoma a Medicina como téhkne ao distinguir as diferenças entre as práticas Medicinais entre pobres e ricos. O filósofo criticou o modo como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres (Leis 720a-b-c-d-e).
Muito atual e atrelado às queixas dos doentes acerca de alguns médicos que não ouvem os doentes, praticando consultas de poucos minutos, Platão (Banquete, 186-187) reconhece como insofismável a obrigação do médico em esclarecer o doente de todos os aspectos da enfermidade, para que o tratamento seja eficaz.
Em certas circunstâncias, a crítica de Platão à má prática médica, exclusivamente ligada aos doentes pobres, continua válida na atualidade.

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