SÍFILIS E AIDS – A DOENÇA NO LUGAR DO PECADO

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Durante milhares de anos os homens utilizaram a falsa relação doença-pecado para intervir de modo grosseiro no controle social.

Existem registros na história da medicina de inúmeros fatos que comprovam esta afirmação.

Até chegar aos subterfúgios do atual discurso controlador utilizado pela igreja com o apoio do Estado, a atitude do homem não mudou muito nas últimas centenaas de anos, quando enfrenta o medo coletivo da morte.

A insegurança é muito bem instrumentalizada  por algumas categorias sociais interessadas em tirar, cada uma a seu modo, vantagens políticas e lucros financeiros.

É possível achar semelhança entre os acontecimentos que cercaram o aparecimento da sífilis e a AIDS dos nossos dias.

Hoje a sífilis não representa mais nenhum perigi para a sobrevivência do homem. O diagnóstico pode ser realizado precocemente em qualquer laboratório médico e o tratamento se efetiva com algumas injeções de penicilina.

Porém, nem sempre foi assim. Essa doença jé representou um grande estigma, que significava a certeza da incapacidade física, da loucura e morte.

Não se dispõe, até o momento, de qualquer referência da existência da sífilis antes do século XV.

Foi o médico Jerônimo Frascastoro (1483-1553), nascido em Verona, na Itália, quem escreveu , em 1521, a obra que imortalizou ” Syphilis Sive Morbus Gallicus”, onde apareceu, pela primeira vez, a descrição da patologia com a sua atual denominação, que se universalizou rapidamente nos anos seguintes.

É indispensável a revisão de alguns aspectos que caracterizaram o desenvolvimento da cultura na Europa dos séculos XV e XVI, para que se compreenda a obra do genial médico veronês.

O franco desmoronamento da ordem feudal, as lutas intestinas da Igreja, a reforma, o esboço de práticas comerciais  nunca antes utilizadas e a explosão de conhecimento que caracterizou o Renascimento italiano serviram de base para a concretização da obra de Fracastoro.

Ele sofreu influência das contradições geradas pela nova visão do mundo e da ideologia religiosa da feudalidade. Torna-se, também nítido no livro do médico veronês a busca na mitologia grega ( A medicina e a mitologia grega, JC, 23.3.87) de algumas esplicações para o desconhecimento das relações do binômio saúde \ doença.

E desta fase do processo de desenvolvimento do homem que apareceu o embrião do entendimento racional da natureza e das relações sociais. A ousadia dos pensadores e eruditos, Bruno e Galileu, francamentte hostis aos dogmas cristãos, desafiava toda a estrutura de sustentação da Igreja.

Foi nessa formidável combustão na busca da verdade que Jerônimo Fracastoro na sua genialidade intuitiva questionou a toda poderosa Teoria dos Quatro Humores ( A medicina e a filosofia grega, JC, 01.3.87) para explicar o aparecimento das doenças.

O livro ”Syphilis Sive Morbus Gallicus” foi escrito em versos no puro estilo Virgílio, em três livros. O poema começa estabelecendo o caráter epidêmico da sífilisÇ

” Vi vários casos de uma semente má desconhecida

   Traziam exposta já de algunm tempo

   Por toda Europa, parte da Ásia e da Líbia qual tempestade

 

   Irrompeu no Lácio, por causa da triste guerra dos gauleses

   e recebeu o nome daquela gente”

Nos versos 76-80 e 113-115 do livro I, com toda a sua genialidade, Fracastroro sucumbiu definitivamente as pressões eclesiásticas e associou claramente a sífilis com a sexualidadeÇ

” Quando nas pastagens ao  lar livro longamente: e então

   se firmaram os vícios

                Oh! tu que esperas a liberdade pelo trabalho

   Pouco te opões ao cuidado que a todos domina

 Princípios: com esforço de memória guarda estes preceitos

Embora pouco os prazeres do amor: molestem face toda a vida”

O personagem central do livro é um pastor devotado e amando tanto o seu rei que acabou por divinizá-lo. Como castigo sofreu a fúria dos deuses, manifestada sob a forma de uma doença, até então desconhecida, que Fracastoro denominoou syphilis.

Existem várias tentativas para explicar a origem dessa palavra. A mais conhecida é baseada na semelhança etmológica dos personagens da obra do médico veronês e os de Ovídio, mais especificamente o lendário sipylus descrito na Metamorfose. A outra é a possível origem da palavra pelo prefixo sys = amor, que significariam no seu conjunto a idéia do amor sujo.

Em decorrência do completo desconhecimento que envolvia a doença naquela época, ela era conhecida por diversos nomes : mal de Nápoles, mal alemão, mal dos cristãos, mal dos judeus e outros. É evidente que cada população tratava de atribuir a outra a responsabilidade do problema.

Em oposição solitária às primitivas idéias da inflência telúrica na saúde e na doença, Fracastoro esquematizou o primeiro conceito  de ” contágio por animais tão pequenos que eram invisíveis ao olho humano”. Este fato representou um formidável avanço no entendimento da patologia humana.

Ele descreveu os efeitos do guaiaco ou pau-santo( família das Zigofiláceas) usado pelos Índios da América recém conquistada e do mercúrio no tratamento da sífilis.

Ainda sob forte influência da cultura grega, Fracastoro atribuiu o uso do guaiaco como remédio a Asclépio, o deus grego da medicina. Em alguns versos do seu poema ele reforçou esta primitiva relação mítica do homem com o vegetal na busca da saúde (Relações médico-míticas, JC, 18.1.87).

O maisprovável foi que a introduçãodo Pau Santo na Europa tenha sido feita pelo médico de Barcelona, Ruy Dias de La Isla, que acompanhou Colombo, em 1493, na sua segunda viagem á América. este médico foi o responsável pela crença que perdurou até o final do século passado de que a  sífilis tivera a sua origem na América.

As suas observaç~es foram utilizadas pelo historiador Oviedo (Gonzalo Fernandez de Oviedo y Valdez) para disseminar essa falsa certeza.

Esse conjunto de erros chegou a confundir o Frei Bartolomeu de las casas, que na sua ”História Geral das Índias ” afirmou que a sífilis  já existia  na América pré colombiana.

Comoa totalidade das informações de Fracastoro não poderiam ser comprovadas naquela época e  feriam a concepção de doença-pecado da Igreja, ele sofreu a amargura solitária do pioneirismo consciente. Morreu só e repudiado no interior de Verona.

A partir do século XVI a sífilis ficou conhecida como a doença no lugar do pecado e a Igreja, uma vez mais, conseguiu intererir no controle social.

A genialidade de Jerônimo Fracastoro ainda teria  que esperar até 1905, quando foi identificado o Treponema palidum, o protozoário causador da sífilis.

 

Com ou sem o pecado da doença foi controlada no seu aspecto médico pela penicilina a partir de 1929. Os remédios divinos foram substituídos pelo composto resultante da pesquisa racional.

Foram necessa´rios quatro séculos para que se compreendesse que a sífilis não era uma doença moral.

É provável que não seja necessário tanto tempo para que todos entendam que a AIDS também não é consequência da violação das regras sociais estabelecidas e para que desapareçam das relações sociais  afirmações como a do Cardeal-Arcebispo  do Rio de Janeiro, D. Eugênio Sales, publicadano jornal do Brasil de 3.1.87: ” A AIDS é consequência da degenerescência moral, inversão sexual, troca de perceiros e uma interminável lista de atos condenados pela legislação divina. É exatamente no desrespeito à moral católica que vamos encontrar o maior foco da propagação da AIDS. Entre as sombras provocadas pelo pecado, vem o brilhar de grandeza e a atualidade dos ensinamentos de Cristo”.

Do mesmo modo que todas as doenças que o homem já enfrentou na sua luta pela sobrevivência, a sífilis e a AIDS, tem o seu componente social..

Porém, este fato não justifica, sob qualquer pretexto, que a doença seja utilizada como instrumento para o controle social.

 

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AS EPIDEMIAS – DA PESTE A AIDS – O MEDO COLETIVO DA MORTE I

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

”Subtamente ela caiu sobre a cidade de Atenas, atacando primeiro os habitantes de Pireu, de tal forma que a população local chegou a acusar os poloponésios de haveren posto veneno em suas cisternas. Depois atingiu também a cidade alta e a partir daí a mortalidade se tornou muito maior. Médicos e leigos, cada um de acordo com sua opinião pessoal, todos falavam sobre a sua origem provável e apontavam causas que, segundo pensavam, teriam podido produzir um desvio tão grande nas condições normais da vida(…)

TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 2. ed. Brasília, Ed. UNB. 1986, p. 102.

Esta impressionante descrição de Tucídides da epidemia que assolou a cidade de Atenas, entre os anos 430 e 427 a.C., na Grécia Antiga, constitui o primeiro relato das realções do homem com a ameaça da sobrevivência coletiva por doença de causa desconhecida.

Até hoje, 2414 anos depois o comportamento do homem guarda fortes vestígios da sua herança social das grandes epidemias.

Em diferentes épocas, nos últimos milênios, as epidemias apareceram, espontânea ou propositalmente, e deixaram nos seus rastros a desolação, a morte e o medo coletivo.

Durante longo tempo as epidemias foram agrupadas em torno da palavra Peste. Encontram-se numerosos registros históricos a partir do II milênio a.C., entre  os egípcios, os hititas e os chineses da ocorrência de diferentes epidemias, algumas delas relatadas com muita precisão, possibilitando a identificação da doença .

Não se tem dúvida que o aparecimento das pestes foram associadas, possivelmente, pelos médicos-sacerdotes, com vontade divina, como forma de aumentar o poder do controle social.

No Antigo Testamento encontramos numerosas referências das epidemias sob diferentes designações: calamidade, fome, dilúvio, fogo, doenças e outras. Todas simbolizando a mortalidade de um número grande de pessoas em curto espaço de tempo vitimado pela mesma causa.

A partir dos últimos livros do judaísmo (Sb 10-19; DI – 9,24-27), passando pelos Profetas (Ez 14;21) e Is 24), chega até pragas do Egito (Ex- 7-10).

Em todas estas passagens bíblicas o sentido da peste é claro: representa o castigo de Deus aos homens impuros e a proteção aos eleitos Dele.

O homem sempre fez, mesmo entorpecido pela interpretação mítico-religiosa, a associação do aparecimento das epidemias com alguns insetos e roedores, como a mosca, o gafanhoto, o mosquito e o rato. Milhares de anos antes da demonstração  racional da ligação destes animais com a cadeis de propagação das epidemias, foram registrados inúmeros depopimentos da importância deles no aparecimento das doenças epidêmicas.

Na realidade, a ocorrência das epidemias sempre acompanhou o homem na sua luta pela sobrevivência e de conquista dos novos espaços.

Na ata Idade Média , a ocorrência da peste negra foi descrita  com absoluta precisão por Gregório de Tours no século IV, apesar da sua interpretação religiosa da doença com os desígnos de Deus. Esta epidemia varreu a Europa até o fim do século VIII, em rítmo cíclico de agravamento, e atenuação, ocasionando a desorganização social e econômica de dezenas de cidades.

Foi a epidemia do século XIV, entre 1348 e 1351, uma das que mais marcaram a humanidade pelo medo da doença e da morte coletiva.

Essa peste negra começou na Ásia Central e se propagou pela rota das caravanas no norte do mar Cáspio. Em fins de 1347 chegou à Constantinopla e daí em toda a Europa.

 

É difícil imaginar hoje a extensão da mortalidade de homens e animais ocorrida na Europa em consequência da Peste Negra nestes três anos. O testemunho de Simon de Cevino é eloquente: ”O número de pessoas enterradas foi o maior que o número de vivos ; as cidades  estão despovoadas, milhares de casas estão fechadas a chave, milhares têm as portas abertas e desabitadas; estão repletas de podridão”.

Acredita-se que nesse espaço de tempo , entre 1348 e 1351 a Europa perdeu entre um terço e a metade dos seus habitantes vitimados pela peste negra.

Nessa fase do processo de desenvolvimento  do homem europeu o cristianismo já tinha fixado  a sua base doutrinária e contribuiu decididamente para a formação da idéia de que o aparecimento da peste estava associada com a vontade divina para castigar os pecados dos homens.

O mais impressionante deles foi a suposição de que a AIDS teria sido produzida em um laboratório do Exército americano e no Centro de Pesquisa de Guerra Biológica em Ford Detrick Maryland. Em consequência da quebra de segurança, foi disseminado.

Na realidade, a busca dos culpados tem a mesma finalidade da que motivou, em 1630, a prisão e a morte sob tortura do barbeiro Mora de Milão. Durante o processo foi acusado de possuir um unguento misterioso. A sua casa foi derrubada e em seu lugar foi erguida  a coluna da infância, para assinalar às relações futuras o terrível crime do barbeiro de Milão.

Este trágici acontecimento foi registrado na literatura por Manzone (1785-1873) no seu livro Os Noivos, através de um apêntice A história da coluna infame.

Hoje, sabe-se, que o vírus da AIDS não é único. É muito provável que existam dezenas de variedades mutantes. Em novembro do ano passado, um grupo de pesquisadores  declarou a descoberta da quarta variante do vírus , denominada HTLV-4, que apesar de ter estrutura de DNA semelhante ao HTLV-2, não tem o mesmo potencial de agressividade biológica no homem.

Os últimos estudos epidemiológicos publicados mostram que a Africa negra está severamente contaminada pela AIDS. A proporção atinge a inquietante cifra de 25% do total de pessoas independente do sexo, idade ou hábitos sexuais. de todos os países, o Zaire é atualmente o mais atingido. Para o povo deste país a AIDS é uma imundisse trazida pelos brancos.

Hoje, nos Estados Unidos jé foram diagnosticados 274.000 casos de AIDS e os órgãos de Controle da Saúde Pública calculam que até 1990, morrerão 179.000 americanos em consequencia da doença. A partir desta data a AIDS matará por ano mais que a guerra do Vietnã, na qual morreram 58.000 americanso.

Na África esses números podem ser multiplicados por quinze ou mesmo por  vinte e constituirá mais uma tragédia para sobrevivência humana negra no continente africano.

O Brasil, de deter cifras records de níveis de subdesenvolvimento social,  já ocupa o quarto lugar em números de casos de AIDS já diagnosticados, figurando abaixo somente dos Estados Unidos, França e Canadá.

A igraja católica através de seus membros ilustres já assossiaram a AIDS com a desgenerescência moral, inversão sexual, a troca de parceiros e uma interminável lista de atos condenados pela legislação divina, que são os responsáveis pela rápida propagação do vírus e conclui : É Exatamente no desrespeito à moral católica que vamos encontrar o maior foco de propagação de AIDS entre as sombras, provocadas pelo pecado, vemos o brilhar da grandeza e atualidade dos ensinamentos de Cristo. ( Dom Eugênio de Araújo Sales, cardeal – arcebispo do Rio de Janeiro, JB, 3.1.87).

O que era exclusivo de um pequeno grupo de risco limitado aos homosexuais , hemofílico e usuários de drogas injetáveis, agora existe a certeza que ela pode ocorrer em qualquer pessoa, mesmo que não apresenta dentro da moral Ocidental nenhum desvio do comportamento sexual e social.

 

Em relatório distribuído pela Organização Mundial da Saúde, está clara a recomendação: ” se deve falar da doença a todas as crianças qeu já tem suficiente capacidade de entendimento e que todas as pessoas tenham o risco de serem contaminadas mais rapidamente devem se envolver na campanha de esclarecimento. A AIDS não é mais a preocupação de apenas um segmento da sociedade. É uma preocupação de todos nós”.

Apesar dos vultosos recursos destinados na busca do tratamento eficaz, a medician atual não tem muito a oferecer aos pacientes com AIDS.

Ao contrário das doenças transmitidas por bactérias, onde os antibióticos são muito úteis na maioria dos casos, no caso das viroses, no caso como a AIDS os recursos são absolutamente ineficazes. Foram desenvolvidas nas últimas décadas algumas substâncias  que inibem o crescimento dos vírus como HPA 23 (Tungsto-Antimoniato de sódio), o Suramin, o Ribavarin, o Interferon Alta e a Azidotimidina (AZT) do ponto de vista prático eles são tão úteis quanto foram os misturados de osso de crânio com pó de ouro usado no tratamente da Peste Negra do século XIV.

Apesar dos progressos tecnológicos que permitiram o vírus causador da AIDS dois anos depois da identificação clínica do primeiro doente, ao contrário da Peste Negra, cuja bactéria só foi identificada no século XIX, 1600 anos depois do primeiro registro histórico que nos chegou, os envolvimentos emocionais não são muito diferentes dos relatos de Tucídides e os contidos nas crônicas medievais. Os conflitos, amores , ambições, mágoas e esperanças são muito semelhante.

Já estamos vivendo a realidade dos relatórios de prospecção da epidemia para o ano 2000. O Ministério  da Saúde dos Estados Unidas afirma que morreram 100 milhões de pessoas até o Ano 2000. É bom lembrar que para a consolidação para este quadro faltam apenas 13 anos e que a população é em torno de 130 milhões de pessoas.

Com todo esse Panorama desolador, onde até hoje não tem qualquer indício de tratamento eficaz, a Igreja católica criticou a companhia iniciada em Minas Gerais pela linguagem clara da abordagem dos hábitos sexuais. É impressionante como, séculos depois da Peste Negra, o clero continua a insistir no castigo divino A AIDS NÃO É UM PROBLEMA MORAL É VIRÓTICA.

É muito importante que mesmo sabendo da atual seriedade da disseminação geométrica da AIDS não esqueçamos que no Brasil morrem 500 mil crianças por ano de doenças infecciosas e parasitárias, há 70 mil casos de Sarampo, 2000 de Coqueluche e Tétano, 3000 de Difiteria. Os chagásicos são cinco milhões e alcançam mais de 500 mil novos casos de Malária por ano. Todos esses números, mais assustadores que os da AIDS, por representarem a situação atual náo causam comoção coletiva. Chegam a passar silenciosamente pela consciencia pública.

Não é difícil pensar que aliado a real gravidade para a saúde pública que a AIDS representa, já exista interesse políticos – econômicos inconfessáveis começando a atuar nos mecanismos coletivos  de controle social. Infelizmente, não seria a primeira vez.

 

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