ANATOMIA HUMANA: O DESVENDAR DO CORPO
Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
A história mostra com fartos registros que o estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou dificuldades nas estruturas de poder das crenças e idéias religiosas, notadamente, no monoteísmo. A justificativa da resistência esteve contida no dogma do homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus.
JUDAÍSMO
Os teóricos das crenças religiosas tiveram que contornar dois empecilhos, aparentemente insolúveis, refletidos na realidade: a forte tradição politeísta anterior e a diversidade humana. Foi precisamente na fantástica superação desses dois problemas que a narrativa da criação se transformou no ponto culminante da epopéia teológica.
Com o pressuposto do indivíduo observável representar a cópia fiel de outro ser (divino, invisível e perfeito) nada justificaria a abordagem do corpo. O naturalmente desconhecido fazia parte do milagre criador.
Por essa razão os médicos judeus, alguns também rabinos, só estudaram os cadáveres insepultos dos heréticos e condenados, sem qualquer significado para a coesão social do grupo (Talmud, Bekhoroth 45a. = Um dia os discípulos de Rabin Ismael dissecaram o corpo de uma prostituta que o governante tinha condenado à figueira…).
CRISTIANISMO
O cristianismo introduziu algumas mudanças importantes na estrutura do espaço sagrado. Ao contrário dos israelitas, acrescentou certa oposição entre o físico e o espiritual (Mt 10,28). O ser humano, agora plenamente concebido como dual, isto é, corpo e espírito, deveria ser o instrumento para servir a Deus ( 2Cor 5,10 ).
Todavia, o Novo Testamento manteve do AT a mesma sentido mítico para o sangue ( Mt 16,17 e 1Cor 15,50 ). Igualmente como o sangue dos animais sacrificados por Moisés inaugurou a Antiga Aliança entre Deus e o povo eleito, a Nova e Eterna Aliança foi selada por Jesus com o seu próprio sangue (1Cor 11,25 = Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei‑o em memória de mim).
ISLAMISNO
A palavra correspondente de anatomia em árabe – ilm al‑tasrib – é precedida pela raiz saraha que significa literalmente trinchar, cortar, separar.
Como o islamismo entendeu a criação dependente e seqüenciada (Sura 23,13‑14 = Depois, transformamos o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e revestimos o osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o melhor dos criadores), a inevitável intervenção do exame, dilacerando a carne, foi seguidamente impedido pela convicção de que a integridade do corpo era indispensável à ressurreição.
CORPO DESVENDADO
Com a decomposição da ordem feudal, houve a sedução coletiva para renascer a cultura grega. O desejo de conhecer o que estava encoberto sob a pele dominou a interdição, já irremediavelmente enfraquecida pela corroída dependência Igreja‑Estado.
Os médicos, cirurgiões, artistas e pintores começaram um movimento conjunto para levantar o véu opaco que cobria os músculos e as vísceras. Entre os séculos XVII e XVIII, só na França, foram fundadas mais de vinte escolas médico‑anatômicas apoiadas por uma centena de confrarias de cirurgiões.
A harmonia dos limites interiores do corpo desvendado encantou todos e fez vibrar também a caneta dos poetas e os pincéis dos artistas. A sensibilidade de Leonardo da Vinci ( 1452‑1519) buscou a profundidade da forma e produziu inúmeros desenhos dos ossos, das artérias e veias com a perfeição.
Outros artistas, contagiados pela importância do tema, conseguiram transpor para a tela o instante em que o saber é a emoção. Foi o caso de Rembrandt (1606‑1669) ao pintar a Lição de Anatomia do Dr.Tulp. O quadro que deu vida à atitude majestosa do cirurgião e aos semblantes dos alunos, inflados de fascínio, é uma prova inquestionável do quanto o desvendar renascentista do corpo encantou os homens.