RELAÇÕES MÉDICO-MÍTICAS (completo)

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

As relações médico-míticas transcenderam no tempo e chegaram  a nós vivificadas tão intensamente que fica quase impossível dissociá-las.

A própria data de comemoração do dia do médico,  o 18 de outubro, corresponde na mitologia grega o dia no qual o deus médico Asclépio, filho de Apolo, era celebrado na Grécia Antiga, há 2.300 anos.

No intervalo de tempo entre os dois pontos da consciência do tempo – o início  e o fim da vida – o homem convive com a certeza da doença e da morte. Nas poucas dezenas de anos que o homem consegue viver, gasta grande parte dormindo e na procura incessante do conforto, da saúde e da justificativa  mais coerente da imaginável vida após a morte.

Depois  de estabelecer ao longo de milhares de anos as relações dor e prazer, saúde e doença e vida e morte, o homem desenvolveu e acumulou historicamente conhecimentos objetivando vencer a dor, aumentar o prazer e prolongar o tempo de vida.

A grandeza biológica do material genético humano sobre a de todas as outras espécies do planeta se completa com o renascimento após a  morte.

Esta busca da imortalidade é tão antiga quanto os registros paleoantropológicos que   chegaram dos nossos ancestrais. Pode ter sido a responsável pelo aparecimento  da especialização social que deu origem a procura sistematizada do conforto físico e da saúde e também  forneceu as bases teóricas da prática médica como nós a entendemos hoje.

A crença no ser-imortal gerou a dualidade matéria-espírito para transpor a inexorabilidade da putrefação do corpo desmemoriado. O espírito intemporal, como ficção, prolonga até o infinito a vida das pessoas queridas. Para dar sentido coerente ao renascimento, foi idea-lizado uma imagem corpórea – o ser-não-tempo – como o elo entre o visível e o invisível, rejeitando a morte.

Como o pensamento está, sem dúvida alguma, dependente do sociocultural, os homens e as mulheres têm grande dificuldade para articular a linguagem fora do conhecimento patrocinado pela MSG. Deste modo, os seres-não tempo (deuses, duendes, demônios, almas, espíritos), mesmo recheados de variações, são vistos e sentidos com cabeças, braços e pernas. Os seres-não tempo foram formados à semelhança do corpo visível, dotado de comunicação, movimento, pureza e impurezas.

É impossível imaginar a existência do ser-tempo individual fora da natureza, da História  e do social. O homem e a mulher estão há muito, muito tempo, atados ao conjunto gregário, augurando o ideal deslo-cado, pela força da ficção, para o ser-não-tempo. Nunca deixaram de amar e sofrer, de ligar a reprodução sexuada à fertilidade da terra, olhar e admirar o desconhecido, dar nomes à natureza visível, especular o invisível, acumular e reproduzir  saberes.

O cuidado com a saúde pode ter começado em qualquer ponto da escala genealógica e certamente se iniciou na procura do conforto físico. A retirada de espinhos e parasitas da pele em forma individual ou coletivamente com a ajuda de outros membros da comunidade foi a primeira forma de assistência  prestada nos nossos ancestrais. Esta assimilação da conduta social foi fundamental para o desenvolvimento e sobrevivência da espécie.

Os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, com 97 % de semelhança genética, são capazes de se tratarem mutuamente lam-bendo pequenas feridas da pele, retirando parasitas e espinhos que penetram acidentalmente no corpo. Não se trata de simples catação. É indício de verdadeira assistência médica, porque envolve atividade consciente e dirigida a um determinado ponto onde está ocorrendo desconforto físico.

A partir do aparecimento da consciência do tempo no homem, reveladora da sua impotência frente a ocorrência das doenças que levavam à morte, multiplicaram-se as explicações transcendentes, míti-cas e religiosas a aceitação coletiva do  desconhecido. O ponto de convergência deste caminho que moldou o pensamento criativo do homem foi o fantástico número de deuses e outros personagens com poderes de curar e ressuscitar que a história registrou.

Desta forma, sob o ponto de vista histórico é  impossível dissociar  a história da Medicina das relações médico-míticas.

O ponto de convergência que moldou o pensamento do homem  foi o aparecimento da consciência do tempo, reveladora da sua impotência frente a morte inevitável. Em conseqüência, engendrou um fantástico número de deuses e outros personagens com poderes de curar e ressuscitar. Entre os mais famosos, estão:

 

  1. NINID, descendente da trindade divina babilônica ANU, ENLIL e ENKI;

 

  1. CHRISTINA e BUDA, respectivamente a oitava e sétima encar-nação de deus indiano VISCHNU;

 

  1. MITRA, deus redentor da Pérsia;

 

  1. BELENHO, dos celtas;

 

  1. ASCLÉPIO, filho de APOLO, da mitologia grega;

 

  1. JOEl, dos germanos;

 

  1. FO, dos chineses;

 

  1. Personagens deificadas do Velho e do Novo Testamento.

 

Todos esses sem mencionar as pessoas santificadas pela religião cristã, que operaram milagres nos últimos 1900 anos, quase todos envolvendo poderes mágicos, capazes de modificar a relação dor e prazer, vida e morte e saúde e doença.

Essas  figuras humanas e míticas  carregavam com elas uma capa-cidade intrínseca capaz de ressuscitar determinados mortos e a cura de alguns doentes. As doenças escolhidas foram sempre as que determi-navam impacto nas relações sociais. Já foram lepra, a loucura, a sífilis e a tuberculose. No momento, é  a AIDS e os canceres.

Nas intrincadas relações que o homem desenvolveu com essas doenças, sempre as fez porque desconhecia  a etiologia e o tratamento. Logo, foi buscar na transcendência a aceitação para o desconhe-cimento e porque na sua atávica fixação de grandeza biológica é imperativo a compreensão prévia de que tudo que este homem  não pode entender ou resolver, será feito pela personagem divina antro-pomórfica, com poder sobre-humano capaz de resolver todas as aflições da sobrevivência humana.

Como foi possível  aos médicos do passado e como é aceito na atualidade essa relação médico-mítica que envolve comportamentos diferentes no trato do ser-tempo e do ser-não-tempo ?

Foram as buscas dessas respostas, algumas vezes angustiantes na sua totalidade, passando necessariamente pela história do próprio homem ligada na temporalidade da existência humana os responsáveis pelos pequenos avanços que a humanidade fez na busca da razão da vida com a consciência do tempo.

A dificuldade, quase intransponível, de se alcançar mais rapida-mente as explicações, reside no fato  de que as crenças e as  idéias não são fossilizáveis. Quando a arqueologia escava um túmulo e junto com a paleontologia começa a estudar o esqueleto e os utensílios encontrados, farão importantes conclusões de muitos aspectos relevantes que ajudarão a compreender o grupo social do morto, porém a maior parte dos valores e pensamentos dele continuarão  perdidos em mar de conjecturas. Estas dificuldades são proporcionalmente maiores na medida que recuamos no tempo.

A conquista do fogo  e as consciências do  tempo finito, ligado ao ser-tempo, e do tempo infinito, unido ao ser-não-tempo  assinalaram a separação definitiva dos nossos ancestrais dos seus antecessores.

A mais antiga comprovação da utilização do fogo data de 600.000 anos. O uso racional do fogo aliado com a busca pelo conforto  físico contribuíram decisivamente para o aparecimento e conservação do nosso ancestral menos distante.

A imaginável vida depois da morte tem acompanhado o homem na sua busca para prolongar ao máximo o seu tempo de vida. Possi- velmente esta fantástica busca começou com a idéia religiosa arcaica de que é possível, ao animal, renascer a partir dos ossos.

Neste sentido é conhecida e valorizada a citação  do Antigo Testamento (Ezequiel, 37:1-8 ) :

 

”A mão do Senhor veio sobre mim, e me tirou para fora pelo espírito do Senhor: e ela me tirou no meio de um campo, que estava cheio de ossos. E ela me levou por toda a roda deles. Eram porém muitos em grande número os que  se viam sobre a face do campo, e todos sobremaneira secos. Então me disse o Senhor : Filho do homem, acaso julgas tu que esses ossos possam reviver ? E eu lhe respondi: Senhor Deus, tu o sabes. E ele me disse: vatici na acerca destes ossos, e: Ossos secos ouvi a palavra do Senhor. Isto diz o Senhor Deus a etes ossos: Eis aí vou eu a introduzir em vós o espírito e vós vivereis. E porei sobre vós nervos, e farei crescer carnes sobre vós, e sobre vós estenderei pele: e dar-vos-ei o espírito e vós estenderei pele: e dar-vos-ei o espírito e vós vivereis e sabereis que eu sou o Senhor”.

 

Esta preocupação com os ossos e o conhecimento da decomposição do corpo após a morte influenciaram decisivamente no comportamento do homem em relação ao processo do sepultamento ritualizado.

Os documentos arqueológicos mais antigos e confiáveis desse estudo são as ossadas. O início do sepultamento ritualizado data entre 70.000 e 50.000 anos. Em esqueletos e restos de ossos deste período, foram encontradas a ocra vermelha (argila colorida pelo óxido de ferro com várias tonalidades pardacentas), que substituiu o ritual do sangue como símbolo da vida, sugerindo a crença, já naquela época, de que a existência de nova vida após a morte era considerada não só possível , mas alcançável através  de práticas coletivas que envolviam o tipo de sepultamento das pessoas.

Somente a esperança da imortalidade pode justificar a preo-cupação que acompanha o homem desde a sua origem no ritual do sepultamento. Esta suposição pode ser reforçada pela possibilidade do aparecimento dos mortos nos sonhos )nada nos impede de pensar que os nossos ancestrais sonhassem como nós).

Entre os sepultamentos ritualísticos, datando entre 70.000 e 50.000 anos, mais bem estudados, constam:

 

  1. No sítio arqueológico Lemoustier, na França, um esqueleto de adolescente do sexo masculino, girado sobre o seu lado direito como se estivesse dormindo, com o crânio repousando sobre pilha de sílex servindo de travesseiro e tendo ao lado um machado de pedra cuidadosamente esculpido próximo a vários ossos de gado selvagem, sugerindo que foi enterrado com grande quantidade de carne para servir de alimentação na sua nova vida após a morte;

 

  1. Em Teshid Tash, na Ásia Central, a ossada de criança jazia sobre os ossos de uma rena cujos chifres formavam espécie de coroa ao redor da cabeça;

 

  1. Na caverna de Shanider, no monte Zagros, no Iraque, o esqueleto de um homem adulto sobre uma enorme quantidade de pólen fossilizado de flores de diferentes espécies vegetais. A análise deste pólen mostrou tratar-se de plantas Medicinais ainda hoje utilizadas pelos habitantes daquela região para tratamento de diversas doenças. É provável que o homem enterrado tivesse sido o médico-feiticeiro do grupo social e as plantas tivessem sido colocadas no túmulo para que ele continuasse o seu trabalho específico na outra vida após a morte;

 

  1. Na gruta Chapelle-aux-Saints, na França, foi encontrado o esqueleto do homem adulto acompanhado de vários utensílios de sílex com pedaços de ocra vermelha.

 

Não pode haver dúvida que a busca da explicação do sentido da vida e da morte sempre acompanhou o homem. A presença de utensílios, que eram enterrados junto com os nossos antepassados distan-tes, está diretamente relacionada com a crença no renascimento após a morte e não somente isso, mas acompanha a certeza de que o morto continuará a sua principal atividade na nova vida após a morte. A maioria desses corpos foram enterrados voltados para o leste, definindo a intencionalidade de relacionar o renascimento com o curso do sol, símbolo da vida e da interminável renovação da natureza.

Um dos suportes das complexas relações sociais do homem é a capacidade de engendrar explicações fantásticas para o desconhecido como primeiro passo na busca da verdade.

Grande parte das doenças sempre se situaram neste contexto. Até hoje, quando a racionalidade dos conhecimentos acumulados desco-nhece a causa e o tratamento de determinada doença, a responsa-bilidade pelo desconhecimento tende a ser transferida para um perso-nagem divinizado com poder suficiente para dar ao homem todas as explicações e soluções dos problemas que afligem a sua sobrevivência.

No lento processo que envolveu a Medicina com o mito, estava a relação homem-animal com caráter marcadamente transcendente. Somente no Paleolítico superior é que se tem comprovação desta rela-ção. Foram encontrados vários crânios de diversos animais, principal-mente de ursos, em cavernas pré-históricas colocados em lugares de destaque que sugerem tratar-se de altares primitivos.

É possível deduzir que a crença do poder animal, ainda hoje aceita em numerosos grupos sociais, tenha surgido nessa época, quando alguns animais desempenhavam importância fundamental no ritmo da vida do homem. Por esta razão foi que o animal adorado variou de acordo com a situação geográfica da comunidade. Em alguma foi o urso, em outras, o bisão e a rena.

Várias descobertas arqueológica reforçaram a crença de que nossos ancestrais distantes mantiveram algum tipo de adoração mítica pelo  poder animal. A gravura paleolítica de uma mulher grávida, na fase final da gravidez, sob uma rena e as pinturas rupestres dos médicos-feiticeiros de Afvalingskop e de Trois Frères são alguns  exemplos da existência dessa relação homem-animal.

É lícito supor, que no primeiro caso acima, tenha ocorrido alguma forma de dificuldade na resolução natural do parto. A gravura pode ter sido feita memorizar o significado da transferência simbólica da força do animal após a efetivação do parto.

Os médicos-feiticeiros da Ásia Central e da França, do segundo exemplo, estão travestidos de animal em movimento de dança, lembrando sob muitos aspectos, diferentes manifestações médico-míticas ainda existentes em diversas partes do Mundo e mais especifi-camente, o ritual dos bisões elaborado, ainda hoje, por grupos indígenas no norte dos Estados Unidos.

Os estudos arqueológicos a  avançam no sentido de fortalecer a idéia de que o universo mítico-religioso do homem é muito mais antigo do que se acreditava anteriormente.

A evidência da localização dessas gravuras e pinturas rupestres em locais de difícil acesso, são demonstrativos que se tratava de lugar incomum  para o uso habitual. Um dos exemplos mais marcantes é a caverna de Le Tue d’Audoubert, na França. Neste local, foram encontrados dois bisões esculpidos em argila, com quase um metro de comprimento cada, em espécie de altar, cercados por centenas de impressões de pés de adultos e crianças moldados no solo argiloso. mesmo hoje, com toda a facilidade de deslocamento, utilizando balsas infláveis e a luz elétrica, é difícil o acesso a este altar primitivo. Todas essas amostras contribuem para consolidar a suposição de que o universo mítico-religioso do homem paleolítico era dominado pelas relações transcendentes com os animais associadas com o xamanismo.

Já se associa a prática médica desenvolvida na pré-história com os desenhos em raios X da mesma época, que mostram o esqueleto e os órgãos internos do animal. Estes desenhos são encontrados em número expressivo na França, Noruega, Índia, Malásia, Nova Guiné e Austrália. Em associação com estudos arqueológicos comparativos levam a conclusão da enorme possibilidade de que a idéia religiosa predominan-te no paleolítico estava impregnada de xamanismo. E somente o médico-feiticeiro, graças a sua visão sobrenatural, que seria capaz de ver através da pele.

Este raciocínio pode ser facilmente transportado até hoje para explicar historicamente a visão clínica do médico moderno é capaz de chegar ao diagnóstico com um simples olhar, não utilizando qualquer recurso lógico do conhecimento. Esta capacidade é reconhecida e muito valorizada como símbolo de competência entre a população leiga.

A demonstração inquestionável da existência no Paleolítico supe-rior de sistema simbólico baseado nas fases lunares é extremamente importante para a compreensão do todo nas relações históricas do homem com a sua compreensão da saúde-doença e vida-morte. Este sistema de relação do homem com o tempo-espaço forneceu as bases para a compreensão  pelo homem pré-histórico dos processos naturais repetitivos e renováveis como a reprodução do homem e dos vegetais, o  movimento de cheia e vazão das águas, as estações do ano, a morte e o imaginável renascimento.

A partir desse ponto ao aparecimento dos ritos de iniciação e da guarda dos segredos deve ter sido um passo curto.

A dança circular é um dos exemplos da existência de ritos nos grupos sociais paleolíticos. Incontestáveis marcas em solo argiloso foram identificadas em alguns sítios arqueológicos. Estas marcas de pés de adultos e crianças formando círculos bem definidos, ficaram definitiva-mente impressos no chão como testemunhas caladas do universo mítico-religioso dos nossos ancestrais.

Com o início das especializações sociais, isto é, a identificação expontânea no seio do grupo social de afinidades pessoais, é correto o pensamento de que os especialistas do sagrado começaram a aparecer, detentores de conhecimento específico para intervir na explicação do desconhecido.

As comunidades do Neolítico ou as anteriores a ele, por não pos-suírem estratificação social, tinham na busca pela sobrevivência e na explicação dos fenômenos naturais, grande parte da sua atenção. A preocupação pelo conforto físico e em aumentar o tempo da vida deveriam estar entre elas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva.

Nesta fase, quando o homem começou a aumentar o seu con-forto físico e a tentar modificar as relações dos binômios saúde-doença e vida-morte em si próprio ou em outro membro da comunidade, fez médico.

Foi provavelmente, graças ao sonho, que o homem paleolítico reconheceu a existência de um ser-não-tempo independente do corpo, que nas línguas modernas é conhecido como alma, espírito, duplo etéreo, aura, etc.

Como conseqüência dessa crença primitiva, nasceu um dos mais fantásticos objetos de busca da saúde pelo homem os crânios trepa-nados no período Neolítico, há mais de 10.000 anos.

Existem dezenas de crânios que foram abertos cirurgicamente e algumas pessoas que foram submetidas a estas cirurgias sobreviveram  longo tempo, o suficiente para que as bordas do osso cortado se regenerassem parcialmente.

Essa atitude médico do homem neolítico estava impregnada de sentido mítico-religioso, semelhante ao ainda hoje encontrado entre os nativos do arquipélago Bismark, onde essa cirurgia ainda é realizada com o objetivo  de retirar os demônios e os maus espíritos dos doentes que apresentam algum tipo de alternação de comportamento.

Muitos indicativos apontam para admitirmos que na época neolítica, o ato médico era acoplado, com muita determinação, ao mágico-religioso e a cabeça com o seu conteúdo era muito valorizada. Somente assim poderemos explicar o grande número  de crânios  que foram  intencionalmente abertos há milhares de anos.

Na proporção do aperfeiçoamento da linguagem, aumentou a instrumentalização médico-mítica do homem.

Mesmo antes da linguagem articulada, a voz humana era capaz de transmitir não só a informação, ordens e desejos, mas também, criar coletivamente um universo imaginário de relações do homem com ele mesmo e com o meio, fazendo do desconhecimento a pedra angular da formação das suas relações sociais.

As mudanças climáticas ocorridas em torno de  8000 anos a.C., na Europa, proporcionaram  incríveis transformações nas relações sociais do homem. O recuo das geleiras provocou a migração da fauna em dire-ção das regiões setentrionais com substituição das estepes pela floresta, obrigando aos homens adaptarem-se a nova fase.

Os elementos sagrados continuaram a acompanhar o homem na sua trajetória de conquista do espaço, que começou a ser concretizada ao lado dos rios e lagos férteis.

No fundo do lago de Stellmoor, perto de Hamburgo, na Alemanha Ocidental, foi encontrada uma  estaca de pinho com um crânio de rena na sua porção mais alta e um tronco de salgueiro  com mais de três metros de comprimento, grosseiramente esculpido, percebendo-se a cabeça e o pescoço de um personagem humano, ambos datando de oito milênios.

Foram sobretudo os iniciadores da cultura natufiana, que optaram pela vida francamente sedentária, ao contrário dos seus antecessores biológicos que mantiveram, durante milhares de anos, o nomadismo.

Essas transformações sociais ficaram conhecidas como Revolução Agro-pastoril do Neolítico. Sabe-se que ela foi um produto de combi-nações geográficas e climáticas circunstanciais específicas. Porém, um dos fatos mais interessantes foi que diferentes grupos sociais passaram pelo mesmo processo em épocas   e lugares distintos no planeta.

A Medicina, já definida como especialidade social nessa fase do desenvolvimento do homem, sofrera a influência da deificação da natureza e incorporara no seu bojo toda a estruturação  das práticas míticas que envolviam completamente os homens que iniciavam o irreversível processo de sedentarismo das suas relações de produção.

As centenas de milhares de anos que os caçadores-coletores permaneceram em relação direta com a natureza, deixaram traços bem definidos na sua nova adaptação ao meio.

É dispensável reafirmar a importância para o homem do desen-volvimento da agricultura racional. Além de tudo o mais, esta agricultura impôs uma divisão de trabalho que interferiu decisivamente no tipo de doença que o homem passou a ter como uma das conseqüências da modificação dos hábitos sociais.

As relações do homem com o animal que predominaram no uni-verso mítico  mesolítico são modificadas com o aparecimento da agri-cultura dirigida. A ordem religiosa com o mundo animal é substituída pela sociedade mítica entre o homem e o vegetal. O osso e o sangue são substituídos pela terra e pelo esperma.

A antiga dispersão das idéias religiosas é concretizada em espaço definido, a aldeia. Apareceram os primeiros templos fortemente esta-belecidos a partir das idéias religiosas indissociáveis da metalurgia, da urbanização, da realeza e do corpo sacerdotal organizado detentor do conhecimento e capaz de interferir, com a ajuda dos deuses, nas rela-ções saúde-doença e vida-morte.

É provável que tenha sido nesta fase do processo de transfor-mação das idéias do homem, que tenha se dado a consolidação da criatividade religiosa, como secundária ao fenômeno empírico do cultivo da terra. Não pode se afastada a possibilidade de ter frutificada a partir do desenvolvimento da consciência pessoal e coletiva do tempo, iden-tificada no ritmo da vida dos vegetais, como indicador da renovação perene da vida.

O estudo das idéias e crenças religiosas do homem mostra uma quantidade enorme de exemplos em todos os continentes de mito de origem a partir da nova relação do homem com a terra como o existente na ilha do Ceram, na Nova Guiné, aonde do corpo retalhado de uma jovem semi-divina, Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas que oferecem o alimento necessário para as pessoas viverem e a nossa lenda amazônica do guaraná, do vale dos rios Andirá e Maués, na qual o filho da índia Onhiamuacabe é morto e do seus olhos plantados, originou-se do esquerdo o falso guaraná, Uanará-Hopu e do direito o verdadeiro guaraná, Uaraná-Cécé e do corpo enterrado e ressuscitado deu origem ao primeiro maué.

Milhares de anos depois do processo de elaboração dos mitos de origem, surgiram formas sincretizadas, cujo simbolismo é exatamente o mesmo. No Velho Testamento, o pão passou a ser considerado dom de Deus e fonte de todas as forças (SI 104, 14s), um meio de subsistência tão essencial que a falta do pão significa falta de tudo ( Am 4,6 e Gn 28,20).

Após a consolidação da práxis cristã, no Ocidente, o pão con-tinuou a ter o mesmo significado simbólico, como o desejo de comer no Reino (Lc 14,15), relação entre o pão e a palavra de Jesus (Mc 6,30 – 40) e culminando no rito da eucaristia (Jo 6,48 – 52):

 

”Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Aqui está o pão que desceu do céu para que todo o que ele comer, não morra. Eu sou o pão vivo, que desci do céu. se qualquer comer deste pão viverá eternamente: e o pão que eu darei é a minha carne, para ser a vida do mundo”.

 

A significação dos mitos ao renascimento a partir da nova relação do homem com os vegetais é clara, os alimentos são sagrados por derivarem do corpo de uma divindade e devem ser utilizados para a conservação da vida.

A partir da consolidação do aldeamento   se tem comprova-ção da utilização empírica das plantas como agentes intermediários na busca da saúde, provavelmente como fruto das novas relações míticas do homem com a terra.

Com o desenvolvimento e consolidação da Revolução Urbana, os grupos sociais iniciaram a acumulação rápida de conhecimentos , suficientes para desencadear o assentamento definitivo de comu-nidades mais numerosas, iniciando-se nova transformação  social com a formação dos aldeamentos.

Esse aldeamento se deu inicialmente, próximo das fontes de água em caráter permanente e em terras férteis. No chamado Crescente Fér-til, entre os territórios montanhosos de Israel, Jordânia e Síria, compreen-dendo os rios Tigre e Eufrates e se estendendo do mar morto ao Golfo pérsico, apareceram as primeiras aglomerações humanas urbanas conhecidas, datando em torno de 10.000 anos.

É certo que a Medicina se desenvolveu nessas cidades ao lado de práticas míticas, envolvendo ritos que se tornaram coletivos e passaram a ser realizados em épocas de festividades e consagrações.

A circuncisão é um dos exemplos. Ela deve ter sido praticada no Neolítico de modo muito semelhante ao que apareceu na Mesopotâmia e no Egito, 5.000 anos depois.

Foi a interferência do conceito mítico-eligioso – a aliança entre Deus e Abraão (Ge 17,9), o fator histórico responsável pela forma de circuncisão que temos gravada na memória.

 

 ” Disse mais Deus a Abraão: Tu pois guardarás o meu pacto, tu e teus descendentes depois de ti. todos os machos dentre vós serão circuncidados. E vós circundareis a carne do vosso prepúcio, para que esta circuncisão seja o sinal de concerto, que há entre mim e vós”.

 

A utilização de instrumentos específicos com o objetivo de facilitar a comunicação com o transcendente e intervir no curso das doenças foi consolidada definitivamente na prática médica e serviu para reforçar e institucionalizar  o poder médico.

Quando o médico sumério sacrificava um animal e retirava o fígado para estabelecer o diagnóstico a partir da leitura das mensagens divinas contidas na víscera do animal sacrificado e o médico moderno leu para o doente o diagnóstico do ultra-sonografia hepática, o simbolismo é  semelhante. É claro que não está sendo considerado a evolução tecnológica do diagnóstico. Não se pode duvidar é que em ambos os casos a relação médico-paciente foi estabelecida nos mesmos moldes, isto é, na Babilônia e no hospital atual, o médico e o doente estavam absolutamente convencidos da utilidade desses recursos para a saúde do consulente.

Esses fatos passam a ser de importância fundamental para a historiografia da Medicina se levanta as alternativas que o homem já utilizou, como agentes intermediários, entre a sua prática e o objeto dela, na busca incessante do conforto e da saúde.

O uso de plantas alucinógenas pelas populações nativas america-nas do Norte e do Sul, constituem outro exemplo dessa utilização instrumental na prática médica. em todos os grupos estudados, apesar de pequenas diferenças  no ritual, o simbolismo é exatamente o mesmo. As plantas, como dádivas divinas, são utilizadas para facilitar a comu-nicação entre o pajé os deuses, na busca da cura das doenças.

Todas elas Oloiuhqui, Tlitliltzen, Mescal Beans, Teonanacati, Conocybe, Lycoperdon, Pipiltzintzintli, Peito de Moça, Maikoa, Flori-pondio, Toloatzin, Estramonio, tabaco, San Pedro, Paricá, Virola, Coca, Epadu, Ayahuasca e a Jurema, são utilizadas os rituais médico-míticos por centenas de grupos indígenas nas Américas.

Após a colonização predatória e a cristianização forjada a ferro e fogo pelas hordas européias, o uso das drogas alucinógenas continuou, apesar da implacável perseguição do clero, mas sofreu severas transformações que contribuíram para a desestruturação irreversível do universo mítico de milhões de índios. sem o simbolismo da explicação da origem primeira, eles se tornaram presa fácil nas mãos  do colonizador europeu.

O empirismo racional também foi e continua sendo utilizado ao longo de milhares de anos ao lado dos métodos mágicos na busca da saúde. Os mais conhecidos e usados foram as massagens, adminis-trações de ervas medicinais sem o prévio conhecimento de seu primeiro ativo, plantas que provocam o vômito e a diarréia, cataplasmas e lavagens intestinais. O uso destes artifícios está profundamente marcado na memória coletiva de todos os povos, independente da organização social de cada um deles.

As relações médico-míticas existentes na atualidade estão tão vi-vas   que fica praticamente impossível se estabelecer limites no tempo. É como se a memória sócio-genética impulsionasse as ondas retardatárias das primitivas relações do homem com o animal e com a terra.

Somente com a ajuda das relações entre o sagrado e o profano   é possível compreender a   Medicina praticada por milhões de pessoas nos centros de umbanda e candomblé, nos templos kardecistas e  nas igrejas de diferentes grupos religiosos.

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