O PRANTO DO MÉDICO ROMENO E O PÓS AUTORITARISMO

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

No período do  pós‑doutorado,em 1992,eu conheci,na “salle de garde” (o refeitório dos médicos) da Universidade de Paris VII,o romeno Halrian PLAVCZ.Pelo crachá de identificação atado à bata, sabiamos,de imediato,quem éramos e os nossos países de origem.

O diálogo começou em consequência da notícia sobre o Brasil,em primeira página do jornal Le Monde,analisando  a inflação de 50% ao mês.Indagado,expliquei da fartura do imenso solo fértil mal distribuído,da fraqueza do Estado,do tipo e forma de governos,da língua única e dos problemas sócio‑econômicos.

Com desembaraço,ele comentou os entraves da Romênia,após o fim da ditadura da esquerda. Quando a conversa avançou em direção à ruína da ordem maxista,no Leste, lembrei‑me do quanto foi difícil (sob certa forma,continua sendo),no Brasil,nas duas últimas décadas,manter oposição ao marxismo,como projeto político:

─ Durante mais de vinte anos tenho me colocado  contra as propostas revolucionárias marxistas.Na universidade onde leciono,também em Manaus,tenho experimentado dissabores.

Com o semblante demonstrando surpresa,o romeno perguntou:

 

─ O projeto político socialista-marxista é um fracasso declarado desde a insanidade stalinista,na década de cinquenta,quando a polícia-política do Partido Comunista matou mais de 20 milhões de opositores do regime.As invasões da Tchecoslováquia e da Hungria só representaram,na época,uma espécie de retrato anunciado da tragédia. A sua universidade não tomou consciência dessa realidade  há quatro décadas ?

─ Não é tão simples.Os países do Terceiro Mundo situam-se,em muitos casos,nas bordas mais distantes dos movimentos sociais.A crise de credibilidade do socialismo só agudizou‑se depois da queda do muro de Berlim.Ainda estamos vivendo os resíduos finais da propaganda marxista,feita nas décadas de sessenta e setenta,nas escolas,sindicatos e universidades.

─ O que você quer dizer?

─ É simples.Como estratégia para alcançar o poder a esquerda inicou,com a cumplicidade dos políticos corruptos,o processo de assalto  de alguns serviços essenciais,bem ou mal garantidos pelo Estado brasileiro.Na minha área de conhecimento ─ a saúde ─ está bastante clara a estratégia, marcada pelo violento patrulhamento ideológico.

Eu tomei fôlego e escolhendo as palavras do francês,segui:

─ Anos antes do fim dos governos militares,os objetivos já estavam definidos.Quando a Nova República,fraca e instável nas bases políticas, substituiu o último general‑presidente,o processo de mudança estava pronto.

O médico romeno abriu mais os olhos,inquietou-se  na cadeira e indagou:

─ Eu não  compreendendo…

 

─ É simples ─ eu disse ─  na minha leitura a estratégia teve três fases:1a) A desmoralização da antiga estrutura administrativa e funcional do serviço público; 2a)A introdução do conceito de “sociedade organizada”,onde a  “eleição democrática”,mobilizada pela propaganda  nos moldes stalinistas,deveria responder pelo acesso às chefias das escolas,sindicatos, associações, universidades e  dos hospitais e,finalmente;3a)O afastamento,sob a pressão da calúnia e da injúria,dos cientistas e funcionários  não identificados com a ditadura do proletariado.

─ Você está descrevendo o PÓS‑AUTORITARISMO, exatatamente,como foi denunciado na peça teatral “A GRANDE RODA”,escrita pelo atual Presidente da Tchecoslováquia,o escritor VÁCLAV HAVEL.No meu país,os comunistas,na época menos de 1% dos eleitores,liderados pelo louco Hoxna,fizeram algo muito parecido.E na sua universidade,houve resistência?

─ Um segmento importante fez questão de “continuar bem com todos”. Por outro lado,muitos estudantes e professores incomodados com a miséria da porção majoritária do povo,ficaram encantados com a didatura do proletariado. Antes da derrubada do Muro de Berlim,quem tivesse a coragem e a decência de expressar o sentimento anti‑comunista era fotografado como herético e queimado pela calúnia torpe.Muitos que não tiveram suporte para enfrentar a pressão do patrulhamento ideológico reservaram as críticas aos lugares escolhidos.Outros,sem rumo,refletiram no marxismo revolucionário os próprios dramas pessoais.

Durante alguns instantes ele olhou‑me com atenção e,de cabeça baixa,fitando o cigarro aceso nos seus dedos,perguntou:

 

─ Como pode ter havido o encantamento se além do cerco implacável à liberdade pessoal,também existia miséria e fome nos países do Leste marxista?

Lembrei‑me,sem saudades,na viagem realizada ao Leste europeu,no inverno de 1976:

─ Eu sei.Há quinze anos,visitei vários países que funcionavam como modelo a uma parte da esquerda brasileira. Jamais esquecerei o entardecer gelado de domindo,em Sofia,na Bulgária.Na porta da Catedral,fotografei,de longe,dois policiais fiscalizando os papéis de autorização,para os fiéis entrarem no templo cristão.Inclusive,escrevi um artigo,no jornal,em Manaus,retratando a loucura. Relacionei o documento fotográfico aos execráveis “julgamentos éticos”,utilizados pelos comunistas, com o apóio dos oportunistas.O cenário se reproduziu nos países onde eles alcançaram o poder,tenha sido na macro ou na micro‑esfera.As farsas dos julgamenos realizaram‑se à imagem da repressão insana do stalinismo,com o fito de atemorrizar e exterminar os que tiveram coragem de resistir.

Ele balançava a cabeça em concordância e eu continuei:

─ Eu estava na minha casa  ouvindo a rádio Frace,quando o mundo soube da derrubada,pelo povo desarmado,do governo comunista do seu pais.Comentei com alguns amigos,poucos dias depois,o retorno dos fiéis às igrejas católicas,às sinagogas e aos templos protestantes,transformados em viveiros de galinhas e patos,pelo partido comunista romeno.Nessa ocasião, também publiquei,no jornal,algo a respeito.

O médico romeno ficou rubro como um tomate.Com a voz engasgada,ele perguntou:

 

─ Ah!Você é cristão?

─ A religião é  um tema complicado na minha cabeça.Nesse momento,está contida numa categoria  que denomino de “memória sócio‑genética”.Todavia,acredito no inviolável direito de exercer e declarar a fé religiosa.

O romeno ajeitou os cabelos,precocemente enbranquecidos,e acendeu outro cigarro.Ficamos algum tempo sem nada dizer.Eu quebrei o silêncio:

─ Você nasceu e viveu num país comunista.Diga‑me a sua experiência.

O Halrian ficou pálido e a expontaneidade cedeu à tensão.O desespero do ódio contido brotou nos lábios descoloridos:

─ Você conhece a estória do escorpião e da rã?

Não esperou a resposta e seguiu falando:

─Pois bem,o escorpião queiria atravessar o rio e,não sabendo nadar,pediu ajuda da rã:”Você pode me auxiliar chegar ao outro lado?”A rã desconfiada,respondeu:”Se eu ajudar,você me picará e morrerei”.Sorrindo,o escorpião acrescentou: “Bobagem,se eu picar você,nos dois iremos ao fundo e  não desejo morrer”.A rã acreditou e o escorpião montou no dorso do pequeno animal.Quando estavam no meio do rio,a rã sentiu uma dor profunda no ventre e,tarde demais, compreendeu o seu erro. Pressentindo a morte,gritou num derradeiro esforço: “Você é louco.Como têve corragem de me picar?Nós dois morreremos”! Antes de afundar,o escorpião disse:”Desculpe,a minha natureza é mais forte.Não pude resistir”!

 

As lágrimas escorregavam,suaves e sem esforço,nos cantos dos olhos do Halrian.Outra vez permanecemos mudos,até que ele retomou a palavra:

─ O stalinista encarna o escorpião,o único interesse é a ambição do poder.A rã não deve ser confundida com os aproveitadores.Ela representa os crentes de boa fé que acreditaram estar fazendo o bem.Por isso mesmo,foram as primeiras vítimas.

O romeno inspirou forçado e mergulhou,profundamente,no seu  pranto de dor.As lágrimas escorriam rápidas,na face lívida,e pingavam no guarda‑pó branco:

─ O meu pai era pastor metodista.No inicio,inconformado com a miséria dos camponeses,acreditou na ditadura do proletariado.Pouco a pouco,percebeu todos os que contestavam a autoridade suprema do partido comunista foram julgados e condenados.Ele não concordou com o controle da expressão de fé.Foi preso e torturado.A única coisa que desejava era pregar a mensagem de Jesus Cristo…Jamais tivemos  notícias dele.Com o intuito de desmoralisar a nossa igreja,conseguiram o falso testemunho de uma prima acusando a minha mãe de traição…Antes de ser deportada aos campos de trabalhos forçados,ela fez‑nos jurar,sobre a Sagrada Bíblia,que eu e o meu irmão mais velho tentaríamos a fuga em direção ao Oeste.Assim fizemos.Eu tive mais sorte.Glawcav morreu de frio e de fome antes de alcançar a fronteira da liberdade…

O Halrian soluçava e alguns médicos perguntavam o que se passava. Indiferente a todos,ele continuava:

 

─ …desde então sou asilado político,na Franca.Logo após a anistia,voltei a Bucarest.No dia sequinte,perdi o controle quando os antigos membros do Partido Comunista me saudaram gritando “morte aos ditadores comunistas”.Naquele instante, entendi como deve ter sido fácil a farsa dos julgamentos do meu pai e da minha mãe…

Vários colegas  franceses tentavam acalmá‑lo.Uma médica theca,cujo nome não lembro,afagava a sua face molhada pelas lágrimas e repetia algo que não compreendi.

O Halrian permaneceu sentado,com  a cabeça  baixa, encobrindo o pranto de dor.Não lembro‑me quanto  tempo passou.O grupo dissolveu‑se ao ouvir o sonoro “a table” vindo da cozinheira.

 

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