LEPRA BÍBLICA: A CERTEZA DA EXCLUSÃO SOCIAL
Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
Poucas doenças causaram tanta certeza antecipada do sofrimento e da exclusão social quanto a lepra. A palavra zaraath, oriunda da tradição oral do hebreu, apareceu no Antigo Testamento, entre os anos 587 e 538 a. C.. As passagens descritas no Levítico, onde essa palavra é encontrada, foram traduzidas equivocadamente para o grego, na Bíblia dos Setenta, destinada aos judeus da Dispersão, como sendo sinônimo de lepra. Posteriormente, a versão latina, a Vulgata, manteve a mesma erronia compreensão.
Mesmo com as dúvidas que persistem do real significado dessa doença, naqueles tempos, ficou marcada como uma forma de castigo de Deus. Invariavelmente, a comunidade obrigava o doente à exclusão social, que desabrigados, chacoalhando a matraca, como forma de identificação da infâmia condição de leproso, passavam a perambular sem destino na busca da sobrevivência.
Sob a terrível marca de doença ligada ao castigo divino, em poucos séculos, a lepra alcançou o Sudeste da Ásia, a Indonésia e o Leste do Japão. Transportada pelos exércitos de Dario e Alexandre, alcançou o Oeste e o Oriente. Os comerciantes fenícios contribuíram na difusão mediterrânea e as legiões romanas se encarregaram de propagar na Europa e no Oriente médio.
Continua impossível determinar com precisão a origem dessa doença. Do mesmo modo, não há como separar a lepra de outras doenças da pele que também causavam constrangimento e exclusão social.
A lepra como forma específica e temida de doença estava assentada, na Europa, no século XI. Naquele contexto, de miséria e fome, as fontes são generosas para estabelecer os parâmetros da representação coletiva do medo da lepra. Esse aspecto da doença, na Europa medieval, envolveu dois aspectos: o primeiro, certamente, pelo aumento assustador da incidência, inclusive nas parcelas mais abastadas da população; o segundo, a deformidade do corpo, notadamente, da face e das extremidades, proporcionada pela doença avançada, impondo, por si mesma, a certeza do castigo divino.
É notável o estreito elo entre a severa exclusão social e o controle sexual dos leprosos. Era corrente a aceitação da absoluta necessidade de controlar os impulsos da presumida sexualidade exacerbada dos doentes, impedindo o contato com o cônjuge ou eventuais parceiros.
Durante toda a Idade Média, a busca dos culpados dessa terrível doença alcançou, uma vez mais, os judeus, mesmo nos guetos, eram acusados de modo vil das mais variadas conjuras, envenenamentos e feitiçaria, capazes de provocar a lepra, seguido-se os massacres impiedosos de centenas de famílias judias.
No medievo europeu cristianizado, permeando o pavor coletivo dessa doença, plena de sofrimento e rancor, a transcendente imagem de Jesus Cristo curando os leprosos instrumentalizou um dos mais consistentes símbolos da Nova Aliança, transcrita no Novo Testamento, em torno de Deus essencialmente misericordioso, tolerante e bondoso, sob certa leitura, muito diferente do severo Deus do Antigo Testamento. A reprodução dessa bondade de Jesus Cristo com os excluídos do convívio social, descrita pelos apóstolos, fincaram as bases da caridade cristã voltada à assistência aos sofredores, dos quais, os leprosos constituíam a grande maioria.
Como manifestação social da caridade, os primeiros hospitais cristãos foram incorporados às abadias, como parte essencial do convívio religioso. Um dos exemplos é o monastério de São Gal, do século IX, na França, que comportava: infirmarium: abrigava os religiosos; hospitale pauperum: para pobres e peregrinos, onde os monges praticavam as obras de caridade e misericórdia e o leprosário, para os doentes contagiosos.
Os leprosos foram escolhidos no Terceiro Concílio de Latrão (1179), sob o pontificado de Alexandre III (1159 -1181), para receberem tratamento especial dos cristãos; ao mesmo tempo, foi reprovado o isolamento a que eles estavam submetidos pela sociedade. A Ordem de São Lázaro foi criada para dar cumprimento às ordens conciliares e o grão-mestre deveria ser sempre um leproso
O avanço da doença foi extraordinariamente rápido. No século XIII, na Europa, já existiam mais 19.000 Xenodochium pauperum, debilium et infirmorum (hospital dos pobres, dos fracos e dos enfermos), a maior parte funcionando como leprosários, quase todos construídos com donativos de pessoas que associavam a caridade à salvação pessoal.
Nessas circunstâncias, bastava a simples denúncia do vizinho ou parente para que fosse iniciado o rápido processo de julgamento, em tribunais especiais reconhecidos pelos julgadores laicos e religiosos. Na cidade de Arlés, na França, no século XIV, em cada 27 de maio, as pessoas efetuavam as denúncias da existência de leprosos. Se considerado culpado de ser leproso, a pessoa era isolada em um dos muitos Xenodochium disponível, administrados pelos religiosos das Ordens dos Hospitalários de São João, dos Antoninos e do Espírito Santo.
Desse modo, em quase cinco mil anos de história, entre os tempos dos primeiros profetas bíblicos e a cristianização da Europa, incontáveis doentes que sofriam o terror das deformidades provocadas pela lepra, passaram da exclusão errante à exclusão fechada patrocinada pela caridade.