NOVAS CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DA ÉTICA MÉDICA E DO DIREITO: ABORTO, EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTONÁSIA

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

ABORTO     

 

Apesar de constituírem temáticas circunstanciais diferentes, é possível pensar que os elos comuns e mais importantes entre os três temas – aborto, eutanásia e distanásia – sejam os complicados limites da vida e da morte, porque mesmo com motivações diversas, é exatamente nesse contexto que ocorre o encontro dos três temas: decisões que podem mudar o curso da vida em diferentes situações.

Dessa forma, parece adequado considerar os aspectos éticos atados ao contexto social e histórico, incluindo as abordagens laicas e religiosas, ambas atentas, ao longo da história, passada e presente, para regular, administrar e punir as faltas cometidas por pessoas ou instituições no trato com os limites da vida e da morte.

Mais com a intenção pedagógica, apesar dos elos comuns que serão tratados como cernes da discussão acadêmica, os temas serão abordados separadamente.

 

  1. Aborto

A palavra aborto tem origem etimológica no latim abortacus, derivado de aboriri – perecer; composto de ab = distanciamento, a partir de e oriri  = nascer.

As seguintes situações podem compor o aborto:

Quanto a etiologia:

Aborto espontâneo: também denominado aborto involuntário ou casual. Se processa sem interferência externa, isto é, quando não são referidas situações ou vetores facilitadores. aborto devido a uma ocorrência acidental ou natural.

Aborto induzido: ou aborto voluntário ou procurado ou interrupção voluntária da gravidez. Determinado pela ação humana intencional. Pode estar relacionado com diversas situações:

Aborto terapêutico: provocado para salvar a vida da gestante,  preservar a saúde física ou mental da mulher, interromper a gestação cujo feto apresenta ma-formações incompatíveis com a vida.

Aborto eletivo: provocado por qualquer outra motivação.

 

Quanto ao tempo de duração da gestação

Aborto subclínico: antes de quatro semanas de gestação

Aborto precoce: entre quatro e doze semanas;

Aborto tardio: após doze semanas

 

Aborto induzido

O aborto induzido ou aborto provocado ou interrupção voluntária da gravidez, ocorre pela ingestão de medicamentos ou por meio de métodos mecânicos. O amparo ético e legal é fortemente contestada em muitos países, mas, por outro lado, permitido como prática legal em outros países.

Fora outros componentes, parte da discussão ética se passa nas diferentes compreensões:

– Definir quando o feto ou embrião se torna humano,  se na concepção, no nascimento ou em um ponto intermediário;

– Primazia do direito da mulher grávida sobre o feto ou embrião.

A relação dos poderes laicos, em diferentes instâncias, ao longo de quatro mil anos, tem adotado diversas atitudes frente ao aborto como método anticoncepcional. Em algumas, lidando com indiferença; em outras, punindo severamente.  Por outro lado, tanto nos livros sagrados das culturas politeístas, do milênio passado, quanto nos do monoteísmo, não parece que a interrupção intencional da gravidez, salvo pelo risco de morte materna, causasse tanta repulsa.

Por essas razões, na discussão ética do aborto cabe adicionar alguns aspectos históricos dos dois sistemas.

 

  1. Aborto sob a vigilância de algumas idéias e crenças religiosas

 

Existem indicativos de que os poderes laicos e os ligados às idéias e crenças religiosa, das sociedades, no primeiro milênio a. C., fizeram interdições ao aborto como método anticoncepcional.

Por outro lado, existem alguns aspectos interessantes. Tanto o Antigo Testamento quanto o Novo Testamento, mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar, não citam uma só vez de modo explícito qualquer tipo de condenação à prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse qualquer importância para a coesão do grupo. A Bíblia não condena nem aprova a interrupção da gravidez. Na verdade, não existe nenhuma referência ao aborto.

É difícil aceitar que a ausência de citação bíblica seria porque as sociedades judias não conheciam essa forma de método anticoncepcional. Em poucas passagens, é mencionada a pena do agressor de uma mulher grávida, se a brutalidade resultasse em aborto. Mesmo assim, o castigo parecer ter sentido indenizatório.

Nesse sentido, é pouco provável que o aborto provocado, com ou sem complicação, tivesse alta prevalência a ponto forçar reação punitiva das autoridades administrativas.

O 2º Livro de Samuel, o episódio em que o rei Davi engravidou a mulher do general Urias, com a gravidez preste a ser descoberta pelo povo que acreditava no rei, o aborto não foi pensado. A opção do rei adúltero foi mandar matar o militar que se encontrava na frente de combate e casar com a viúva grávida.

 

A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100 da nossa Era: Não matarás criança por aborto, nem criança já nascido. O filósofo cristão Tertuliano (190‑197) também adotou a posição antiabortiva absoluta: É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá.

São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algásia, argumentou: os semens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros. Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de tríplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos.

De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a separação etária dos fetos: Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.

Na Idade Média, a Igreja cristianizou algumas comemorações oriundas do politeísmo. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século 6, iniciando os atributos sagrados às concepções, seguida da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, também no século 6, e da Anunciação, ou Festa da Concepção de Cristo, no séculos 8. Essas celebrações contribuíram também para impor simbologia sagrada à gestação.

A dúvida sobre a data do início da anima­ção do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos, atravessou os séculos. O magnífico São Tomás de Aquino (1225‑1274) sustentou que não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa Gregório XIV (1535-1591), apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Sisto V (1585-1590) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.

O retorno da Igreja, verificado no século 19, ao rigor do cristianismo do Didaqué tem dois componentes inseparáveis: o teológico: promovido pelo papa Pio XI (1857-1939), que acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado; o político: relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão de obra, já que historicamente o aborto e conseqüências que alcançaram mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres.

No famoso discurso, dirigido às obstetras, em 1951, o papa Pio XI foi enfático ao atribuir vida intra-uterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do inocente: ”Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus…Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente…visando sua destruição.

O documento conciliar Gaudium et Spes, de 1962, no papado de João XXIII, constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual, publicado pelo Concílio Vaticano II, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis.

Certas passagens do AT (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do NT (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18) valorizando a vida situando Deus como o único Senhor da vida e da morte, foram utilizados pelos teólogos para construir a doutrina oficial da igreja católica.

 

  1. Aborto sob a vigilância laica

Os métodos abortivos utilizados como contraceptivos, foram usuais na antiguidade. Essa herança social chegou ao mundo grego‑romano. Os registros mostram que pouco importava à mulher daquela época o momento biológico mais propício para provocar o aborto. As regras sociais do politeísmo, no Oriente e no Ocidente, não empunhavam restrições. Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica, o Código de Hammu­rabi, do século 17    a. C., e as leis de Eshnunna (1825‑1787 a. C.) não fazem referência ao assunto.

A leitura do juramento de Hipócrates mostra a clara tendência anti-aborto dos médicos gregos da Escola de Cós: …Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provo­car aborto. Essa abordagem reafirma o cerne da Medicina hipocrática: jamais fazer mal ao dente.

Houve indulgência em Aristóteles (Política, VII, 4) aconselhando o aborto frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida.

Após a cristianização do Império Romano é fácil reconhecer a influência do pensamento cristão nas leis sobre o aborto. No século 6, os visigodos adotaram a pena de morte para quem quer que fornecesse drogas para provocar aborto. A mulher, se fosse escrava, seria punida por meio de castigos físicos; se fosse livre, seria degradada. No século seguinte a pena de morte passou a valer tanto para o vendedor da droga como para o marido da gestante, caso consentisse o crime.

Na França, até a Revolução Francesa, os médicos, cirurgiões e as parteiras que praticassem aborto, quando descobertas, eram condenados à forca. Com o advento da Revolução Francesa esta pena foi reduzida para vinte anos de cadeia.

Depois de quase dois mil anos de limitações impostas, ora pelos poderes ligados ao sagrado, ora pelo profano das estruturas sociais, a estimativa do número de abortos ilegais provocados por ano no mundo é impressionante:

– Abortos por ano: entre 46 a 55 milhões;

– Abortos legais: cerca de 26 milhões de;

– Abortos ilegais: em torno de 20 milhões;

– Abortos por dia: aproximadamente 126.000;

– 78% de todos os abortos são realizados em países em desenvolvimento e os restantes 22% em países desenvolvidos;

  • Aproximadamente 97 países, com cerca de 66% da população mundial, têm leis que em essência permitem o aborto induzido;
  • Noventa e três países, com cerca de 34% da população, proíbem o aborto ou permitem o aborto apenas em situações especiais como deformações do feto, violações ou risco de vida para a mãe.

 

 

 

 

 

 

Atualmente, no Brasil, o aborto é considerado crime, exceto: gestação como produto de estupro e risco de vida materna e, mais recentemente, quando constatada anomalias fetais incompatíveis com a vida, como a anencefalia.

Um dos estudos mais importantes identificando o perfil das mulheres que usam o aborto como método anticoncepcional foi realizado pela Universidade Federal de Pelotas. Alguns dados são interessantes para mostrar a gravidade do problema:

– Mais freqüente entre mulheres com idade entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, católicas e com pelo menos um filho;

– A maior parte é adolescente;

– O medicamento de venda controlada Misoprostol, foi apontado como principal método abortivo utilizado pelas brasileiras;

– Mais de 1 milhão de gestações foram interrompidas em 2005;

– Cerca de 200 mil mulheres foram hospitalizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) em decorrência de tentativas de aborto em 2005;

– Em 2005, pelo menos 3,7 milhões de brasileiras entre 15 e 49 anos realizaram aborto, representando  7,2% das mulheres em idade reprodutiva;

– De 51% a 82% dos abortos são realizados por mulheres entre 20 e 29 anos;

– Entre 7% a 9% são adolescentes;

– Mais de 50% das mulheres que abortaram nas regiões Sul e Sudeste usavam algum método anticoncepcional, principalmente pílulas. No Nordeste, essa porcentagem oscila entre 34% e 38,9%;

– A maior parte das mulheres que fizeram aborto se declarara católica, com 51% a 82% de prevalência, seguida pela que professa a fé espírita, com 4,5% a 19,2%. Em último lugar estão as evangélicas, entre 2,6% e 12,2%;

A Organização Mundial de Saúde publicou que o Brasil já tem maior número de abortos do que de nascimentos. Os estudos da OMS e de outras entidades de direitos humanos, mostram que a mortalidade e a morbidade são atenuadas com a melhor assistência do Estado. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir de 1973, quando a Suprema Corte legalizou o aborto, com severas restrições à realização em hospitais públicos, em menores de idade e em gestantes com mais de dois meses de gravidez.

A tendência pró‑aborto iniciada na Europa, nos anos setenta, é hoje mundial. Nos últimos quinze anos, pelo menos vinte países modificaram as suas leis. Na Itália, o mais católico dos países da Europa, a legalização do aborto provocou muito conflito. Só depois de cinco anos de debates no Parlamento, em 1975, e com a ajuda da frente laica, reunindo os representantes de todos os partidos políticos, foi aprovada a mudança. O plebiscito, realizado no papado de João Paulo II, mostrou que 70 % dos italianos aprovaram a lei.

As estatísticas mundiais, notadamente, nos países de tradição cristã, evidenciam o aumento do número dos abortos provocados. Mesmo com essa clareza, continua em plena efervescência essa discussão, na medida em que todos concordam ser necessário monitorar a decisão da busca do aborto como metido anticoncepcional, notadamente, se a mulher que pretende abortar é menor de idade.

Na França, a permissão legal para o aborto alcança os embriões de 14 semanas. Contudo, a entrevista obrigatória com equipe especializada, que antecede o ato médio, nos hospitais públicos, e o apoio governamental no sustento futuro da criança, consegue reverter a decisão em mais da metade dos casos

A análise dos dados estatísticos, continua alimentado as seguintes questões:

  1. As proibições profanas e sagradas não modificaram, em quase dois mil anos, o comportamento das mulheres quando decididas em utilizar o aborto como método ­anticoncepcio­nal;
  2. Nas sociedades com problemas de superpopulação, pode ocorrer o estímulo público e institucional ao aborto como forma de controle populacional.

 

  1. O aborto frente ao Código de Ética Médica

 

O artigo 54 do Código de Ética impõe ao médico que não provoque aborto, salvo exceções referidas no artigo 128 do Código Penal.

Para que possa realizar o aborto, o médico deverá consultar, em conferência, dois colegas, lavrando a seguir uma ata em três vias. Uma, será enviada ao Conselho Regional de Medicina; outra, ao diretor clínico do hospital ou clínica, pública ou privada; a terceira via ficará sob a guarda do médico assistente, responsável pela internação hospitalar da paciente.

O tema aborto, com seus diferentes enfoques, está presente direta ou indireta em pelo menos 21 artigos do Código de Ética Médica (1, 2, 6, 7, 8, 11, 16, 20, 21, 28, 42,  43, 46, 47, 56, 59, 61, 67, 102, 103, 142). Contudo, os artigos 42 e 43 são mais específicos:

Art. 42 – É vedada ao médico a prática ou indicação de atos desnecessários ou proibidos pela legislação do país;

Art. 43 – É vedado ao médico o descumprimento da legislação específica nos casos de transplantes de órgão ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento.

Por outro lado, o artigo 128 do Código Penal, que trata de crimes contra pessoas, diz que não se pune o aborto praticado por médico se:

I – não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário);

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando menor ou incapaz, de seu representante legal. (Aborto no caso de gravidez resultante de estupro).

 

 

EUTANÁSIA, DISTANÁSIA ORTOTANÁSIA

 

A complexidade do tema reforça a necessidade de ampliar a discussão, mantendo o eixo central em torno dos aspectos éticos, para dois aspectos:

– Genético: a rejeição atávica à morte é inerente ao seu humano, já que os corpos vivos multicelulares, de todas as espécies, muito especialmente, o da espécie Homo sapiens, foi organizado, ao longo de milhares de anos, para manter a vida – a morte rejeitada;

– Social: a certeza da inevitabilidade da morte – a boa morte.

De acordo com Martin, é possível estruturar pelo menos três paradigmas atrelados à eutanásia e distanásia:

– Tecnocientífico: mudanças na ciência e tecnologia que estimulam, o paciente incluindo a família e o médico utilizarem dos recursos disponíveis, para adiar a morte;

– Comercial-empresarial: direta e indiretamente, relacionado ao anterior, na medida em que gera lucro.

– Benignidade humanitária e solidária, salvo em algumas sociedades-culturas que preparam os seus membros para entender morte com menos perda continua sendo muito difícil tanto para o médico quanto ao doente e sua família concluírem: a hora da morte chegou.

Por outro lado, o mesmo autor descreve a “eutanásia social” ou “mistanásia”, a morte precoce consequente de muitas situações onde miséria social impede que a vida seja prolongada, quando comparada aos doentes que têm moradia, trabalho e alimentação adequadas e fácil acesso aos serviços médicos.

 

Eutanásia e distanásia

A eutanásia e a distanásia são resultantes de atitudes e ações médicas específicas retratando os cuidados com a morte do ser humano:

 

Eutanásia: elimina o sofrimento abreviando a morte de modo ativo;

Distanásia: prolonga ao máximo a vida, sem considerar o sofrimento.

Pressupondo que a eutanásia e a distanásia são administradas por médicos, sem dúvida, embutem decisões e preocupações polares, que envolvem o paciente, o médico os entes queridos. Enquanto a eutanásia, por diferentes meios, provoca a morte do doente termnal; a distanásia, sem possibilidade de curar, prolonga a vida e o sofrimento. Parece que a distanásia, em algumas circunstâncias não consegue identificar quando determinado procedimento médico já não interfere para manter a vida, só mantém a dor.

No atual Código de Ética Médica houve mudança no sentido de que não basta somente prolongar ao máximo a vida do paciente, é necessário critérios para discernir se a terapêutica oferecerá ou não benefício ao doente.

Em 1980, com a “Declaração sobre a Eutanásia”, evidenciou a posição da Igreja se adaptando à nova realidade – a atual possibilidade de o médico utilizar qualquer meio terapêutico, para prolongar a vida de alguém que sofre intensamente em consequência de uma doença incurável. Diante das dificuldades emocionais, principalmente as da família, de definir quais seriam os meios ordinários e extraordinários, o documento eclesiástico adotou os termos “meios proporcionados” e “meios não proporcionados” objetivando manter a vida. Nessa colocação é possível distinguir:

– Dever básico de cuidar da saúde;

– Existir proporcionalidade entre as terapêuticas usadas e os resultados previsíveis.

Nesse seguimento, quando não há mais possibilidade de o doente se recuperar de uma doença incurável determinando sofrimento: “É lícito, em consciência, tomar a decisão de renunciar aos tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes”.

Essa posição da Igreja determinou novos patamares e procedimentos éticos que evitam a distanásia: distinção entre terapia abusiva e cuidados normais. Cuidar do asseio do paciente, conforto e de alimentação, na medida em que possa ser administrada via oral, constituem cuidados normais.

A obrigação de o médico recorrer a qualquer procedimento com o intuito de prolongar a vida de qualquer modo, precisa ser avaliada à luz da proporcionalidade  entre o que é melhor para o doente, família ou hospital.

 

Ortotanásia

 

Ou a arte de bem morrer, de certo modo, lembrando a “boa morte”, no medievo europeu, permite ao doente terminal e a família enfrentarem a inevitabilidade do destino mortal do homem, a partir da certeza de a morte não ser doença a curar, faz parte da vida.

Neste processo, o componente ético é tão importante quanto o componente técnico. O ideal é realizar a integração do conhecimento científico, habilidade técnica e sensibilidade ética. Respeito pela autonomia do doente: ele tem o direito de saber e o direito de decidir.

 

  1. Questões éticas da eutanásia e distanásia

 

Eutanásia (do grego = eutanasia) = morte serena, sem sofrimento, contínua como cerne de muitas discussões.

Os judeus e católicos não aceitam a eutanásia, com fundamentações semelhantes de natureza bíblica, teológicas e conciliares, expressas na “Declaração Comum de Responsáveis Judeus e Católicos”, publicado no jornal “Le Monde”, em 4 de abril de 2007. Novembro

A Igreja possui quatro documentos recentes que tratam da questão:

– Decreto do Santo Ofício, de 27 de novembro de 1940;

– Discurso aos médicos sobre os problemas morais da analgesia, em 24 de fevereiro de 1957, do papa Pio XII;

– Discurso sobre os problemas da reanimação dos doentes, 24 de novembro de 1957, do papa Pio XII.

– Declaração sobre eutanásia da Congregação para a Doutrina da Fé, 5 de maio de 1980, no pontificado de João Paulo II.

– Bula Evangelium Vitae, de 1995, do papa João Paulo II, valorizando a ortotanásia e opondo-se aos excessos terapêuticos, afirmando que as renúncias aos meios excepcionais e desproporcionais para prolongar a vida, não correspondem ao suicídio ou a eutanásia.

O Código Penal brasileiro, sob nenhuma hipótese autoriza a eutanásia. Contudo, em certas circunstâncias muito especiais, quando alguém é portador de doença reconhecidamente pela ciência como incurável, situação terminal, com incalculável sofrimento, pode ser classificada homicídio privilegiado. Nesse caso, será possível os benefícios do parágrafo 1º do artigo 121 do Código Penal, podendo ser entendido auxílio ao suicídio, desde que o paciente solicite ajuda para morrer.

Art. 121 (…)

  • 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (grifos nossos)

Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Desse modo, em qualquer das circunstâncias a eutanásia se configura conduta ilícita.

O mundo televisivo acompanhou em março de 2005, do drama familiar da doente norte americana, em coma vegetativo durante quinze anos, após a autorização judicial, em última instância, para interromper a alimentação e hidratação. A paciente morreu treze dias após serem interrompidos os cuidados médicos.

Distanásia representa o conjunto de ações médicas com o objetivo de empurrar os limites da morte, em consequência, em determinas condições, mantendo o sofrimento.

Ortotanásia pode ser entendida como a chegada da morte no seu processo natural. Nessa circunstância, a assistência médica não contribui para prolongar artificial e desnecessariamente o processo de morte. É importante assinalar que somente o médico poderá conduzir o processo da ortotanásia, portanto não sendo obrigado legal e eticamente a prolongar a vida contra a expressa vontade do paciente.

O Código Penal não pune a ortotanásia já que não é determinante da morte na medida em que o processo da morte está em curso.

O drama da doente norte-americana despertou a atenção de milhares de pessoas, em vários países no mundo, para o sofrimento dos doentes, com morte encefálica comprovada, sem nenhuma oportunidade de recuperação, que têm a vida e os sofrimentos prolongados pelas ações das tecnologias médico-hospitalares.

Essa discussão pública recebeu a atenção dos teóricos do Direito, da ética da moral, que se manifestaram acaloradamente em torno de concepções da dignidade e autonomia da pessoa humana para morrer.

Alguns questionamentos foram postos e que perduram até hoje:

– Poder das instituições hospitalares e do médico para manter a vida artificialmente dos doentes sem qualquer possibilidade de recuperação;

– Direito de pedir a própria morte quando o doente está lúcido, com doença terminal, sem possibilidade de nenhum tratamento, com sofrimento insuportável;

– Na impossibilidade de o doente decidir, nas mesmas condições acima citadas, se alguém da família poderia decidir a hora da morte.

De modo geral, a discussão de ordem jurídica, ética e moral, alcançaram diferentes espaços das relações leigas e laicas. Sem unanimidade frente às várias correntes, a discussão acabou restrita aos abusos da tecnologia médico-hospitalar que transformou o doente terminal em mercadoria de valor, seja científico ou monetário.

É importante ressaltar que esse tipo de morte, dita hospitalar, é procedimento médico muito recente. Durante séculos, a morte de um ente querido, mesma plena de sofrimento, não era temida; as famílias não enviavam seus parentes com doenças terminais, para morrer nos hospitais. A chegada da morte inevitável era presenciada na casa da família, com o doente amparado pela família, inclusive as crianças. A morte não era vergonha que tinha de ser transferida para as unidades de tratamento intensivo.

De certo modo, nas últimas décadas, parecer existir maior rejeição pessoal e coletiva dos limites da vida. A pós a construção da falsa certeza de os hospitais e médicos poderem aumentar os limites da vida, não importa a qual preço, financeiro e emocional, sob qualquer circunstância, ninguém deseja ficar com o peso na consciência quando se trata de um ente querido, de “não ter feito tudo para que ele ou ela não morresse”. É claro que nesse “tudo” o hospital é a opção mais importante.

É necessário que se reafirme que essa estrutura teórica, sob hipótese alguma, representa a desistência tácita para entregar a vida à sorte. Aqui, se discute, o conjunto ético e moral, sob várias leituras, inclusive a religiosa, de se manter a vida a qualquer preço de doentes descerebrados e de outros em contínuo e insuportável sofrimento sem qualquer possibilidade de cura.

Nos dias atuais, em algumas sociedades industrializadas e outros países em desenvolvimento, existem indicativos da tendência de retornar “à boa morte”, recusando ética e moralmente, que a vida de alguém sem oportunidade de recuperação, especialmente, os que não possuem sinal de atividade elétrica cerebral, seja adiada a qualquer preço.

Existe relação entre a tendência de exagerar na manutenção da vida a qualquer preço, inclusive com aumento do sofrimento do doente sem condição de cura, com uma prática médica voltada ao lucro.

O confronto entre os que possuem recursos para receber o tratamento hospitalocêntrico e os que não conseguem o acesso ao serviço público contribuiu para nova discussão em torno da categoria denominada mistanásia ou eutanásia social.

O compromisso ético com a promoção do bem-estar do doente terminal permite valorizar os objetivos conceituais da ortotanásia, suficientemente claros para se defender junto os doentes terminais, familiares e médicos que a morte não é uma doença a curar, mas algo que faz parte da vida.

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