MEDICINA ENTRE AS CONFRARIAS, CORPORAÇÕES E IRMANDADES

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

As corporações-confrarias-irmandades, inclusive a Confraria dos Cirurgiões, fundada por Jean Pitart, parecer ter sido parte da resistência dos trabalhadores que continuavam à margem das melhores fatias da organização social da alta Idade Média.

O aperfeiçoamento desse processo de resistência contribuiu para o surgimento dos grupos de proteção mútua, nos moldes da “compagnia” fundada em Gênova em 1099 e financiada pelos marítimos.

Desde a baixa Idade Média, existiam organizações dedicadas à guarda do interesse coletivo de grupo de trabalhadores especializados. A encontrada em Valenciennes, floresceu entre 1050-1070, tinha uma característica predominantemente laica, enquanto que a de Saint-Omer, ativa entre 1072-1080, era de natureza eclesiástica. Algumas delas já apresentavam rígida estrutura administrativa, com um órgão de decisão (capitulum), um líder (décani) e uma sede (Guildhus).

As corporações-confrarias-irmandades ofereciam novo tipo de proteção aos membros, sob a presença dos santos mais importantes ou ligados à tradição religiosa da região. A próspera corporação de lanifício de Florença, com cerca de vinte mil operários e duzentas oficinas, pode representar muito bem esse interesse eclesiástico: a sede dessa rica corporação, o Palácio da Lã, se ligava por meio de uma ponte com a Igreja Orsanmichele.

A inserção das corporações-confrarias-irmandades, surgiram fortalecidas em regras protecionistas de solidariedade econômica e social, em articulação com a hierarquia das autoridades religiosas e laicas. A Igreja se manteve próxima dessa nova articulação social compreendeu a importância histórica e estimulou novas alianças a partir de estreitas ligações com os líderes, especialmente, na Confraria dos Cirurgiões, já que os cirurgiões-barbeiros se mantinham fora da ordem eclesiástica.

É importante relembrar que o aparecimento desse personagem, o cirurgião-barbeiro, foi consequente da resposta social à interdição intolerante da Igreja à dissecção do corpo morto para fim de estudo da anatomia e ao fechamento das escolas de Medicina, determinando com que os cirurgiões ficassem cada vez mais escassos até o completo desaparecimento na primeira metade do século 9.

O aumento da circulação de moeda e do comércio pode ter contribuído para forçar, por parte da população mais organizada, o preenchimento de um espaço vazio da organização social na assistência à saúde e à velhice. Pode ter sido por aí que as normas das corporações-confrarias-irmandades passaram a prever diversas formas de amparo aos membros e suas famílias.  A maior parte possuía hospital próprio, como o da rica Confraria de São Leonardo, em Viterbo, Itália, no século XII, capazes de prestar vários tipos de atendimento e amparo à viuvez e aos órfãos. Essas ajudas mútuas estavam atadas aos resultados oferecidos pela Medicina-oficial, basicamente dos melhores cirurgiões-barbeiros, aderidos à Confraria dos Cirurgiões. De certa forma, nesse contexto, contribuíram para que a ética dos médicos retornasse aos bons resultados como o melhor caminho.

Essas mudanças só protegiam pequenos grupos, a maior parte da população vivia na miséria. É importante relembrar que haviam sido perdidas as conquistas sociais que a Medicina greco-romana. O processo de dessacralização da doença, iniciado na Escola de Cós, por meio da teoria dos Quatro Humores, foi apagado pela ética cristã inserida na Medicina que valorizava, exclusivamente, a doença como castigo pelo pecado cometido.

Essa ética cristã baseada na caridade cristianizada, que valorizou a exaustão a recompensa pessoal após a morte e da obediência aos dogmas eclesiásticos, abandonou os cuidados com a saúde pública, a higiene pessoal, redes de abastecimento de água potável, escoamento dos esgotos e o pagamento pelo serviço profissional médico.

Por essas razões, a maior parte das populações da Europa medieval sofreu na pele o descaso pelas normas essenciais para preservar a saúde coletiva. As cidades não passavam de aglomerações humanas desordenadas, em torno de suntuosas catedrais góticas, sem água potável, esgotos sanitários e habitações inadequadas, onde, de tempos em tempos, grassavam epidemias de várias doenças infecto-contagiosas, que matavam freqüentemente milhares de pessoas em poucas semanas.

As regras das corporações-confrarias-irmandades se organizaram, sempre ofereceram ajuda entre os membros e suas famílias. O estatuto da corporação dos curtidores de couro branco, em Londres, datado de 1346, reza no artigo primeiro que o bem-estar de seus membros era o objetivo maior.

 

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