AS SANTAS CASAS (I)

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

” (…) QUE VOSSA MAJESTADE PROMETESSE LEVANTAR UM CONVENTO NA VILA DE MAFRA, DEUS LHE DARIA SUCESSÃO, E TENDO DECLARADO ISTO, CALOU-SE D. NUNO E FEZ UM ACENO AO ARRÁBICO. PERGUNTOU EL-REI, É VERDADE O QUE ACABA DE DIZER-ME SUA EMINÊNCIA, QUE SE EU PROMETER LEVANTAR UM CONVENTO EM MAFRA TEREI FILHOS E O FRADE RESPONDEU, VERDADE É, SENHOR, PORÉM SÓ SE O CONVENTO FOR FRANCISCANO (…)”  SARAMAGO, José. Memorial do convento. 3ª ed. São Paulo, DIFEL, 1983, p. 14

 

Para compreender a essência do que significou as Santas Casas é necessário que se comece a partir da análise histórica da assistência caricativa na Europa medieval.

A consolidação do comércio na baixa idade média e a poderosa liga das cidades bálticas, a Hansa, foram dois fatores que contribuíram para a formação das grandes fortunas concentradas na mão de poucas famílas. O exemplo mais marcante foi os Fugger. Este grupo familiar formou um formidável império econômico que começou o Jacob I. o Velho (falecido em 1469) que controlou com competência os seus interesses interferindo na política de diferentes cidades que compunham a Hansa.

do mesmo modo que havia poucaas pessoas com muito, existiam dezenas de milhares que não pssuíam nada. Estes últimos, homens sem senhor, eram constituídos principalmente pelos vadios e mendigos que perambulavam no campo, os desempregados das periferias urbanasa, camponeses expulsos das suas terras e os artesãos itinerantes. Foi nesta parcela da população européia que se abateu os rigoras da fome, da peste e da miséria.

Com a gradativa desagregação do feudalismo, as cidades começaram a assumir papel mais importante no conjunto social e foram fortalecidas por vários fatores políticos-econômicos.

A necessidade de preservação dos interesses comuns estimulou a formação das corporações. Elas agruparam centenas de pessoas que exerciam atividades comuns e tiveram destauqe nas relações de produção na Europa Medieval. a igreja acompanhou de perto o aparecimento delas, estimulou o fortalecimento a partir de estreitas ligações com os seus principais dirigentes e elegeu os Santos protetores para elas.

Durante o domínio da igreja no medieval, a medicina perdeu grande parte das suas conquistas  como especialidade social incorporada pelos gregos. Passou a ser uma mistura de conceitos técnicos e caridade cristã.

É fundamental tentar resgatar o início da assistência médica dirigida para grupos específicos de pessoas. Este ponto da relação da medicina com o social marcou uma nova etapa que mudou os rumos da sua prática.

O esboço da atenção à saúde coletiva com apar~encia  caricativa pode ter aparecido paralelamente às atividades desenvolvidas pelas corporações de ofício. Este aspecto destas organizações foi sintetizada também por Abramson, Gurevitch e Kolensnitski na História da Idade Média do século XI ao século XV”:  ” As  corporações desempenhavam um importante papel, não apenas na atividade profissional dos seus membros, mas também na vida cotidiana. Dispunham de recursos pecuniários provenientes de  cotizações e multas, o que lhes permitiam ajudar órfãos e viúvas de arteos.”

 

Essa forma de assistência que começou a aparecer era completamente diferente da modalidade individual que dominou nos séculos anteriores. Neste último   período, o atendimento era realizado em caráter pessoal, isto é, voltado para o indivíduo,  sem qualquer preocupação com coletivo.

Este mesmo tema foi abordado por Geoge Rosen no seu DA POLÍCIA MÉDICA À MEDICINA SOCIAL ” A medicina, enquanto atividade social desenvolvida em um contxto de necessidade humana e vida  comunitária, produz formas institucionais através de que idéias e práticas são veiculadas por membros de uma sociedade organizada, caracterizada por divisão do trabalho e especialização de funções”.

Sob esse enfoque é possível encontrar semelhança entre as corporações, confrarias e irmandades. Todas elas defendiam os seus interesses temporais e organizavam-se para prestar diferentes auxílios aos seus membros.

Algumas confrarias, como a dos cirurgiões, organizada em Paris no século XIV sob a proteção de São  Cosme e São Damião, aglutinou um grupo  de pessoas que exerciam função específica de perstação de serviços – os cirurgiões – barbeiros. ( A cirurgia como especialidade na medicina, J.C. 15.2.87)

Durante todo o domínio da Igreja no medievo, a medicina perdeu grande parte das suas conquistas como especialidade social incorporada pelos gregos. Passou a ser uma mistura de conceitos técnicos e caridade cristã.

É possível que o ideário das confrarias, irmandades religiosas e leigas e mesmo as incorporações tenham surgido a partir da interpretação dada à palavra hebraica bíblica ÁH que significa os filhos do mesmo pai ( Gn 24,29) e da mesma ou de outra mãe (Gn 20,5); em sentido mais largo os parentes mais próximos, amigos, patrícios, vizinhos e correligionários duma mesma análise (Gn 13,8; Lv 10,4 e Mc 6,3), duma mesma tribo (2S 19,13), dum mesmo povo (Dt 25,3 e Jz 1,3), designiando povos de um mesmo descendente, como Edom e Israel (Dt 2,4 e Am 1,11). Além deste tipo de fraternidade baseada na carne, a Bíblia descreve com detalhes uma outra mais importante e transcendente, baseada na ordem espiritual: fraternidade pela fé (At 2,29), pela simpatia (2S 1,26), por função semelhante (grifo nosso) (2 Cr 31,15) e por aliança contraída (Am 1,9: 1R 20,32 e 1M 12,10).

De todas as referências acima vale a pena conhecer com detalhes a determinante de trabalhos iguais : 2ÇR 31,15 “Eden, Miniamim, jesus, Semeias, Amarias e Sequenias assistiam-no fielmente nas cidades sacerdotais para distribuir as porções aos seus irmãos, grandes e pequenos, segundo as suas classes”.

No Novo Testamento as referências aos diferentes tipos de irmandade somam a cento e sessenta vezes. Existem citações que realmente  fazem pensar na semelhança das intensões dos contratos corporativistas e dos regulamentos das irmandades, inclusive das Santas Casas, administradas inicialmente pela Irmandade da Misericórdia.

As inerpretações dessas passagens do VT e NT fazem crer que não existia nada de espiritual, ao contrário, procuram incentivar o apoio mútuo (Rm 15,1) e a coleta de donativos e esmolas ( 2 Co 8-9 e 1 Jo 3,17).

As confrarias exerciam diferentes funções sociais específicas e entre elas contavam: promover o bem estar dos irmãos e das suas famílias distribuição de dotes, esmolas e auxílio encarceramento, atendimento hospitalar e funeral. Chegou mesmo a existir a especialização destes serviços em algumas delas como a de São Leonardo, famosa poe seu hospital no século XII e a Confraria de São Giovanni Decolato de Florença, do século XV, que acompanhavam os condenados à forca e promoviam o sepultamento dos corpos.

 

Elas se multiplicavam as centenas em toda a Europa, principalmente nas cidades mais prósperas da Itália. Eram dirigidas por famíliasabastadas que procuravam compensar a ganância desenfreada pelo lucr, atuando de acordo com os ensinamnetos bíblicos na ajuda caritativa dos desgraçados.

É provável que a Confaria de Nossa Senhora da Misericórdia de Florença (Confraternitá di Santa Maria della Misericórdia) tenha tido algum tipo de influência na formçaõ da sua homônima em Lisboa.

Portugal foi particularmente castigado pelos efeitos devastadores da peste negra, com pelo menos vinte e dois surtos registrados entre 1188 e 1496. O de 1310 foi tão desesperador que o enterro dos mortos tornou-se um problema físico. Foi neste contexto de necessidades coletivas que as confrarias e irmandades cresceram e se multiplicaram ao longo do tejo.

Algumas confrarias, como a dos cirurgiões organizada em Paris no século XIV sob a proteção de São Cosme e São Damião, aglutinou um grupo de pessoas que exerciam a função específica de prestação deserviços – os cirurgiões-barbeiros.

O relato do  Barão da Boêmia, Leo de Roznital, feito em Portugal em 1460, descreve a tragédia demográfica em curso: ” Partimos dos Poços do Conde e cavalgamos por onde havia grande mortalidade devida a praga, tal como jamais antes eu vira. Atravessamos um mercaado, ou vila, inteiramente deserto e desolado. Não havia viv’alma. As horríveis experiências que tivemos desafiam a credulidade. Tivemos de comprar vinho e pão de pessoas doentes ou que tinham doentes em casa, e e de alojarmos com eles. Mas na maior parte das vezes, enquanto estávamos no campo, dormi com os cavalos ao relento. Em outros lugares, enquanto cavalgávamos, nada vimos a não ser céu, água e urzes”.

A assistência caritativa cristã em Portugal, na sua forma mais primitiva, teve o seu início em torno das  albergarias ou hospedarias, localizadas pelos regrinos desde o século XI. Eram comuns no Douro e  no Minho e auxiliavam os devotos de São Jaime alcançarem Santiago de Cmpostela na Espanha. Esta cidade, junto com Jerusalém,  foi o símbolo da Cristandade da Idade Média.

Essas hospedarias ofereciam abrigo e servoço médico aos devotos. Algumas delas foram transformadas em hospitais, como a Albergaria dos Mirléus, em Lisboa. Acabou por se tornar num conhecido leprosário, oficializado por D. Diniz em 1321.

A maioria dessas instituições  tinha anexo ao prédio principal alguns leitos destinados  para doentes nobres e outros para os pobres, constituindo na realidade desde os seus primórdios uma espécie de mistura de hospedaria e hospital. Eram mantidas pelas esmolas dos ricos e na quase totalidade eram administradas pelo clero de diferentes irmandades religiosas.

É muito provável que o pano de fundo das albergarias tenha sido a obtenção de vantagens pessoais e econômicas. Esta afirmação ganha suporte no fato de que D. Pedro, em 1420, escreveu ao seu irmão, D. Duarte, sugerindo a intervenção real administração das hospedarias. Esta providência foi consolidada pelas Ordenações Alfonsinas, em 1446, determinando que todos os processos sobre legados para as irmandades transmitissem nas cortes civis e não nas religiosas.

A centralização foi aumentando até culminar com a autorização papal a D, João II, em 1479, para aglutinar todos os pequenos hospitais de Lisboa em um único prédio. Todas as grandes cidades de Portugal passaram pela mesma medida através da Bula de Inocêncio VIII, em 1485. O primeiro resultado foi a criação do Hospital de Todos os Santos de Lisboa em 1492.

 

Não há comprovações de que a Santa Casa de Lisboa, fundada em 1498, tenha relação com os efeitos dessa centralização administrativa. Entretanto, uma cláusula do testamento de D.João II, elogiou a administração do Hospital da Misericórdia de Florença, como modelo para o novo Hospital de Todos os Santos de Lisboa.

Ainda existem várias qustões sem respostas relativas à fundação da Misericórdia de Lisboa.

As figuras frade Miguel  Contreiras e de dona Leonor,  viúva de D. joão II, são as personagens centrais em todos os debates sobre o aparecimento da Santa Casa de Misericódia  de Lisboa.

Esse religioso tornou-se conhecido como “pai dos pobres” em Lisboa, porque do recolhimento diário de esmolas pela cidade, ele construiu um pequeno hospital para os pobres. Ele impressionou a tal ponto, que tornou-se o confessor de dona Leonor em 1498.

Não existe até hoje a certeza da importância do frade Contreiras na formação da Misericórdia de Lisboa. Porém, ó possível que ele tenha tido algum tipo de interferência junto a corte. Esta, pr sua vez, tirou vantagens políticas do fato, já que interessa à administração a continuidade do centralismo das atividades de caridade no reino.

É uma  comprovação inequívoca que as atribuições da Santa Casa de Lisboa chegaram a tamanha importância que começou a desfrutar de várias regalias e concessões, dadas inicialmente por D. Manoel. A partir de 1500, somente os Mordomos da Irmandade da Misericórdia estavam autorizados a realizar a coleta de esmolas em Lisboa.

portugal foi particularmente castigado pelso efeitos devastadores da peste negra, com pelo menos vinte e dois surtos registrados entre 1188 e 1496. O de 1310 foi tão desesperaodr que o enterro dos mortos tornou-se um problema físico.

O compromisso de Lisboa da Irmandade tinha sete objetivos espirituais e sete corporais, que deveriam ser executados por todos os irmãos da Misericórdia.

Os espirituais:

  1. Ensinar os ignorantes
  2. Dar bom conselho
  3. Punir os transgressores com compreensão
  4. Consolar os infelizes
  5. Perdoar as injúrias recebidas
  6. Suportar as deficiências do próximo
  7. Orar a Deus pelos vivos e pelos mortos

os corporais:

  1. resgatar cativos e visitar prisioneiros
  2. Tratar os doentes

3 Vestir os nus

  1. Alimentar os famintos
  2. Dar de beber aos sedentos
  3. Abrigar os viajantes e os pobres
  4. Sepultar os mortos

A Irmandade da Misericórdia tinha na sua estrutura administrativa uma divisão entre os irmãos nobres e os irmãos pobres. A mesa Diretora era composta de doze irmãos, sendo seis de cada grupo. O provedor era sempre escolhido indiretamente entre os  irmãos nobres e tinha sempre boa posição social e de posses.

 

as Santas Casas passaram rapidamente a ser um negócio extremamente lucrativo como consequência dos inúmeros benefícios recebidos do Rei. Esta foi uma das razões que contribuiu efetivamente para que elas crescessem e se multiplicassem pelos territórios conquistados pelos portugueses, alcançando em pouco mais de cinquenta anos a Ásia, África e o Brasil.

A Misericórdia de Goa, fundada durante o governo de lopo  Soares (1515-1518) teve uma enorme importância político e era comparada a da Bahia, onde os cargos na Mesa Diretora eram disputados a ferro e fogo. O interesse dos condidatos era exclusivamente pecuniário a ponto de que alguns Provedores terem sido excomungados pelo Papa como castigo pelos vultosos roubos cometidos, como Pedro da Silva Alva, de Salvador, em 1742.

O prestígio das Santas Casas alcançou tamanha intensidade que governadores, Vice-Reis, inquisitores e ministros da justiça serviam como Provedores. É evidente que eles não estavam interessados na misericórdia dos necessitados.

Não era a toa que Goa desfrutava de político-econômica para os portugueses. Era o ponto final  de penetração no oriente. O poder eclesiático observou a importância política da Misericordia de Goa e obteve do Vice-Rei Mathias de Albuquerque, em 1591, a exclusividade da sua administração e do recolhimento dos donativos pelos jesuítas.

As Santas Casas chegaram a Macau, Ambiona, Tidor, Manila, Moçambique, Kilwa, Mafia, Penba, Zanziber, Patha, Angola, luanda, Congo, Massangano e outras que tiveram vida mais curta. Continuaram o avanço em direção ao Brasil recém-colonizado.

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AS SANTAS CASAS (II)

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Não existe muita concordância a respeito do rigor cronológico das primeiras Santas Casas que foram instaladas no Beasil. É provável que a Irmandade da Misericórdia de Santos tenha sido a pioneira em 1543, fundada por Brás Cubas. A do Rio de Janeiro já estava consolidada em 1582, quando a frota de Diogo Flores Valdes chegou com muitos doentes a bordo.

O destaque político das Santas Casas de Misericórdia da Ásia, África e no Brasil é reconhecido por todos. A Igreja teve importante papel no conjunto para formar, manter e consolidar estas instituições de assistência. Lá, ela estendia o seu poder temporal e aumentav a sua riqueza, sempre acobertada pelo imaginário da caridade cristã.

No Brasil, elas alcançaram dezenas de cidades até o final do século XIX. Sem obedecer a cronologia, foram fundadas em Santos, Salvador, Olinda, Recife, Rio de Janeiro, Ilhéus, Sergipe, Espírito Santo, Itamaracá, Goiania, Igaraçu, João Pessoa, Ouro Preto, São Paulo, Recife, São Luiz do Maranhão, Belém, Campos, São João Del Rei, Diamantina, Fortaleza, Natal, Maceió, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre e Manaus.

A trajetória da disseminação das Santas Casas nas terras conquistadas pelos portugueses é uma pequena parcela da comprovação de como se comportava a máquina administrativa da metrópole.

As Misericórdias, as Câmaras Municipais e os tribunais reproduziam os privilégios e as regras das   suas congêneres portuguesas com o empreguinismo dominando as relações políticas. Estas instituições eram sempre dirigidas por elementos do clero ou por pessoas vinculadas ao poder real.

O Relatório da Santa Casa de Misericórdia de Belém, de 24 de fevereiro de 1915 é absolutamente claro a esse respeito. Na sua aprsentação está escrito: ” Temos a satisfação, prezados consócios, de assignalar mais um aniversário da nossa Benemérita instituição de Caridade, que completa hoje 265 anos de existência, pois foi justamente a 24 de fevereiro de 1650 que ela começou a dar os seus primeiros passos na senda da elevada missão que ainda hoje exerce, adotando então, como lei orgânica, o  compromisso de 15 de fevereiro de 1619, pelo qual se rgulava o Hospital de Misericórdia de Lisboa, no caráter de Irmandade”.

Todas as Santas Casas já nasceram doentes e moribundas. Elas brotaram do imaginário da caridade cristã, sem levar em consideração que  cabe ao Estado o ônus da promoção da saúde do cidadão.

A análise dos registros disponíveis mostra que todas elas sempre foram deficitárias e deficientes. Em nenhum momento houve inteiração dos reais problemas de saúde das populações com os objetivos declarados das Irmandades da Misericórdia. Foi isto sim, como consequência destes objetivos que elas conseguiram, em alguns casos, acumular vasto patrimônio imobiliário, como a do Rio de janeiro. Até hoje ninguém pode ser enterrado naquela cidade sem pagar para a Santa Casa porque a irmandade é a dona de todos os cemitérios.

 

A situação hospitalar em manaus na segunda metade do século XIX está claramente descrita no relatório do Tenete Coronel José Clarindo de Queiroz, apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de 1880: ” A falta de um estabelecimento de caridade, onde sejam tratados convenientemente os indigentes, principalmente do sexo feminino, que não podem ser admitidas na Enfermaria Militar, onde provisoriamente são recolhidos os do sexo masculino, torna de  urgência o prosseguimento das obras do Hospital da Santa Casa e a inauguração pelo menos de uma  enermaria para mulheres; no intuito, pis, de atender a essa palpitante necessidade, garante retirar do edifício da Santa Casa a ala esquerda do 11ª batalhão de Infantaria e a Guarda Policial (…). Parecendo-me conveniente a creação de uma irmandade, que, com o auxílio que fosse junto à Província, envarrega-se da administração do estabelecimento, nomeei duas comissões, uma para tratar da sua organização e agenciar donativos para formar o seu patrimônio, e ouotra para formular o compromisso que deve regulá-la (…).”

mais de cem anos depois da comprovação da ineficiência das Santas Casas como instituições para a promoção da saúde coletiva e quatro séculos após o aparecimento da primeira em Lisboa, o presidente da Província do Amazonas Tenente Coronel José Clarindo de Queiroz instalou a Santa Casa de Misericórdia de Manaus no dia 16 de maio de 1880.

A ata de inauguração da Santa Casa de Manaus é também esclarecedora de como continuou sobrevivendo, já no final do século XIX, o mesmo ideário da Misericórdia do século XIV: ” Aos desesseis dias do mês de maio do Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oitenta, pelas dez horas do dia, noedifício destinado ao Hospital da Caridade, achando-se presentes o Excelentíssimo Senhor Presidente da Província Tenente Coronel José Clarindo de Queiroz, Provedor doutor Feliciano Antônio Benjamin e os mesários, abaixo assinados as Autoridades e pessoas gradas da Capital, depois de celebrada a missa solene pelo muito Rvmo. Vigário Geral da Província Padre Raimundo Amâncio de Miranda, instalou-se definitivamente a Santa Casa de Misericórdia, sob os auspícios de Nossa senhora d’Assunçaõ. Em virtude do que se lavrou a presente ata (…).

A mesa diretora era composta de dezoito pessoas que incluia o Provedor, Tesoureiro-esmoler, Procurador-geral, Mordomos e substitutos.

Apesar desse número de pessoas empenhadas em praticar a caridade cristã, houve denúncia de graves irregularidades administrativas. foi nomeada uma comissão de sindicância no dia 25 de julho de 1889 que comprovou o roubo dos donativos. Nada aconteceu aos competentes da Mesa Diretora.

Nesse mesmo ano de 1889, o Relatório apresentado ao Governador do  Estaado do Amazonas, Coronel José Cardoso Ramalho Júnior pelo Secretário de Estado Encarregado dos negócios da Indústria, deixa claro  a inviabilidade da Santa Casa já naquela época: ” Foi organizado o projeto do Hospital da Caridade, outra necessidade por deficiência da atual Santa Casa de Misericórdia e por sua defeituosa situação em um local muito acanhado e no centro da cidade.

Por duas vezes abrio-se concorrência pública e por duas vezes foi anulada porque a elevação de preços era de tal ordem, que impossível se tornava aceitar qualquer das propostas.

Para situação d’este hospital forão escolhidos e adquiridos dous quarteirões abrangidos pela rua Mejor Gabriel e Boulevard Amazonas, rua Mocó e Av. Ayrão, compreendendo todas as benfeitorias existentes”.

Os alicerces do Hospital da Caridade foram parcialmente construídos no lugar do atual hospital Universitário getúlio Vargas e definitivamente abandonados meses depois. Algumas semanas atrás, nas escavações para a ampliação da cozinha do Hospital universitário, estes alicerces foram expostos. A obra foi interrompida durante algum tempo para que todos tivessem certeza que não tinham qualquer relação com as estrutura do atual Hospital. os trabalhos já proseguiram e o trator não deixou vestígio do hospital da Caridade.

 

O relatório da Santa Casa de Manaus de 1923 mostra que o mecanismo de arrecadação era exatamente o mesmo utilizado no século XIV em Portugal, isto é, a concessão de auxílios de caridade e a contínua dificuldade financeira. No item  impostos de Caridade diz: “A Santa Casa continua a gozar dos vários auxílios provenientes dos impostos de caridade, encontrando nesta fonte de receita uma contribuição valiosa que muito tem influido na atenuação das suas dificuldades financeiras”.

A última alteração estatutária na Santa Casa de manaus foi feita em 17 de dezembro de 1921 pelo Governador do estado do Amazonas Desembargador César Rego Couotinho através do decreto nº 1124. A essência fundamental continuou exatamente a mesma dos quatro séculos anteriores. No Artigo 1º dos novos  Estatutos reza: “A Santa Casa de Misericórdia de Manuas é uma associaçao civil e humanitária que se propõe a exercer a caridade entre os seus membros e prestar seus serviços à humanidade sofredora especialmente aos enfermos pobres; tendo a sua sede nesta capital”.

Com as transformações ocorridas no Brasil  nas últimas décadas os problemas das santas Casas tornaram-se agudos. A partir de 1964 com a centralização administrativa presidenciária no recolhimento das contribuições compulsórias e da nova orientação na prestação de serviços  não tinha mais espaço para a  caridade cristã das Misericórdias. Desta forma, elas foram incorporadas como prestadores de serviço para a previdência Social e pouco a pouco deixaram de fazer os atendimentos dos indigentes.

Alguns anos atrás os amazonenses enguliram goela abaixo uma intensa campanha publicitária com chamada do tipo A santa Casa não pode morrer e Salve a Santa Casa, com o sorteio de carros e outros prêmios. Milhares de cruzados foram arrecadados e a situação não foi modificada em nada. E o que é mais desalentador: nenhuma prestação de contas foi tornada pública.

enquanto o estado brasileiro não consolidar a certeza cristalina de que é dele a obrigação de  promover a saúde coletiva, como um direito primário e alienável do cidadão, as Santas Casas continuarão a existir como cicratrizes da frágil associação da prática médica com a caridade cristã.

 

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