TEORIZANDO OS AVANÇOS DA MEDICINA: OS CORTES EPISTEMOLÓGICOS

 

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

MEDICINAS PRÉ-HIPOCRÁTICAS

 

  1. MEDICINA ASSÍRIO-BABILÔNICA

Com a consolidação das mudanças no processo de sedentarismo, no Neolítico, importantes modificações se processaram nos grupos sociais que habitavam a Mesopotâmia. Essas sociedades iriam absorver as experiências acumuladas tanto as dos ancestrais mais distantes quanto as da espécie Homo sapiens.

       Nessa fase, teve início a modificação da economia produtora a nível de subsistência coletiva para uma concreta divisão de trabalho com o aparecimento de excedentes de produção e trocas comerciais.

       As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. Surgiu a propriedade privada, responsável, entre muitas outras mudanças, pelo assentamento duradouro dos grupos humanos ligados por vínculos de família, consanguinidades e interesses comuns.

O aparecimento dos aldeamentos estratificados, voltados à guarda do território ocupado, segui-se como resposta imediata à nova organização social, para sobreviver aos conflitos de interesses internos e externos.

       As cidades foram sendo formadas, nas margens dos rios e lagos férteis, como produto dessa transformação e dariam início ao aparecimento das civilizações regionais. Entre elas, destacaram-se: assírio-babilônica e a egípcia. Essas civilizações-culturas regionais formaram e assimilaram, ao longo dos processos das consolidações, diferentes formas de administrar, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista.

       As contínuas guerras entre grupos rivais ao mesmo tempo em que renovavam as lideranças guerreiras, transformavam o poder com o butim. Os territórios ampliados incorporavam os escravos detentores de saberes, em especial, os curadores, que interessavam a organização e à ordem social dominante.

       Os avanços da transformação acelerada, na natureza circundantes alcançaram níveis inimagináveis. Os metais foram fundidos, surgiu o cobre, novos instrumentos para arar a terra, aumentando a quantidade das colheitas. Surgiu o barco à vela e o uso corriqueiro do ferro também foram fatos que contribuíram para fomentar as trocas dos excedentes da produção e a especialização das habilidades pessoais.

       Nessa etapa, o corpo humano morte foi manuseado nos rituais mítico-religiosos e no esforço para conservá-lo após a morte, especialmente, no Egito, onde ocorreu espetacular especialização de pessoas para conservar os corpos dos mortos, lógico pressupormos na esperança do renascimento. Os registros evidenciaram que quando mais rico fosse o morto, melhor e mais duradouro seria o embalsamamento. Sob esse registro, os corpos dos faraós receberam a melhor tecnologia e material.

       É nesse contexto já existindo a distinção entre o médico e o cirurgião, a atividade médica deveria ser intensa e reconhecida nos vários estratos sociais, mas também gerando controvérsias e disputas envolvendo interesses diversos. Como o poder dominante, historicamente, no passado distante e na atualidade, proibi muito mais as atitudes compreendidas como malefícios e em quantidade suficiente para gerar atrito coletivo capaz interferir com a ordem pública, só assim é possível compreender o destaque dado aos direitos, deveres e sanções aplicáveis aos médicos contidos no Código do Rei Hammurabi (1728-1688 a C.), da Babilônia:

       &218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos) uma incisão difícil com uma faca de bronze e causou a morte do awilum ou abriu o nakkaptum (arco acima da sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão.

       &219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum ( intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto.

       &220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará metade do seu preço.

       &221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico cinco siclos (cerca de quarenta gramas) de prata.

       &222 – Se foi o filho de um muskenum: dará três siclos (cerca de vinte e quatro gramas) de prata.

       &223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono do escravo dará dois siclos (cerca de dezesseis gramas) de prata.

       Com isto o Código de Hamurabi formou jurisprudência com dois pontos cruciais da ordem médica:

– As sanções punitivas que os médicos deveriam receber estavam atadas a comprovação da imprudência, da imperícia e da negligência;

– Os honorários do serviço prestado especificado de acordo com o estamento social do doente.

Existiam outros importantes fatores estruturados nas crenças e ideias religiosas influenciando as práticas de curas assírio-babilônicas. De modo geral, consideram as doenças não traumáticas como castigo do deus Shamash que presidia a justiça. Daí provém, certamente, o maior prestígio dos médicos em relação aos cirurgiões que atuavam nas conseqüências dos acidentes e feridas de guerra, enquanto que os médicos exerciam as suas atividades com doentes portadores de males desconhecidos, sempre evocando a ajuda dos deuses curadores e exorcizando os deuses provocadores de doenças.

Analisando em conjunto o conteúdo disciplinador do Código de Hammurabi e a relação de dependência entre o cirurgião e o médico, podemos concluir que a insatisfação coletiva recaia muito mais sobre a atividade do cirurgião. Este fato esteve, certamente, atado à gravidade dos insucessos da prática cirúrgica.

O sangue era considerado o elemento responsável pelas funções vitais. É possível que a visão do fígado nos animais abatidos, o mais sanguíneo dos órgãos, tenha exercido alguma influência para a associação do parênquima hepático com o sangue. Num segundo instante, o adivinho, o curador, passou a utilizar o exame do fígado, eviscerado do animal sacrificado, normalmente o carneiro, para adivinhar o futuro da saúde e da doença, da vida e da morte. Como a multiplicidade da forma macroscópica da natureza, em especial, nesse caso, o fígado do carneiro, é incomensurável, seguiram-se as regras e padrões para uniformizar as formas dos parênquimas hepáticos e sobre elas, na linguagem mágica das relações sociais, estabelecer o presságio sob os augúrios dos deuses e das deusas reconhecidos.

O poder da adivinhação como preventivo dos malefícios alcançou não só o povo assírio-babilônico, mas também outros que estiveram sob a mesma influência: “Com efeito, o rei da Babilônia se deteve na encruzilhada, no começo dos dois caminhos, a fim de recorrer à sorte. Agitou as flechas, consultou os serafins e observou o fígado.” ( Ez 21, 26).

A linguagem mágico-religiosa ligada à natureza circundante também prosperou na visão do firmamento. As sociedades que prosperaram no Crescente Fértil construíram saberes de astronomia, ainda presentes na atualidade. Os planetas, os eclipses, o calendário e a celebração dos equinócios foram assinalados com perfeição. Muitos deuses foram materializados em sintonia com o céu percebido e inalcançável. A astrologia sofreu muita influência na interpretação mítica dos movimentos dos astros. Somente o homem especial, representante da divindade – o astrólogo, o adivinho, o sacerdote representante da divindade – saberia interpretar a vontade e o capricho dos deuses partir do curso dos astros, da direção dos ventos e do sonho, também visível no fígado eviscerados dos carneiros sacrificados.

Entre os muitos deuses curadores do universo mítico babilônico, destacaram-se:

– Sin, o deus da lua, um dos mais antigos do panteão, ligado ao crescimento das plantas medicinais;

– Istar, a deusa protetora da sexualidade, da libido;

– Nabu, o deus benfeitor das ciências e da arte de curar;

– Marduk, muito poderoso, o grande curador de doenças;

– Ninchursag, a deusa travestida de oito representações diferentes, cada uma especializada em curar uma doença temida.

– Ningishzida, um dos mais importantes taumaturgos, simbolizado por dois dragões coroados e duas serpentes entrelaçadas num bastão.

As divindades boas e ruins eram materializadas em figuras mais ou menos horrendas de acordo com o poder sobre o bem e o mal. O deus que causava a icterícia, tornando o corpo amarelo – Axaxazu Asakku – era representado na figura horrenda de um ser com asas, chifres e mãos em forma de garras.

Entre os deuses maus relacionados às doenças mais temidas que se manifestavam nos segmentos do corpo:

– Ashakku, febre;

– Utukku, pescoço;

– Alû, tórax;

– Ekimmu, abdômen;

– Gallu, mão;

– Ilu, pé;

Entre as substâncias, retiradas de muitos vegetais abundantes, nas terras férteis da Mesopotâmia, incorporadas no uso médico fruto do conhecimento historicamente acumulado, destacam-se: a beladona, o anis, o óleo de rícino, a romã, o gengibre, a hortelã e a papoula. Ao lado da medicina empírica utilizadora dos recursos da natureza, as práticas divinatórias alcançavam ricos e pobres, senhores e escravos.

O processo de formação dos aglomerados urbanos forçou importantes medidas sanitárias beneficiando muito mais os ricos e membros do poder dominante. As escavações arqueológicas mostrando as redes de esgotos e de abastecimento de água potável, silos e harmonia nos traçados das ruas e casas.

Algumas doenças receberam mais atenção, certamente as mais frequentes e que geraram conflitos com o poder político. Os sintomas e sinais da tuberculose foram descritos com incrível precisão em várias tábuas de escrita cuneiforme: “Muita tosse acompanhada de sangue abundante, respiração difícil com som de flauta, pele fria com os pés quentes, muito suor e o coração inquieto.”

A medicina babilônica e médicos com diversas funções e saberes, completamente identificada como especialidade social, participava na intermediação dos conflitos sociais: por meio dos pareceres dos médicos, os leprosos eram banidos e anulavam os contratos de compra e venda de escravos.

  1. MEDICINA EGÍPCIA

A prática médica egípcia antiga, infelizmente, somente diz respeito aos estamentos dominantes. Não se tem notícia da utilizada pelos escravos, numerosos em relação à população egípcia e oriundos de várias regiões do em torno.

Como as outras civilizações-culturas regionais florescentes ao lado dos rios férteis, a egípcia se desenvolveu nas margens piscosas do rio Nilo, de onde retiravam o sustento da população.

A mitologia sofreu constantes modificações de acordo com as épocas e os espaços. Os deuses, deusas e reis eram, essencialmente, curadores e protetores contra o mal. Os sacerdotes representavam os intermediários do poder divino e a eles cabia a arte de curar e adivinhar.

Entre os principais deusas e deusas taumaturgas, destacaram-se:

– Thoth, um dos mais antigos do panteão, curou Hórus da picada do escorpião e as feridas causadas pela luta entre Hórus e Set;

– Imnhotep, filho de Ptah, representado por incontáveis estatuetas de bronze, achadas nas escavações arqueológicas de vários períodos políticos do Egito antigo;

– Isis, a curadora de Ra, possuía o poder de ressuscitar os mortos;

– Sechmet, a protetora das doenças das mulheres;

– Zoser, rei da terceira dinastia, utilizava nas correspondências a designação Sa ou aquele que cura e, nas inscrições do templo, o título de médico divino.

Por outro lado, apesar da medicina egípcia ter sido incompetente para estabelecer um sistema médico, acumulou impressionantes avanços no trato empírico da saúde e da doença. Diferente da tradição assírio-babilônica que assinalou o sangue com o maior valor da vida, os egípcios consideravam a respiração como a função mais importante do corpo. Enfim, o sangue foi substituído pelo ar como a substância vital.

Sem abandonar a força do sangue, O Livro dos Mortos descreve o nascimento dos deuses Hu e Lia a partir do sangue saído do pênis do deus-sol Ra.

A origem das doenças estava ligada:

– Vento;

– Parasitas da pele e dos intestinos;

– Alimentos;

A estreita relação entre doença e os parasitas nasceu, provavelmente, a partir da grande quantidade de infestação parasitária dos que moravam e trabalhavam nas várzeas do Nilo. O conhecimento historicamente acumulado interligou os vermes saindo pela boca ou pelo anus com a origem das doenças dos indivíduos debilitados e incapazes de trabalhar.

Os principais pontos articulados da medicina empírica do Egito antigo estão contidos nos papiros médicos de Berlin, Carlsberg, Chester Beatty, Ebers, Edwin Smith, Hearst, Kahoun, Londres e Ramesseum.

Os mais importantes e melhores conservados, o papiro de Ebers, escrito entre 1553 e 1550 a. C., e o de Edwin Smith, produzido em torno do ano 1550 a. C., encontrados em Tebas, contém orientações e tratamento específicos:

  1. Papiro de Ebers

 Após a longa introdução dedicada aos deuses curadores, compilou os saberes médicos e sobre os medicamentos indicados para tratamento:

– Aumentar o apetite;

– Melhorar a função intestinal e a digestão;

– Dores reumáticas;

– Paralisia dos membros;

– Estados gripais;

– Doenças dos olhos;

– Doenças do ouvido;

– Doenças do estômago;

– Doenças do fígado;

– Obstruções intestinais;

– Doenças Pulmonares;

– Mordeduras de animais;

– Queimaduras;

– Cuidados com a pele e o cabelo;

– Poliúria;

– Doenças dos dedos e das mãos;

– Cuidados com os dentes e a língua;

– Doenças ginecológicas;

– Abcessos e tumores;

– Doenças do coração;

– Descrição precisa da hérnia inguinal, angina do peito, gastrite, conjuntivite e otites entre outras.

  1. Papiro de Edwin Smith

Uma parte significativa é dedicada ao diagnóstico, tratamento e prognóstico dos traumatismos. As descrições pormenorizadas incluem o quadro clínico dos traumas faciais, pescoço, clavícula, úmero, esterno, tórax, costelas, ombro, coluna lombar.

Os autores foram fascinantes ao não deixar dúvidas quanto ao valor na prática médica:

– Anatomia cirúrgica;

– Cautério;

– Curativos;

– Redução e imobilização das fraturas;

– Sinais clínicos distinguindo a fratura da luxação;

– Importância da crepitação óssea;

– Luxação da mandíbula;

– Paralisia dos membros secundária ao trauma da coluna e do crânio;

– Prognóstico ligado aos recursos disponíveis para beneficiar o doente.

A especialização dos conhecimentos médicos do Egito é fato marcante. O mais antigo médico conhecido, Hesy-Ra, exercia a odontologia como especialidade nos anos 3000 a.C. Os registros dos papiros também citam oftalmologistas e ginecologistas.

Heródoto refere o início da prática da circuncisão no Egito: “É óbvio, realmente, que os côlquios são de origem egípcia, e eu mesmo fiz essa observação antes de ouvi-la de outros…os côlquios, os egípcios e os etíopes são os únicos povos que desde sua origem praticam a circuncisão. Os fenícios e os sírios da Palestina reconhecem que aprenderam esse costume com os egípcios…”

A prática da circuncisão, contudo, não era obrigatória. Existem algumas ilustrações de como realizar essa cirurgia. A mais antiga está na tumba de Ankh-ma-Hor, descrevendo-a como ato religioso realizado por um sacerdote especializado.

O embalsamamento está intimamente ligado à crença egípcia do renascimento após a morte. O corpo enterrado deveria estar conservado e com a cabeça voltada ao Oeste para poder renascer na outra vida.

Não existem registros precisos do início do embalsamamento. No período pré-histórico, os egípcios enterravam os mortos sem qualquer tipo de tratamento. A especial qualidade do terreno desértico, quente e seco, conservou intactos muitos corpos. Não é improvável que a observação desses mortos, exumados muitos anos após o óbito, tenha contribuído no aperfeiçoamento das técnicas do embalsamamento com o objetivo de alcançar melhores resultados que favoreceriam o renascimento.

Os mais antigos registros de mumificação datam de 3.400 a. C. Trata-se de Hetep-Heres, mãe de Keops, e mostram os membros desarticulados antes de terem sido envoltas com as bandagens

Modificações importantes ocorreram nos procedimentos para embalsamar os mortos, no Egito antigo, antes de existir a codificação, elaborada no Novo Império. Nesta época, o trato do cadáver obedecia as normas mais ou menos rígidas de acordo com as posses financeiras e a importância social do morto. Em alguns casos, os embalsamamentos duravam sessenta dias:

– O corpo era transportado à Casa dos Deuses;

– O conteúdo craniano era retirado através dos orifícios naturais;

– A evisceração abdominal se fazia com uma longa incisão no flanco para a retirada inteira dos órgãos;

– O coração permanecia no lugar;

– As vísceras liberadas recebiam cuidados especiais e eram depositadas em recipientes adequados;

– O corpo era criteriosamente desidrato, submetido às lavagens com óleos e essências e envolto com tiras de pano.

  1. MEDICINA HEBRAICA ANTIGA

A análise do texto, do contexto e das mensagens do Antigo Testamento constitui uma das mais importantes fontes de informações sobre:

– A organização social, política, religiosa do povo de Israel;

– A ordem e a desordem predominante na saúde e na doença nos tempos bíblicos.

A maior parte da vida da sociedade hebraica girava em função dos ensinamentos contidos no Livro Sagrado. Em relação aos preceitos que contribuem para evitar as doenças, podem ser encontrados inúmeras recomendações que sedimentaram a Medicina hebraica antiga.

Os estudos lingüísticos desenvolvidos com o maior acesso à escrita cuneiforme, utilizada pela gente letrada assírio-babilônica, acentuam a profunda interligação entre os hebreus e os povos da Mesopotâmia.

As práticas médicas hebraicas na antigüidade tinham normas bem definidas quanto as doenças conhecidas e as temidas. A legislação social preocupava-se, claramente, com a profilaxia das patologias cujos tratamentos eram de competência duvidosa.

As normas sociais ancoradas em direitos e deveres religiosos que envolviam as primitivas relações médico-míticas, posteriormente incorporadas ao Antigo Testamento.

É provável que esses ensinamentos, de incrível objetividade e coerência, foram incorporados ao cotidiano do povo hebreu a partir da confluência de dois fatores:

– Médico-mítico:

De ordem religiosa, está inserido no incrível poder de convencimento dos líderes atrelado à submissão pelo medo do castigo divino aos rebeldes do sistema, uma das características organizacionais da prática monoteísta.

– Utilidade social:

Demonstrada a partir dos efeitos benéficos nos corpos de quem praticava. É provável que os excluídos fossem as maiores vítimas das patologias temidas.

Existem várias dúvidas quanto os fluxos migratórios hebreus, porém não existe questão a respeito do acádio-egípcio que conduziu os primitivos semitas a Babilônia, em torno do ano 3.000 a.C.

Segundo a tradição do Antigo Testamento, a origem aramaica dos patriarcas de Israel vieram da Babilônia para a Palestina, descrita em Ge 24, 10 : “O servo tomou dez camelos de seu senhor e, levando consigo de tudo que o seu senhor tinha de bom, pôs-se a caminho para Aram Naaraim, para a cidade de Necor.”

O lugar referido Aram Naaraim significa Aram dos Rios, isto é, a Alta Mesopotâmia, onde se encontra Hara, a residência dos pais de Abraão.

No começo da história de Israel não existia um grupo étnico homogêneo. Os membros pertenciam a tribos diferentes que acabaram miscigenados, provavelmente, motivados pelo impulso da sobrevivência.

A história do povo de Israel pode ter começado nas ondas migratórias semíticas saídas da Síria e da Arábia em direção ao Crescente Fértil. Ë razoável supor que os judeus já detinham, nesta época, as organizações social e política necessárias para controlar as principais contradições internas e adapta-las às normas dos conquistadores. Sem a posse do território e sem o poder militar de dissuasão, foi graças a essa capacidade adaptável, o povo judeu sobreviveu à dominação, durante o longo cativeiro babilônico, e conservou a etnia.

É impossível não pensar que os cuidados com os corpos e com o comportamento coletivo, desenvolvidos nas populações hebraicas, não tenham sofrido grande influência do ritmo social das sociedades escravistas dominantes dos primeiros milênios a. C.

Os judeus do cativeiro babilônico, pelo menos os pertencentes aos estamentos privilegiados, letrados e artífices renomados, houve a absoluta premência de seguir as regras sociais do conquistador marcadas na relação compulsória da doença vinculada ao pecado. Desta forma, o sistema divinatório mantinha estreito laço com um Deus poderoso e punitivo.

A partir desse vínculo de poder e submissão entre o ser-tempo e o ser-não-tempo, o povo de Israel montou a base disciplinar nos duros padrões médico-míticas, que serviram para manter o controle social nas etapas migratórias.

Porém, não foi só a medicina que sofreu a interferência da compreensão mítica da realidade. Encontra-se marcas profundas desse procedimento das normas disciplinares no luto, na alimentação, no vestuário e na sexualidade.

As instruções punitivas bíblicas, provavelmente, muitas oriundas dos tempos ágrafos, só existiram em razão dos conflitos operados a partir da grande freqüência das infrações sociais.

Entre os muitos modelos de exclusão social médico-mítica que nortearam, durante séculos, os cuidados com a saúde, destacam-se:

– Doença sexualmente transmissível:

Lv 15, 1-5: “Iahweh falou a Moisés e a Aarão e disse: Falei aos filhos de Israel e lhes disse: Quando um homem tem um fluxo que sai do seu corpo tal fluxo é impuro. Enquanto tiver o fluxo, a sua impureza consistirá no seguinte: Quer a sua carne deixe sair o fluxo, quer o retenha é impuro. Todo o leito em que tal se deitar ficará impuro e todo móvel onde se assentar ficará impuro. Aquele que tocar o seu leito deverá lavar as próprias vestes, banhar-se em água, e ficará impuro até a tarde.”

– Perigos da consanguinidade e do incesto:

Lv 18:6-18 – “Nenhum de vós se aproximará de sua parenta próxima para descobrir a sua nudez.”

E proíbe a relação carnal com a própria mãe, irmã, filha, neta, sobrinha e tia.

– Bestialidade:

Lv 18:23 – “Não de deitarás com animal algum; tornar-te-ias impuro. A mulher não se entregará a um animal para se ajuntar com ele. Isto é uma impureza.”

Lv 20: 15-16: – “O homem que se deitar com um animal deverá morrer, e matareis o animal. A mulher que se aproximar de um animal qualquer para se unir a ele, será morta, assim como o animal.”

– Sexo durante a menstruação:

 Lv 15:25: “Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue e que seja fluxo de sangue de seu corpo, permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras. Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura; todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro.”

É possível estabelecer, pelo menos, uma corrente contraditória de ordem e desordem, vinda como onda retardatária do passado muito distante, das primitivas relações do homem com o animal, empurrando a menstruação na direção da impureza bíblica: contrapondo-se ao menstruo, o sangue quente que coagula sempre recebeu importância sagrada como a fonte da vida e do renascimento após a morte.

O simbolismo dessa relação está contido nos inúmeros esqueletos humanos pré-históricos que foram propositalmente exumados certo tempo após a morte e após terem sido pintados com ocra vermelha, foram enterrados com a cabeça do morto voltada para o nascente.

Lv 17,13-14: Qualquer pessoa, filho de Israel ou estrangeiro residente entre vós, que caçar um animal ou ave que é permitido comer, deverá derramar o seu sangue e recobri-lo com terra. Pois a vida de toda a carne é o sangue, e eu disse aos filhos de Israel: não comereis o sangue de carne alguma, pois a vida de toda a carne é o sangue e todo aquele que o comer será exterminado.”

As arcaicas relações do homem com o animal, predominantes no universo mítico dos nossos ancestrais caçadores-coletores, foram modificadas pelo sedentarismo da agricultura regida pelo excedente de produção. A ordem religiosa do mundo animal foi substituída pela solidariedade mística entre o homem e o vegetal. Como resultados das novas adaptações sociais a terra e o esperma deslocaram o osso e o sangue.

– Proibição de certos alimentos:

A clareza dos interditos de algumas comidas, no Antigo Testamento, excede em muito os limites com a qualidade da alimentação em si mesma. É possível que estivessem relacionadas com outras questões sociais da sobrevivência do grupo.

No Levítico 11: 1-29 detalha os nomes e os motivos dos muitos ani-mais que não deveriam ser ingeridos. Alguns deles é possível estabelecer associações imediatas, como o porco com os parasitas intestinais e o camelo com a utilidade do transporte. Porém, fica difícil explicar a proibição de comer o coelho a lebre e o peixe sem escama.

– O medo da lepra:

A distinção morfológica da lepra de outras doenças da pele no Levítico 13:A 1-8 a B1-17 acrescidos dos cuidados para isolar ou não o enfermo retrata muito bem o quanto essa doença era temida:

Lv 13: B1-18: “Quando aparecer em um homem uma enfermidade do gênero da lepra, será levado ao sacerdote. O sacerdote o examinará e se constatar sobre a pele um tumor esbranquiçado, pêlos que se tornaram brancos e o aparecimento de uma úlcera, é lepra inveterada sobre a pele. O sacerdote o declarará impuro. Não o isolará, pois que, sem dúvida alguma, está impuro.”

Por outro lado, a prática da adivinhação e da cura milagrosa, do mesmo modo que entre os egípcios e assírio-babilônicos, inundou o Antigo Testamento. A crença no poder de homens especiais, possuidores do dom, especialmente escolhidos pela divindade, com a capacidade de curar ou causar a doença e de prever ou determinar os infortúnios coletivos, marcou a vida de muitos líderes de Israel.

Ex 9: 8-9 – Disse Iahweh a Moisés e Aarão: “Apanhai mãos cheias de cinza de forno, e Moisés a lance para o ar, diante dos olhos de faraó. Ela se converterá em pó fino sobre a terra do Egito e provocará, nos homens e nos animais, tumores que se arrebentarão em úlceras, por toda a terra do Egito.”

– Circuncisão

A prática médico-mítica da circuncisão pode estar também inse-rida nas primitivas relação do homem com o animal através do sangue para caracterizar um rito de maioridade do de iniciação social.

A circuncisão era praticada por judeus pertencentes a diversas tribos. Existem duas referências no Antigo Testamento bem significativas a esse respeito.

– A primeira marca com sangue na carne a aliança e a submissão do homem ao Deus único: Ge 17: 9-14 – “Disse mais Deus a Abraão: Quanto a ti, guardarás a minha aliança, tu e atua descendência depois de ti, nas suas gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti: Todo macho entre vós será circuncidado. Circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal da aliança entre mim e vós. Quando completarem oito dias, todos os machos serão circuncidados, nas vossas gerações, tanto o nascido em casa, como o comprado por dinheiro a qualquer estrangeiro, que não for da tua linhagem. Com efeito será circuncidado o nascido em tua casa, e o comprado por teu dinheiro. Assim estará a minha aliança na vossa carne como aliança perpétua. O incircunciso, cuja carne do prepúcio não for circuncidada, será extirpado do seu povo; violou a minha aliança.”

– A segunda seleciona a entrada no grupo social a partir da recusa de casamento com homem sem circuncisão: Ge 34-14 ; “Não podemos fazer isso, dar a nossa irmã a um homem incircunciso. Isso seria uma vergonha para nós.”

No intervalo de tempo que se seguiu entre o martírio, na Babilônia, e a segunda pilhagem do templo de Salomão, realizada por ordem de Roma, no século I d. C., os judeus fundaram muitas escolas que responderam pela transmissão das tradições religiosas e médico-míticas.

O povo de Israel começou, pela segunda vez, a longa viagem em direção das terras distantes e a gradativa absorção de partes da cultura de muitos povos. É possível que este fato tenha contribuído para a melhor compilação do Talmud, estruturado a partir de inúmeras funções. Uma delas, talvez a mais importante, tenha sido evitar o esquecimento da herança cultural do povo de Israel, acumulado em alguns milhares de anos de lutas.

É possível que desde a primeira destruição do templo de Salomão, no ano 586 a. C., seguido do aprisionamento babilônico, o Talmud tenha sido utilizado como peça fundamental na educação social e religiosidade do povo de Israel.

O conjunto de informações sobre os cuidados médico-míticos do Antigo Testamento é relativamente pequeno se comparado com o existente no Talmud. Nesse período, a prática médica dominante mas comunidades judias ficou conhecida como medicina talmúdica.

A palavra hebraica talmud significa acostumar-se, aprender. Posteriormente, incorporou o sentido de estudo, instrução, ciência e para caracterizar o halakot ou direito consuetudinário ao lado da torah formada pela tradição oral e jurisprudência.

O Talmud está escrito em hebraico, aramaico, grego e latim. Divide-se em seis partes:

– Zeraim (Sementes) que trata da agricultura;

– Moed (Festas) abrange o laser, a solenidade e o jejum;

– Nashim (Mulheres) estabelece as leis do noivado, casamento e divórcio;

– Nezikim (Prejuízos) expõe a jurisprudência cível e penal;

– Kodashim (Coisas Santas) ensina o abate dos animais e os sacrifícios rituais;

– Toharoth (Purificações) estabelece as regras para a purificação.

Existem dois Talmudes, frutos dos interesses diversos que moviam as populações judias da Babilônia e da Palestina.

– Talmud da Babilônia (Talmud Bauli) contém os ensinamentos das escolas de Nehardea, Sura, Mahuza e Pumpedita. Foi redigido entre os anos 352-427 a. C. e completado no século VI.

– Talmud de Jerusalém (Talmud Yeruchalmi) recebeu a compilação maior, entre os anos 199 a 279 a. C., nas cidades palestinas de Seráfis, Tiberíades e Cesarea. Está escrito em hebraico e aramaico.

Os saberes médicos dois Talmudes foram citados nas obras de Galeno, Celso e Plínio. Não há dúvida de que os estudantes das escolas talmúdicas terem praticado uma medicina competente. Uma das comprovações é carta do Imperador Antônio solicitando um médico entre os alunos do rabino Yehuda Hanasi para tratar um escravo muito doente.

Os Talmudes estão repletos de cuidados com a saúde pessoal e coletiva tanto em nível curativo quanto profilático. Entre milhares de recomendações, três são particularmente atuais:

Um médico que trabalha sem cobrar, não vale nada (Baba cam 80).

A legalidade do honorário médico estava presente, de modo explícito, na sociedade assírio-babilônia, que legislou o pagamento de acordo com o estamento social do doente. Esta característica da profissão foi também absorvida na sociedade grega e na romana dos primeiros séculos. As dúvidas quanto ao mérito dessa questão iniciaram-se com a prévia cristã que associou o ato de curar à caridade benemérita.

Uma pessoa não deve permitir que seja tratada por médico proveniente de terras distantes, pois este não conhece suficientemente as características do meio ambiente e as influências climáticas (Baba cam 85 a);

A medicina praticada na Escola de Kós, na Grécia antiga, igualmente, preconizava a necessidade do doente conhecer a natureza do médico.

Não se devem fazer ensaios com nenhum medicamento, nenhuma prescrição ou conjuro do Talmud, sem que se conheça o seu verdadeiro uso ( Yalcut).

A atualidade desse interdito é indiscutível. Diz respeito as competências de intenção e do saber do médico com o objetivo de não prejudicar o doente.

  1. MEDICINA GREGA

Após 2.500 anos, a civilização grega ligada à concepção da polis, com as estruturas política e jurídica definidas, e ao homem, sentido como a medida de todas as coisas, continua encantando o mundo.

Os pressupostos teóricos gregos interagindo o homem e a natureza marcaram, definitivamente, uma nova visão de como compreender o mundo e as coisas.

A figura de Hipócrates, considerado o pai da Medicina, está inserido nesse contexto de renovação e buscas. Ele teria nascido no ano 460 a. C., na ilha de Kós e organizou um dos mais importantes centos de cultura médica de todos os tempos. A forma física que nos chegou desse genial pensador, talvez imaginária, foi a de um velho calvo e barbudo com um semblante tranquilizador.

Hipócrates viveu nos tempos do imortal Sócrates, do sofista Górgias e do não menos genial Demócrito. Sem qualquer dúvida, o médico da ilha de Kós fundou as bases da atual ordem médica e ele representa para a Medicina o que Platão significa para a Filosofia.

A produção literária atribuída a Hipócrates é enorme. Após os estudos específicos da tipologia, sabe-se que muitos livros atribuídos a ele são apócrifos.

 As principais obras que marcaram a Escola de Kós:

– O Juramento;

– Lei;

– Da Arte

– Do Médico;

– Prognóstico;

– Dos Ares, dos Ventos e dos Lugares;

– Epidemias I;

– Epidemias II;

– As Doença Agudas;

– Aforismos;

– Dos Lugares dos Homens;

– Do Sistema das Glândulas;

– Das Fístulas e das Hemorróides;

– Da Visão;

– Da Dentição;

– Da Gravidez;

– Da Natureza da criança;

– Das Doenças IV;

– Do Feto de Oito Meses;

– Do Alimento;

– O uso dos líquidos;

Na mesma época em que Demócrito lançava as bases do atomismo – tudo é formado por átomos que são partículas indivisíveis e invisíveis, eternas e imutáveis – dando pela primeira vez a explicação dos fenômenos incomensuráveis como o odor, a cor e o sabor, Hipócrates lançava teoria dos Quatro Humores para explicar a origem das doenças.

A Escola de Medicina de Kós, dirigida por Hipócrates, atraiu muitos médicos famosos das terras vizinhas. Os trabalhos práticos e teóricos desses profissionais deram início ao processo de separação da Medicina, enquanto uma especialidade social, das práticas médico-míticas.

       Entre as dezenas de ensinamentos produzidos, na ilha de Kós, que continuam pertinentes e orientando a Medicina atual, destacam-se os três aforismos:

       – O médico e a sua arte;

       – O doente e a sua natureza individual;

       – A doença.

       Ao mesmo tempo, a partir dessas reflexões, os livros escritos pelos médicos de Kós estabeleceram as bases para o desenvolvimento dos:

       – Diagnóstico;

       – Prognóstico;

       – Tratamento;

       – Sinal e sintoma;

A absoluta necessidade de conhecer os corpos foi enfatizada e os progressos da anatomia alcançaram o ápice, na Grécia antiga, com os trabalhos de Herófilo. Esse exímio e fantástico anatomista, contemporâneo de Hipócrates, diferenciou o cérebro do cerebelo, identificou as membranas meníngeas, o líquido cérebro raquidiano, as funções motoras e sensitivas dos nervos periféricos, o sistema linfático.

O famoso hospital de Epidauro, na ilha de Kós, onde Hipócrates e os discípulos trabalhavam, foi construído ao lado do templo dedicado ao deus da Medicina, Asclépio, o filho de Apolo com a mortal Coronis. A arquitetura ampla e bem ventilada inclui grandes salões coletivos, teatro para dez mil pessoas, consultórios, salas de banho, área de recreação e hotelaria.

É provável ter ocorrido convivência harmoniosa entre os sacerdotes-curadores, originados da tradição anterior, com os adeptos da Escola de Kós.

A suposição está inserida em duas comprovações:

– Na introdução do Juramento de Hipócrates que reza: “Eu Juro por Apolo, médico, por Asclépio, por Hígia e Panacéia, por todos os deuses e todas as deusas…”

– Na descoberta arqueológica de várias oferendas dedicadas ao deus da Medicina Asclépio, principalmente, esculturas em mármore com agradecimentos pessoais pelas curas alcançadas.

A relação médico-mítica grega, existente nos templos de Asclépio, despertou interesse e crítica. Aristófano, o irônico comediógrafo de Atenas, encenou peças teatrais ridicularizando o sacerdote curador de pouco escrúpulo.

O suposto destaque da Medicina, como uma especialidade social, acima das outras está historicamente marcada, nas memórias sócio-genéticas, através das relações médico-míticas.

A partir do processo de dessacralização, a idéia de distinção do ato médico fugiu dos deuses e incorporou-se aos saberes profanos. O primeiro parágrafo do Tratado Ético hipocrático é enfático: “A Medicina é de todas as profissões a mais nobre…”

Alguns séculos mais tarde, o médico romano monoteísta Galeno, considerado o sucessor de Hipócrates, fortaleceu a supremacia da Medicina no laicismo da Filosofia: “Todo médico deverá ser filósofo.

A ideia de os filósofos exerceram atividades mais nobres, em comparação aos outros homens, pode ser lido em Fédon, onde Platão trata do Mito do Destino das Almas: “E, entre estes, aqueles que pela Filosofia se purificaram de modo suficiente sem os seus corpos, durante o resto do tempo, e a residir em lugares mais belos que os demais.”

A aparência do médico também estava prevista nas normas éticas hipocráticas: “A norma do médico deverá ter boa cor e bom aspecto…Pois será de grande utilidade para si colocar-se elegantemente e perfumado …tudo isso agradará ao doente.”

Os instrumentos cirúrgicos gregos, dos tempos de Hipócrates, mostram-se semelhantes aos usados nos procedimentos cirúrgicos simples, nos dias atuais: sondas, bisturis, trépanos, pinças e afastadores.

Ao contrário do Código de Hammurabi, a ausência de sanção específica, no Tratado Ético de Hipócrates, para as complicações da cirurgia, sugere que o descompasso entre a clínica e a cirurgia, isto é, as queixas populares da incompetência médica, não era tão intenso quanto na sociedade assírio-babilônica.

  1. A MEDICINA E A FILOSOFIA GREGA

       Para que se possa compreender a importância da Medicina grega na estruturação do universo ético-filosófico ocidental e no entendimento atual do que é a saúde e a doença, é necessário muito mais do que simples interpretação factual. É indispensável que tenhamos o emba-samento da História na interpretação dos fatos.

       A Medicina, como especialização social, já estava definida muitos séculos de anos entes da formação da polis grega. Do mesmo modo que a filosofia e as idéias políticas gregas, a Medicina apareceu com clareza na estrutura do pensamento helênico no final do século V e nos séculos IV e III seguintes, de forma tão bem sedimentada, que influenciou marcada-mente os caminhos tomados pela Medicina ocidental nos vinte séculos seguintes.

       É possível que tenha sido depois das guerras médicas (490 – 479) que a Medicina grega tenha atravessado o mais notável desenvolvimento estrutural. A partir desta época o médico aparece como intermediário na formação social e na edificação do pensamento coletivo, superando as suas funções específicas na busca da saúde.

       Empédocles, médico e filósofo do século V, utilizou a clepsidra para ilustrar a sua teoria da respiração, segundo a qual o corpo transpira através dos poros espalhados por toda a superfície da pele. É possível se estabelecer uma relação direta entre a teoria da respiração desse genial grego com a doutrina cosmológica de que o ar é uma substância cor-pórea.

       A relação concreta da Medicina com a filosofia grega, provavelmente, começou a partir das concepções jônicas da natureza.

       A influência jônica foi tão grande que toda a literatura médica desta época que chegou até nós, foi registrada em prosa jônica, apesar de ter sido escrita em Kós, ilha de população e língua dórica. Este fato só pode ser explicado pelo avanço da cultura e da ciência jônica naquele tempo.

       A importância social do médico como agente na busca da saúde já era reconhecido desde Homero, que afirmou : ”O médico vale por muitos homens”. Porém, a consolidação desta posição foi alcançada a partir da busca da relação do corpo com a natureza, referida de diferentes modos por Platão (Prot. 313 D, Gorg. 450 A, 517 E, Rep. 298 A e Timeu 78 B), onde o médico é fixado em posição social definida.

       A relação da Medicina com a natureza que os gregos tão bem assimilaram atingia o social. Esta afirmação pode ser comprovada em Sólon, que descreveu a conexão das doenças com o todo social. Baseado nesta relação, Sólon fundamentou parte do próprio pensamento político-filosófico afirmando que as crises políticas interferiam na qualidade da saúde coletiva.

       Talvez tenha sido esta a razão pela qual a Medicina exercida no III milênio a. C. pelos egípcios não ter sido sedimentada em sistema teórico claro.

Com todo o grande desenvolvimento da observação e do empi-rismo utilizados, os médicos egípcios não obtiveram êxito para estabelecer uma teorização suficientemente coerente que fundamentasse a Medicina praticada nos milênios seguintes. Faltou-lhes, certamente relacionar o conjunto da natureza com a ação médica, como fizeram os jônicos.

       A preocupação em marcar uma ligação entre o binômio saúde- doença com a natureza está presente na introdução do livro Dos Ventos, Águas e Religiões, escrito por autor desconhecido, do século V a.C.:

       “Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto a sua essência específica e quanto as suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelas características de cada região. Deve ter presente também os efeitos dos diversos gêneros de Águas. Estas distinguem-se não só pela densidade e pelo saber, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais nada, a posição que ela ocupa em relação as várias correntes de ar ao curso de sol (…) assim como anotar o que se refere as águas (…) e a qualidade do solo (…) Se conhecer o que diz respeito a mudança das estações e do clima, o nascimento e o ocaso dos astros, conhecerá antecipadamente a qualidade do ano. Pode ser que alguém considere isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem, está relacionada com a mudança do clima”.

       Esse modo de conceber a relação saúde-doença dos gregos demonstra a existência de uma nova relação com as mudanças obser-váveis nos corpos. A doença deixou de ser compreendida isoladamente, mas como produto resultante do desequilíbrio com a natureza circundante.

       Esse ponto fundamental da filosofia grega, dos séculos V e IV, foi marcado pela união entre a filosofia jônica da natureza com a Medicina.

       Começou, nessa época, a florescer a Escola de Hipócrates, em quem Platão, no início do século IV, reconheceu a personificação da profissão médica.

       Apesar de todas as obras desse período terem chegado a nós sob o nome de Hipócrates, provavelmente, por erro de interpretação do médico romano Galeno, no século II d.C., hoje, não se tem dúvida de que foram escritas por muitos autores, que sustentavam pontos de vista discordantes entre si.

       De qualquer forma, Hipócrates era realmente reconhecido e res-peitado como símbolo de uma Medicina corretamente aplicada, como está claro nas conhecidas passagens de Platão (Prot. 313 B-C e Fedro 270 C) e de Aristóteles (Pol. VII, 1326).

       As ponderações das escolas platônica e aristotélica são enfáticas em usar as idéias do pensamento médico corrente como instrumento teórico na busca de um método experimental de poder voltado ao bem comum.

Na Medicina, a experimentação começava na aplicação deste ou daquele remédio em um doente para comprovar se eficácia. Foi, possivelmente, aqui que se definiu a relação entre a filosofia da natureza e a Medicina.

       Esse aspecto pode ser bem entendido através de Aristóteles (de Sensu, 436 a 18):

”Visto a doença e a saúde apenas se poderem verificar nos seres animados, os primeiros princípios da saúde e da doença devem cair na alçada do fisicista. Daí que quase todos os filósofos naturais terminem com a Medicina; e que os médicos que exercem a sua profissão num espírito mais filosófico iniciem o seu tratamento da Medicina a partir da verdades da filosofia natural”.

O aparecimento da literatura médica foi importante no desenvolvimento e aceitação da importância da Medicina nas relações sociais.

       A partir do estudo das obras médicas que chegaram até nós, ficou comprovado que existiu entre os séculos V e III a.C. uma compreensão diferenciada do papel social do médico e do leigo em Medicina. A produção literária médica daquela época foi direcionada para estes dois grupos diferentes de leitores. Hoje, felizmente, chegaram a nós dois gêneros de literatura, a profissional e a destinada ao grande público.

       Na tentativa de fortalecer o valor social, o médico grego, a exemplo dos sofistas, começaram a expor perante o público os problemas da relação saúde-doença, sob a forma de conferência e discurso pre-parado.

       É válido pensar que já existia uma idéia clara da relação dominante entre médicos e os não médicos, já que está exposta nas obras que produzidas principalmente nos séculos V e IV e que nos chegaram em boas condições de análise.

       A interpretação dessa relação foi também registrada por Platão (Leis, 857 D e 720 C – D), onde aborda a diferença da Medicina praticada nos escravos e nos homens livres. Algo semelhante ao existente hoje entre a Medicina praticada nos consultórios particulares e nos ambulatórios de assistência médica pública. Platão faz a descrição de modo extrema-mente satírica de como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas e sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres:

 ”Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se a natureza de todos os corpos, morreria de rir e diria no que a maioria das pessoas chamadas médicos replicam prontamente em tais casos: – o que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico”.

       O próprio Platão reconhece a necessidade do esclarecimento do doente como o ideal da terapêutica. Este tema é abordado também na obra Banquete, onde o médico Erixímaco desenvolve para a platéia uma longa conferência sobre a essência do Eros.

       Esse interesse pelo estudo da matéria médica que passou a caracterizar o homem culto grego é compreendida na figura do jovem Eutidemo que Xenofonte descreveu como grande entendido de Medicina sem ser médico e do historiador Tulcídides que relatou, com incrível minúcia, o quadro médico e social da peste que assolou Atenas entre os anos 430 e 427 a.C.

       Aristóteles vai mais longe e chega a distinguir na sua obra Política I, 11, 1282, o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espa-ço que cada um pode ocupar nas suas funções específicas.

       Não se tem dúvida de que a Medicina tomou importância suficiente para despertar interesse do grande publico a partir do século V a.C. Este entendimento foi alicerçado através da certeza de que a saúde e a doença eram produtos da sua relação com a natureza.

       Existiu uma complexa interdependência entre os conceitos produzidos pelos filósofos não médicos. Algumas vezes está clara a coincidência das idéias, outras vezes existe nítida discordância.

       O autor desconhecido do livro Da Natureza Antiga, discorda do dogmatismo a priori da filosofia de que todas as doenças são formadas pelo excesso de calor, frio, secura ou umidade. No Corpus Hipocraticum (cap. XIII), Hipócrates argumenta objetivamente sobre o mesmo assunto:

”Que no caso de um doente afetado por uma alimentação crua e curado por uma alimentação cozida, não é possível dizer o que foi eliminado da direita, se o calor, se o frio, se a umidade ou a secura;

Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de tomar água quente ou vinho quente ou lente quente e a água o vinho e o leite tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor.”

Hipócrates sustentava também que o corpo humano é composto por número grande de coisas: salinas, amargas, doces, ácidas, adstrin-gentes, insípidas, etc. E não só de quatro componentes.

Provavelmente, Hipócrates sofreu a influência de Alcméon, filósofo e médico de Crotona, situada no sul da Itália, que admitia um grande número de forças atuando na produção da saúde do homem. Alcméon, ao que parece, afirmava que a saúde era o produto do equilíbrio de todas as forças e o predomínio de um oposto provocava a doença.

Tanto Hipócrates como Alcméon admitiam que a saúde é uma mistura devidamente equilibrada das qualidades.

       Apesar dessa clara compreensão de que a saúde era o produto do equilíbrio de várias forças no organismo, existiu outra corrente de pensamento liderada por Políbio, genro de Hipócrates, que sob a influência dos quatros elementos de Empódocles – fogo, ar, água e terra – e da noção do equilíbrio de Anaximandro, produziu, ainda sob a influência marcante da Escola de Kós, a teoria dos quatro humores fundamentais – o sangüíneo, o linfático, o bilioso amarelo e o bilioso negro – para explicar a causa das doenças.

       Essa teoria dos quatro humores, atribuída a Políbio, está no livro Da Natureza Antiga:

 ”O corpo humano ontem sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo quando estas coisas estão na devida proporção em relação umas às outras, no que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturadas com as outras”.

       A teoria dos quatro humores fundamentais norteou os rumos da Medicina e transpassou o tempo até o século XVII, quando começou a ser substituída pelo o estudo da microestrutura desenvolvido por Marcelo Malpighi (1628 – 1694). No principal livro Opera Omnia, publicado em 1667, Malpighi evidenciou a organização do microcosmo e novo entendimento na etiologia das doenças.

Um dos objetivos da filosofia grega foi sistematizar o discurso sobre a natureza interior das coisas, envolvida pela multiplicidade das suas manifestações, no mundo observável, com suficiente coerência, para que permanecesse compreensível perante a reprodução dos saberes.

Aqui brotaram as contradições entre o particular e o universal, o invisível e o visível e deve ter nascido a questão fundamental do conhe-cimento: a similitude dos múltiplos. Desta forma, a Medicina, como ciência emergente, foi envolvida nessa discussão.

       O verdadeiro médico surgiu no pensamento grego como o homem que nunca separava a parte do todo, mas sempre a relacionava o conjunto de interdependência com o todo. Daí, surgiu a imperiosa necessidade de conceituar a medida na Medicina. O médico passou a ser chamado para recompor a medida oculta quando a doença vinha alterá-la e utilizava a natureza como a justa medida da saúde.

       Hipócrates já tinha plena consciência desse fato e afirmava em texto atribuído a ele no livro Da Medicina Antiga que nenhum médico pode saber de Medicina nem tratar convenientemente os doentes sem conhecer a natureza do homem e continua: ”…os argumentos deles apontam para a filosofia tal como a de Empédocles e de outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído”.

       A concepção de saúde entre os gregos começou a envolver a relação da Medicina com a harmonia a partir do século V, sendo esta a norma da natureza, isto é, ela preenche na medida exata e com simetria adequada as necessidades de cada um. É a partir desta compreensão que Platão entendeu a saúde como a ordem do corpo (Fédon, 93 E, Leis 773 A e Górg. 504 C) e Aristóteles associou a simetria como a determinante da saúde da força e da beleza do corpo.

       Esta intrincada relação do binômio saúde-doença com a natureza já encontrava respaldo no período pré-socrático. A mesma idéia de que não era adequado ao médico intervir contra a natureza no tratamento de qualquer doente e que os sintomas da doença, inclusive a febre, representam o início do processo de restabelecimento da normalidade era entendido em Heráclito, que compara ao instinto da aranha em se dirigir para o local da teia rasgada pela mosca, lembrando ação da natureza em acudir o corpo contra as doenças.

       Foi provavelmente na Escola de Kós que surgiu na literatura médica grega a idéia clara da Physis em relação a Medicina, constituindo um dos importantes conceitos elaborados pela Medicina grega. Sem dúvida que nasceu como processo das concepções da natureza desde Tales até Demócrito.

       Nos documentos deixados por diversos autores não identificados, da Escola de Kós , pode-se compor cinco pontos fundamentais da ligação da physis com a Medicina:

– Universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis pró-pria, os atros, os ventos, as águas, os medicamentos, o homem com as suas partes, as doenças, etc. Por esta razão que o autor do livro I Das Epidemias distingue: ”…a physis comum de todas as coisas da physis própria de cada coisa”.

– Princípio fundamental: a physis é o princípio (Arkhé) de tudo que existe. No livro Sobre os Lugares e o Homem, lê-se: ” A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina”.

– Harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é harmoniosa. É a ordem que se realiza com beleza. A natureza é harmoniosa e produz harmonia;

– Racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão, existe uma fisiologia, a ciência na qual o logos do homem se harmoniza diretamente com os logos da natureza;

– Divindade: a physis é em si mesma divina. Este caráter divino da physis se manifestou na Medicina grega na incompreensão da existência de certas doenças que determinavam a morte.

       A tendência do pensamento grego em agrupar em classificações gerais o todo e as partes, estimulou as tentativas de ordenação das doenças em grupos que apresentassem alguma semelhança no aparecimento ou no quadro clínico de sinais e sintomas. Um dos exemplos mais interessantes desta fase de desenvolvimento da Medicina grega foi o livro Das Doenças Sagradas, de autor desconhecido, que estuda descritivamente todas as manifestações patológicas das doenças que causavam alterações no comportamento do homem.

       É provável que Platão tenha se ligado à Medicina, tirando desta, algumas linhas mestras da sua concepção ético-filosófica. No livro Górgias 464 B, 465 A e 501 A, sob a luz da Medicina, estabeleceu o significado da verdadeira techne, como forma de conhecimento na natureza do objeto destinado a servir ao homem.

       De acordo com os conceitos platônicos o médico é a pessoa que baseada no que sabe sobre a natureza do homem são, conhece também o contrário deste, o homem doente e sabe encontrar os meios para restituí-lo à saúde. Foi baseado neste modelo que Platão traçou a imagem do filósofo que teria a mesma função no tratamento da alma do homem. Existiu, neste ponto do pensamento grego, uma relação concreta entre o médico e o filósofo, que se completavam na busca da harmonia plena do homem com a natureza.

       Os diálogos platônicos sugerem efetivamente que o método utilizado pela Medicina grega – identificar em primeiro lugar se a natureza do objeto acerca do qual queremos adquirir um verdadeiro conhecimento é simples ou apresenta múltiplas formas – foi também utilizado nas obras platônicas do último período.

       Nessa fase, a Medicina grega já tinha reconhecido o problema da multiplicidade das formas das doenças e a possibilidade de teorizar com divisões para estabelecer o número exato dos tipos patológicos. Este método é identificado por Platão como Dissecação ou divisão dos conceitos universais nas suas diferentes classes. Provavelmente, esta foi uma das razões que Platão comparou a Medicina com a filosofia, baseado no caráter normativo de ambas.

       Parece que existiu uma convergência da Medicina com a filosofia influenciada pelas idéias políticas que predominaram entre os séculos IV e III a.C. quando era sentida a necessidade de associar as linhas mestras do pensamento cultural a noção grega de liberdade pela lei com sujeição à lei.

       Foi aqui que residiu uma importante contribuição da Medicina grega ao ocidente: a elaboração das normas para conservação da saúde do homem. A prática do esporte, da música e dos banhos coletivos foram utilizados como formas de tratamento que induziam ao melhor conhe-cimento da natureza do homem.

       Vinte e dois séculos depois dos gregos terem elaborado um sistema de compreensão do binômio saúde-doença com a totalidade da natu-reza, o processo que culminou com o melhor conhecimento da fisiologia do corpo humano mostrou que a verdade biológica está muito próxima deste entendimento.

       Após qualquer agressão que o homem sofra, seja mecânica ou biológica, ocorre a inflamação, que significa fundamentalmente a primeira reação natural do corpo contra o trauma sofrido.

Esta reação da natureza se dá tanto em nível macroscópico com o aparecimento do edema, calor e dor, como no microscópico, com a chegada das células sangüíneas especializadas que começam imedia-tamente a destruir o agente causador traumático.

       No livro Das Epidemias, também produzido na Escola de Kós, esta idéia é claríssima: ”A arte do médico consiste em eliminar o que causa dor e em sarar o homem, afastando o que o faz sofrer. A natureza pode por si própria conseguir isto. Se sofro for estar sentado, não é preciso mais que levantar-se; se sofre por se mover, basta descansar. E tal como neste caso, muitas coisas da arte do médico a natureza as possui em si própria”.

       Existem inúmeros relatos dos séculos IV e III a.C. que associam a adequada ação médica com a noção de globalidade da natureza, inclusive com recomendações da qualidade e quantidade da dieta, da prática de esportes e de atividades culturais. No mesmo livro Das Epidemias é reafirmado a relação da boa prática médica com os conceitos de harmonia e medida: “… o esforço físico é o alimento para os membros e para os músculos, o sono é para as entranhas. pensar é para o homem o passeio da alma.”

Com o aparecimento da literatura médica destinada ao grande público com recomendações específicas das normas que deveriam ser obedecidas para a conservação da saúde, a Medicina grega inicia uma das mais importantes contribuições para a consolidação da Medicina como especialização social no ocidente – a manutenção da saúde pela dieta adequada, pelo exercício físico contínuo e pela higiene do corpo.

       Na realidade, foi aberto um novo espaço nas relações da Medicina com o público leigo, os médicos passaram a atuar também no homem são com objetivo educativo e profilático.

       Os hospitais construídos nesse período, como o de Epidauro, eram grandes e tinham múltiplas divisões destinadas diferentes atividades dos médicos. tinham, além de dezenas de salas de exames de alojamentos individuais para os doentes, salas de banho coletivo, praça de esportes, anfiteatro para dez mil pessoas onde era mantida permanente atividade de teatro e música. Era indispensável que se mantivesse na prática o discurso teórico da harmonia com a natureza na busca da saúde.

       O novo espaço trabalhado pela Medicina, do século III, e sua íntima relação com a natureza, com o objetivo educador, fizeram surgir as mais importantes obras médicas destinadas ao grande público.

Estes livros, Da dieta, de um regime de vida saudável, da natureza do homem, contem fantásticas conclusões de como deve ser a vida do homem comum e os mecanismos que contribuem para a conservação da saúde, chegando a detalhes impressionantes, como a especificação de como deve ser a caminhada após cada refeição dependendo da idade e das condições físicas de cada pessoa nas diferentes estações do ano.

       Aparece pela primeira vez a palavra higiene com sentido regulador não só da alimentação, mas também como caráter normativo das atividades da rotina do trabalho do homem são e do doente.

       A ginástica passa a fazer parte das necessidades básicas para a manutenção da saúde. Por esta razão os ginastas alcançaram papel im-portante no aconselhamento do corpo e permaneceram independentes frente ao crescente poder médico nas relações sociais na sociedade grega.

       O livro De um regime de vida saudável se propõe servir de guia ao público para orientar no tipo mais adequado de dieta que as pessoas devem obedecer, além de estabelecer os parâmetros da cultura médica mínima que todos devem ter para ajudar na compreensão dos pontos disciplinares fundamentais para a manutenção da saúde.

       As regras sugeridas são distribuídas de modo diverso nas diferentes estações do ano, tipo físico, idade e sexo. Chega a especificar o tipo de exercício físico mais adequado a cada caso considerado.

       O objetivo central seria estabelecer, pela lei, o caminho que todos deveriam seguir para evitar a doença e manter a saúde.

       A intenção é a mesma do autor do livro Da dieta, que aborda em quatro capítulos toda a literatura existente na época sobre o assunto e conclui da necessidade de se estabelecer normas alimentares para evitar o aparecimento das doenças pelo desequilíbrio produzido nos quatro humores fundamentais como conseqüência da ingestão inadequada dos alimentos.

       Provavelmente, todas essas produções literárias dirigidas para as pessoas leigas em Medicina e para os médicos sofreram a influência de Heródio de Selímbria, citado por Platão e Aristóteles. Ele foi o primeiro que atribuiu aos exercícios físicos e a dieta um lugar de destaque como impor-tantes fatores na conservação da saúde e no tratamento dos doentes.

       Os médicos da Escola de Kós passaram a intervir no modo de vida das pessoas com o intuito de preservá-las das doenças. Essa nova atitude não foi aceita placidamente e recebeu duras críticas de Platão e Aristóteles. Este último diz haver muita gente que embora goze de saúde, não pode se considerar feliz, pois só a mantém a força de se privar das coisas agradáveis.

        Acredita-se que a Medicina e a filosofia grega, dos séculos V ao III, foram as primeiras a estabelecerem um sistema ordenado da prática médica. Foram também os responsáveis pela compreensão de como deveria ser o papel social do médico como agente na busca da saúde daquela época até o século IV, quando foi iniciado o processo de cristianização do mundo greco-romano.

 

Referências

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