A DOR, O PRAZER E AS MEMÓRIAS SÓCIO GENÉTICAS

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

  1. A dor e o prazer

Um dos aspectos mais fascinantes do corpo humano é como ocorreu o processo de adaptação da dor e do prazer à sobrevivência da espécie.  O maior obstáculo da neurofisiologia continua sendo estabelecer as correlações entre a forma e a função, no sistema nervoso central (SNC) e no sistema nervoso periférico (SNP), nos níveis macroscópico (órgão), microscópico (célula), ultramicroscópico (molécula), atômico e subatômico.

Dito de outro modo, se o saber empírico é suficiente para comprovar que as pessoas são capazes de sentir dor e prazer, de muitos modos e diferentes intensidades, torna-se obrigatório existirem áreas, em todos os níveis acima mencionados, responsáveis por aquelas sensações.

Os entraves aumentam na razão direta do desvendar da menor estrutura.  O desconhecimento fica mais denso a partir da molécula, portanto ainda muito distante do subatômico.

A dor e o prazer estão unidos em complexa ponte, construída durante a humanização, envolvendo o SNC e o SNP com a vida de relação.  Os principais alicerces dessa ligação entre o passado, oriundo de uma ontogenia comum, e o corpo atual é o neocórtex e a fantástica malha de células específicas ─ os neurônios ─  cobrindo  as superfícies corporais internas e externas.

O neocórtex adicionou ajustes no corpo muito remoto amoldando-o às emoções recentes, atualizadas na temporalidade das relações sociais.  Composto pelo tronco encefálico, hipotálamo, tálamo, área pré‑frontal e sistema límbico, permite o gesto da comoção, o clamor da dor e a busca do prazer.

 Com o objetivo de aliviar a dor interior, o corpo, em nível molecular, elabora opiáceos  ─ endorfina, dimorfina e encefalinas ─ de composição química semelhante à morfina1. Na forte emoção, os opiáceos naturais podem exacerbar, a ponto de causa bem-estar2. Por outro lado, modelos matemáticos experimentais demonstram que a sensibilidade dolorosa aumenta no estresse3.

A fuga da dor e busca do prazer continua sendo duas incontroláveis ordens ontogenéticas.   As pessoas organizam‑se com o objetivo de evitar a dor e buscar as fontes determinantes de prazer.  Entre as mais importantes, figuram a livre expressão da sexualidade, a posse da terra e o fácil acesso ao alimento, acompanhados das variações simbólicas.

Aceitar o prazer e recusar a dor tem sido um ponto comum de incontestável relevância na vida humana no planeta.   O corpo foi adaptado a esse determinante sócio genético.

O processo evolutivo delimitou mudanças, em todos os níveis do corpo, capazes de ajustá-lo ao movimento social.  É inconcebível pensar na dor e no prazer ligados somente às trocas metabólicas físico‑químicas ou ao exclusivo contexto societário.  É tempo de interagir a natureza, o social e a História com a genética.

O conjunto das reações neuroquímicas, ligando o ser ao mundo das ideias, só é consolidado nas mentalidades ─ memorizado e reproduzido ─ quando estiver elaborado em estreita consonância com as exigências pessoais e coletivas, requeridas no processo de humanização.  O ser é biológico e social; ele não existe sem as relações de trocas e estas não seriam possíveis sem ele.

O conjunto formador que gera a ação apreendida não se dá sobre o nada.  As estruturas nervosas, centrais e periféricas, responsáveis pela intercomunicação entre a memória, a linguagem, os sentidos e o social ligam‑se através de bilhões de sinapses.  É a prisão mental de cada um.  É a jarra de Pandora, de onde saem os infortúnios e as esperanças da humanidade.

As análises, pretendendo compreender e transformar a sociedade, desprezando um dos componentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e o intrínseco (a genética) têm pouca possibilidade de resistir à crítica.

Há de existir algum tipo de coerência funcional unindo, no nível sócio genético, a forma e a função dos SNC e SNP ao mundo das ideias A capacidade individual para sentir a dor e expressar o prazer nasce dessas relações biológico‑sociais.  Algo que poderia ser chamado de crítica da proteção pura4.

  1. As memórias sócias‑genéticas5

Apesar de os estudos da anátomo‑fisiologia terem desvendado alguns aspectos importantes da forma e da função do SNC e do SNP relacionados à dor e ao prazer, estamos longe, muito longe de compreender a maior parte das dúvidas.

Uma das barreiras é a fantástica multiplicidade das formas, no ser vivente, gerando funções semelhantes.  Apesar de os homens e as mulheres possuírem áreas anátomo‑funcionais semelhantes, relacionadas com a secreção dos opiáceos naturais, nunca se expressam igualmente.

As maneiras de sentir dor e prazer são infinitas.  O produto final dessas sensações desagradáveis e prazerosas é modulado através dos componentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e os intrínsecos (os padrões genéticos herdados na reprodução sexuada).

O estudo das mentalidades, em diferentes períodos, mostra um histérico repetir coletivo, a partir da ordem vinda de um ponto perdido na escala filogenética, atrás dos anseios fundamentais, ditados por uma categoria nominada neste ensaio de memória sócio genética (MSG). É traduzida na vida de relação, desde os tempos imemoriais na liberdade para buscar, mais e mais, o conforto físico e emocional (aqui compreendido como a liberdade de ir e vir, de falar, de explorar e, sobretudo, a sede e a fome saciadas, o abrigo do calor e do frio) nunca resolvidos para a maior parte da humanidade.

Todos fogem da dor e procuram o prazer.  A polaridade entre o conforto e o desconforto, sentidos no corpo, são as chaves acionadoras da MSG.  Todas as relações interpessoais e com a natureza, com ou sem ajuda da técnica, que resultem prazerosas, são acatadas, sem esforço, ela maioria.  Sempre que a ordem social insiste em limitá-las, ocorre resistência.  A rebeldia contra a falta da terra para cultivar, o sexo limitado, o alimento escasso e a incrível sedução pelas drogas proibidas são partes importantes do mesmo universo.

A constância transmitida aos descendentes, ela reprodução sexuada, dos pontos comuns das memórias sócio genéticas pessoais, forma a memória sócio genética coletiva (MSGC), herança do traço ontogenético comum.

As mensagens oral e escrita, estruturadas na ambiguidade objetivo‑subjetivo ou, sob certas leituras, do sagrado‑profano, trazendo a esperança de amenizar a dor, são sempre bem aceitas e festejadas pelas MSGs.   Nenhum poder ordenador amparado pela força explícita conseguiu conter, apesar da brutal repressão nos porões da intolerância de todos os matizes, a expressão clara das MSGs.

A capacidade de convencimento, fazendo parte da ideia institucionalizada, assenta-se, sobretudo, na história das representações, das ideologias e das mentalidades constituídas a partir do saber acumulado e sobre ele.  Por essa razão, continua muito significativo, junto às massas populares, a sedução exercida pelos políticos, prometendo maior conforto.

O empenho do poder, propondo a mudança, não obtém resultados, quando toca, de modo inadequado, nas MSGs.  O medo da dor e do desconforto continuam tão fortes quanto os mecanismos subjetivos, criados pela ficção, para atenuá‑los ou confundi-los.  É possível compreender, nesse ponto, a fantástica relação entre a dor e o prazer com o nascer da consciência, diferenciando o cérebro da mente, traduzindo uma etapa significativa da corrente, entrelaçando a natureza, o social e a História nas MSGs.

O castigo, necessariamente carregado de sofrimento doloroso, é imposto pelo homem ou pela divindade, nos espaços sagrado e profano, para gerar obediência.  O medo, advindo da ameaça   da dor física, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos violentados, do permitido e do proibido.

O arcabouço da dor física na MSG, transposto para o sofrimento coletivo, moldou a dor histórica na MSGC. É o grito humano pela vida, ela liberdade, pela saúde, pelo conforto, ela dignidade, pela paz e pela ruptura das correntes que prendem o homem à tirania dos outros homens e dos deuses.  É a razão por que sempre existiu a procura de uma ética na conduta humana, ligada à sobrevivência comum, registrada nos códigos de postura.

O sagrado friccionado como mecanismo inato para compensar a dor, ativando os mecanismos endógenos da analgesia, encontrou resposta no brado dos espoliados.  O exercício do poder, impondo o castigo doloroso aos resistentes, resultou nos princípios da dinâmica social, onde a coesão e a dissolução, em equilíbrio dinâmico, são dependentes, respectivamente, do predomínio do conforto e da dor, em determinado segmento da sociedade.  Os contestadores, compreendidos como agentes da dissolução ou pecadores, são punidos com o pior dos castigos:  a exclusão pela enfermidade, mensageira do sofrimento e da morte.

Os curadores assumiram um papel de realce.  Eram capazes de atenuar a dor e adiar a morte temida.  Os livros sagrados, referência maior da ambiguidade sagrado-profana, são claros quanto ao destaque do curador   na ordem do espaço ocupado.  Os mais antigos registros escritos são contundentes.  Os assírios e babilônicos entendiam o pecador como o rebelde possesso da antidivindade.  As palavras sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos6.       Os atos coletivos, empregados para modificar a realidade, têm de estar, obrigatoriamente, assentados em pressupostos teóricos, ligados às MSGs.   A coerência ao ato apreendido passa nas pontes que interligam o SNC e o SNP.  Quem está vendo a dor da fome, estampada no rosto de penúria dos entes queridos, ou sentindo a ferida não cicatrizada, está sempre pronto para seguir qualquer proposta para finalizar o sofrimento.  De modo semelhante, quando as aspirações são satisfeitas, a tendência é afrouxar a crítica.

Os anseios dos homens e das mulheres, presentes nas MSGs, para reforçar o conforto, são um dos fatores que provocam o movimento social. Quando as ideias são desarmônicas com o anseio, nem mesmo os mais brutais meios de repressão conseguem mantê‑las ativas.

O poder ordenador, mesmo sem saber por quê, percebeu o valor dos registros sócio genéticos. Os seus agentes, os políticos travestidos de curadores, investem na conquista das mentalidades, através das mensagens repletas de dádivas que tocam profundamente as MSGs: as variações simbólicas da livre sexualidade, da terra e do alimento.

BIBLIOGRAFIA

  1. LICO,Maria Carmela. Modulação da dor: mecanismos analgésicos endógenos. Ciência Hoje,v. 4,n. 21,nov. dez. 1985. p. 67-75. .
  2. MELZACK,Ronald e WALL,Patrick. Le défi de la douleur. Paris. Vigot,1989,p. 116-122.
  3. CARVALHO,Luís Alfredo Vidal de. Mecanismos cerebrais da sensação dolorosa. Ciência Hoje,v. 18,n. 104,out. 1994. p. 21-21.
  4. BOTELHO,João Bosco. Medicina e religião: conflito de competência. Manaus,Metro Cúbico,1991. p. 41-63.
  5. ———. Arqueologia do prazer. Manaus,Metro Cúbico,1993. p. 11-46.
  6. LE GOFF,Jacques. Pecado. In:ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Mythos-logos. Sagrado-profano. Porto,Imprensa Nacional‑ -Casa da Moeda,1987. p. 271;
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