MEDICINA NA BABILÔNIA

MEDICINA ASSÍRIO-BABILÔNICA

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Com a consolidação das mudanças da Revolução Agropastoril, no Neolítico, importantes modificações se processaram nos grupos sociais que habitavam a Mesopotâmia. Essas sociedades iriam absorver parte da experiência acumulada em milhares de anos de História.

Nessa fase, teve início a modificação da economia produtora a nível de subsistência coletiva para uma concreta divisão de trabalho com o aparecimento de excedentes de produção e trocas comerciais.

As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. Aparece a propriedade privada, responsável, entre muitas outras mudanças, pelo assentamento duradouro dos grupos humanos ligados por vínculos de consanguinidades ou interesses comuns.

O aparecimento dos aldeamentos estratificados, voltados à guarda do território ocupado, segui-se como resposta imediata à premência da organização social para sobreviver aos conflitos de interesses internos externos.

As cidades foram sendo formadas, nas margens dos rios férteis, como produto dessa transformação e dariam início ao aparecimento das civilizações regionais. Entre elas, destacaram-se: assírio-babilônica e a egípcia.

Essas civilizações regionais formaram e assimilaram, ao longo do processo das suas consolidações, diferentes formas de administração, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista.

As contínuas guerras entre grupos rivais ao mesmo tempo em que renovavam as lideranças guerreira, transformavam o poder com o butim. Os territórios ampliados incorporavam os escravos detentores de saberes que interessavam a organização e à ordem social dominante.

O avanço na transformação acelerada da natureza circundante alcança níveis inimagináveis. Os metais são fundidos, aparece o cobre, a mecanização da agricultura absorve os arados primitivos, surge o barco à vela e o uso comum do ferro são fatos que contribuíram para fomentar as trocas dos excedentes da produção e aumentar a especialização das habilidades pessoais.

Nessa etapa, o corpo humano foi, certamente, muito manuseado nos rituais de sacrifício mítico-religioso e no esforço para conservá-lo após a morte.

É nesse contexto que já existe a distinção entre o médico e o cirurgião pé-hipocrático, isto é, antes do aparecimento da escola de medicina criada por Hipócrates, na ilha de Cós, na Grécia, em torno do ano 460 a C.

A atividade médica deveria ser intensa e reconhecida nos vários estratos sociais gerando controvérsias e disputas envolvendo interesses diversos. Só assim é possível compreender o destaque dado aos direitos, deveres e sanções aplicáveis aos médicos contidos no Código do Rei Hamurabi (1728-1688 a C.), da Babilônia:

 

&218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos) uma incisão difícil com uma faca de bronze e causou a morte do awilum ou abriu o nakkaptum (arco acima da sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão.

&219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto.

&220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará metade do seu preço.

&221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico cinco ciclos (cerca de quarenta gramas) de prata.

&222 – Se foi o filho de um muskenum: dará três ciclos (cerca de vinte e quatro gramas) de prata.

&223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono do escravo dará dois ciclos (cerca de dezesseis gramas) de prata.

Com isto o Código de Hamurabi formou jurisprudência com dois pontos cruciais da ordem médica:

 

  1. As sanções punitivas que os médicos deveriam receber se comprovadas a imprudência, a imperícia e a negligência;
  2. Os honorários do serviço prestado de acordo com o estamento social do doente.

 

A medicina assírio-babilônica considerava as doenças não traumáticas como castigo do deus Shamash que presidia a justiça. Daí provém, certamente, o maior prestígio dos médicos em relação aos cirurgiões que atuavam nas conseqüências dos acidentes e feridas de guerra, enquanto que os médicos exerciam as suas atividades com doentes portadores de males desconhecidos, sempre evocando a ajuda dos deuses curadores e exorcizando os deuses provocadores de doenças.

O estudo da simbologia dos sinetes que pertenceram aos médicos mais conhecidos das cortes, evidencia a nítida diferença social entre médicos e cirurgiões. Este último era considerado inferior à do médico e não podia exercer as suas funções sem supervisão.

Analisando em conjunto o conteúdo disciplinador do Código de Hamurabi e a relação de dependência entre o cirurgião e o médico, podemos concluir que a insatisfação coletiva recaia muito mais sobre a atividade do cirurgião. Este fato esteve, certamente, atado ao número gravidade dos insucessos da prática cirúrgica.

O sangue era considerado o elemento vital e responsável por todas as funções vitais. Desse modo, a observação dos corpos já mostrara íntima relação do fígado com o sangue, isto é, o parênquima hepático é, permanentemente, encharcado de sangue. Logo, a associação entre o fígado e a vida estabeleceu-se sem esforço. Num segundo instante, o adivinhador passou a utilizar o exame do fígado, eviscerado do animal sacrificado, para adivinhar o futuro da saúde e da doença, da vida e da morte.

Como a multiplicidade da forma macroscópica humana é incomensurável, não foi difícil estabelecer a escola para uniformizar as formas semelhantes e sobre elas estabelecer o presságio sob os augúrios dos deuses.

O poder da adivinhação como preventivo dos malefícios alcançou não só o povo assírio-babilônico, mas os povos de algum modo estiveram sob a sua influência:

 

Com efeito, o rei da Babilônia se deteve na encruzilhada, no começo dos dois caminhos, a fim de recorrer à sorte. Agitou as flechas, consultou os ter afins e observou o fígado.” (Ez 21, 26).

 

As sociedades do Crescente Fértil adquiriram sólidos conhecimentos de astronomia. Os planetas, os eclipses, o calendário e a celebração dos equinócios foram assinalados com perfeição.

Muitos deuses foram materializados em sintonia com o céu percebido e inalcançável. A astrologia pode ter nascido a partir da interpretação mítica dos movimentos dos astros. Somente o homem especial, representante da divindade – o astrólogo – saberia interpretar a vontade e o capricho desses deuses partir do curso dos astros, da direção dos ventos e do sonho.

Entre os muitos deuses curadores do universo mítico babilônico, destacaram-se:

 

  1. Sin, o deus da lua, um dos mais antigos do panteão, ligado ao crescimento das plantas medicinais;
  2. Istar, a deusa Vênus reprodutora, responsável pela libido;
  3. Nabú, o deus protetor das ciências e da arte de curar;
  4. Marduk, o grande curador de doenças;
  5. Ninchursag, a deusa que travestia oito representações diferentes, cada uma especializada em curar uma doença temida.
  6. Ningishzida, um dos mais importantes taumaturgos, simbolizado por dois dragões coroados e duas serpentes entrelaçadas num bastão.

 

As divindades boas e ruins eram materializadas em figuras mais ou menos horrendas de acordo com o poder sobre o bem e o mal. O deus que causava a icterícia, tornando o corpo amarelo – Axaxazu Asakku –  era representado na figura horrenda de um ser com asas, chifres e mãos em forma de garras.

Entre os deuses maus relacionados às doenças mais temidas que se manifestavam nos segmentos do corpo, citam-se:

 

  1. Ashakku, febre;
  2. Utukku, pescoço;
  3. Alû, tórax;
  4. Ekimmu, abdômen;
  5. Gallu, mão;
  6. Ilu, pé;

 

Entre as substâncias, retiradas de muitos vegetais abundantes na nas terras férteis da Mesopotâmia, incorporadas no uso médico empírico, nas principais nas cidades reinos, destacam-se: a beladona, o anis, o óleo de rícino, a romã, o gengibre, a hortelã e a papoula.

Ao lado da medicina empírica utilizadora dos recursos da natureza, as práticas divinatórias alcançavam ricos e pobres, senhores e escravos.

O processo de formação dos aglomerados urbanos forçou importantes medidas sanitárias que beneficiaram, exclusivamente, os membros do poder dominante. Entretanto, as escavações arqueológicas continuam mostrando as redes de esgotos e de abastecimento de água potável, silos e harmonia nos traçados das ruas e prédios.

Muitas patologias receberam estudos mais freqüentes. Os sintomas e sinais da tuberculose foram descritos com incrível precisão em várias tábuas de escrita cuneiforme:

 

Muita tosse acompanha de sangue abundante, respiração difícil com som de flauta, pele fria com os pés quentes, muito suor e o coração inquieto.”

 

A medicina babilônica, completamente identificada como uma   especialidade social, participava na intermediação dos conflitos sociais. Através dos pareceres dos médicos, os leprosos eram banidos e anulavam os contratos de compra e venda de escravos se comprovada a ocorrência de doenças incapacitantes.

 

 

 

 

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