CRANIOTOMIA PRÉ‑HISTÓRICA

CRANIOTOMIA PRÉ‑HISTÓRICA

 

 

CRANIOTOMIA REALIZADA HÁ 10.000 ANOS

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

 

Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram o homem pré-histórico a praticar a craniotomia, no Neolítico, há mais ou menos 10.000 anos, não podem estar dissociados, sob nenhum argumento, da imemorial luta do homem contra o sofrimento, onde a solidariedade entre os componentes do grupo estabeleceu as bases da sobrevivência.

Muitos achados confirmam a solidariedade entre os nossos ancestrais distantes. Um deles é representado pelos ossos achados na caverna La Lave, na França, de um homem pré‑histórico, que sofreu  ferimento perfurante de uma lança com ponta de pedra, pela frente, no osso sacro, no final da coluna. Esse hominídeo sobreviveu muito tempo após a ajuda de alguém que arrancou parte externa do objeto perfurante e deixou a haste pontiaguda de pedra encravada  no osso. O tempo que a vítima viveu depois do ferimento pode ser calculado, com aproximação, a partir da regeneração óssea em torno do ferimento no osso. Outros registros asseguram a existência de indivíduos que se especializaram, no seio do grupo, para tratar as  doenças e diminuir o sofrimento.

Permanece como um marco  nas atitudes do homem na busca dos mistérios do corpo, os crânios trepanados na pré‑história. Os crânios foram abertos em diferentes lugares da Europa, da Ásia e da África, em certa forma de modo semelhante aos procedimentos cirúrgicos atuais. Muitos indivíduos submetidos às trepanações sobreviveram vários anos após a cirurgia, o suficiente para que   as bordas do osso cortado se regenerassem parcialmente

O local escolhido do acesso para cortar os espessos ossos cranianos parece ter tido uma significação específica. Alguns povos faziam a craniotomia do osso temporal, outros do parietal, retirando pedaços com formas geométricas diferentes, de poucos centímetros, até grandes aberturas, como a do crânio achado em Collombey‑Muraz, na Suíça, feito através da órbita direita, da qual o doente não sobreviveu à cirurgia.

A diversidade de como as craniotomias foram realizadas contribuiu para supor que eram muito difundidas e fizeram parte de um conjunto maior de intervenções  do  homem no  homem, assinalando um momento específico na luta contra a dor e o sofrimento dos entes queridos. O “médico”, naquele momento, deixou de ser mero espectador para   tentar mudar, com a sua  ação, o curso de um acontecimento na saúde.

Não importa aqui qual tenha sido a principal motivação  para  que houvesse a concordância do “médico” e do “doente”, respectivamente, para fazer e aceitar a intervenção como necessária. O fato é que elas foram feitas e é muito pouco provável que tenham sido praticadas sob violência.

Essas cirurgias, feitas em grande número, há mais de 10 mil anos, encontraram a força necessária para a reprodução a partir do momento em que o homem desejou mudar o curso da vida, depois de reconhecer a   importância das funções vitais abrigadas na intimidade do cérebro.

Outro fato que nunca será completamente  explicado é  a razão pela qual a craniotomia foi utilizada, por diferentes povos da Europa, Ásia, África e, mais recente, pelas civilizações da América pré‑colombiana, sem que os grupos humanos tenham tido, aparentemente, conhecimento interétnico.

A freqüência dessa cirurgia, nos esqueletos estudados, surpreende ainda mais. No sítio   neolítico de Saint‑Martin‑la-Rivière, na Áustria, foram desenterrados sessenta crânios pré-históricos, dos quais cinco (8%) foram trepanados. Na cultura pré‑incaica, a Tiawanaku, e na incaica, as escavações arqueológicas não param de revelar as múmias, magnificamente conservadas, que foram submetidas à trepanação em vida.

É indispensável unir os elos disponíveis, para teorizar o entendimento de como atuaram certas associações simbólicas no aparecimento da trepanação pré‑histórica. O culto do crânio é um das mais importantes. O conhecimento empírico acumulado já era suficiente para dar ao homem neolítico a importância do conteúdo do crânio. A pancada na cabeça tinha conseqüências imediatas muito mais graves do que outra de semelhante intensidade  na perna. Essa observação forneceu a sedução para que os nossos ancestrais iniciassem  a compreensão do crânio com o seu conteúdo como parte sagrada do corpo.

A atenção do homem para o valor do cérebro na vida de relação pode ter sido suficiente para justificar o culto da sua estrutura protetora ‑ o crânio ‑ e a intencionalidade de abri‑lo, por meio das craniotomias, para conhecer e tomar posse dessas qualidades.

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