TABAGISMO: DO SAGRADO AO PROFANO

TABAGISMO: DO SAGRADO AO PROFANO

 

ESCRAVOS FUMANDO, DESENHO DE DEBRET

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

 

NO ESPAÇO SAGRADO.

A crença no poder mágico da fumaça, produzida pela açäo do fogo em alguns vegetais, foi  uma constante, desde tempos imemo­riais, no universo mítico de muitas sociedades.  Esse aspecto das relaçöes sociais näo pode ser simples coincidência. Certos pontos comuns ligam o imaginário de povos distantes milhares de quilômetros entre si.

Especificamente sobre o fogo, é possível que a atençäo comum tenha sido despertada pelo amorfismo incontrolável. De maneira diversa dos elementos materiais com formas domáveis, o fogo amorfo, por si só, impedia qualquer  contato manual. O produto da combustäo, a fumaça, de igual modo matinha a imprevisibilidade da forma. Porém, ao contrário do fogo, era passível de ser possuída por quem a aspirasse. Logo, o intérprete capaz de engendrar um sentido coerente, vinculado aos valores da comunidade, do curso tomado sob o impulso do sopro ou do vento, teria inevitavelmente certo destaque no grupo.

A origem do mito da magia da fumaça está obrigatoria­mente ligada ao fogo domesticado. Assim, näo só é muito antigo como também acompanhou de perto a marcha da humanizaçäo. A fumaça acabou incorporando esse sentido religioso de ponte entre o céu e a terra.

Os relatos dos cronistas e viajantes, muitos acompanha­dos de icnogravuras, narraram o uso do tabaco nos ritos terapêuticos e divinatórios. Os pajés se comunicavam com os espíritos, para curar e adivinhar, através da força embriagadora da fumaça do tabaco queimado.

Os registros disponíveis, até 1700,  näo evidenciam a utilizaçäo do tabaco, sob nenhuma forma, em muitas áreas do Brasil oriental e do cone Sul. Por outro lado, nos dias atuais o tabaco é fumado, mascado ou aspirado pela maioria das tribos que resistiram à colonizaçäo avassaladora.

Parece lógico supor que na justa medida do avanço, o conquistador incorporou alguns hábitos sociais do povo autóctone e contribuiu, de maneira decisiva, na disseminaçäo deles. Contudo, sempre desvinculado do conteúdo cultural profundo. O tabagismo foi um deles.

 

NO ESPAÇO PROFANO

A passagem do tabagismo do espaço sagrado para o profa­no se deu, no Brasil, com a chegada do colonizador. O vício de fumar, por homens e mulheres, como instrumento de prazer foi imediatamente percebida ainda nos primeiros contatos e cristalinamente assinalado por Cardim, no século XVI: Costumam esses gentios beber fumo de petigma (tabaco) por, outro nome erva santa. . . fica como canudo de cana cheio desta herva, e pondo‑lhe fogo na ponta metem o pau grosso na boca e assim chu­pando e bebendo aquele fumo, e o tem por grande mimo e regalio.

Durante a ocupaçäo holandesa do Nordeste brasileiro, na primeira metade do séuclo XVII, pelas tropas de Joäo Maurício de Nassau, o médico Guilherme Piso, chefe dos serviços médicos das Indias Ocidentais, fez um registro fundamental para que se possa entender a seduçäo que o tabagismo exerceu no continente america­no: A célebre erva Tabaco ou Petum, chamada pelos brasileiros Petúme, em quase todas as Indias Ocidentais é, desde remotos tempos, estimada pelos próprios íncolas para sarar feridas. Logo que os europeus souberam disto, pesquisando‑lhe as virtudes recônditas, aplicaram as folhas frescas, bem como o sumo das mesmas, a usos humanos;depois secas, nos abusos e prazeres também. De sorte que agora, como o vento hibernal,  o fumo do tabaco vicia o orbe universal .

Explicar o sucesso do tabaco näo é coisa fácil. Parece  que o prazer proporcionado pelo tabagismo está embutido num sentimento hedonista, envolvendo uma complexa rede social e cul­tural interligada aos fatores biológicos do vício.

O consumo, em 1920, quase nulo no sexo feminino, alcançou a fantástica cifra, em 1970, de duas mil unidades por adulto. A atençäo das autoridades mundiais de saúde pública foram alertadas, pela primeira vez, pelo Relatório de Hammond e Horn, em 1954, financiado pelo American Cancer Society, seguido pelo do Royal College of Phisicians, da Inglaterra, em 1962, descrevendo a nocividade do fumo. Hoje existem mais de setenta mil publicaçöes disponíveis sobre o assunto.

Entre as alteraçöes das incidências das doenças, observadas na segunda metade do nosso século, foram as dos canceres da boca, laringe, pulmäo e bexiga. Tidos como raros até o início do século XX, represen­tam atualmente séria ameaça aos fumantes.

As políticas de saúde dos países do Primeiro Mundo já estäo empenhadas no combate ao fumo. Foram multiplicadas as leis proibindo as pessoas de fumarem em lugares públicos e em vôos com menos de duas horas de duraçäo. O mundo conseguiu, nos anos oitenta, colocar o cigarro sob fogo cruzado. Mais de setenta naçöes estäo unidas, pelo menos aparentemente, para varrer o tabaco do planeta.

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