OS DEUSES COMO SENHORES DA SAÚDE E DA DOENÇA

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

  1. MEDICINA PRÉ HISTÓRICA E A PALEOPATOLOGIA

            As escavações realizadas em Neandertal, nos arredores de Düsseldorf, em 1854, trouxeram à tona alguma luz sobre os nossos ancestrais mais distantes que viveram no paleolítico médio.

            Os recentes estudos da paleopatologia ajudam a compreender, às vezes a partir de pequeno fragmento de osso, as doenças de grupos de homens pré-históricos. É claro que esse parco conhecimento diz respeito às patologias ósseas ou aquelas que deixaram marcas nos ossos.

            De modo geral, as doenças que causaram dor aos homens e às mulheres no passado distante estão distribuídas em dois grupos: congênitas e adquiridas.

            As lesões hereditárias com sequelas ósseas encontradas foram: bifurcação de costela, formação óssea anômala no úmero, polidactilia e deformidades cranianas. Algumas má-formações raras, quando são encontradas repetidas vezes num sítio arqueológico, podem fortalecer a ideia de que a pessoa sepultadas pertenciam ao mesmo grupo familiar.

Contudo, a maior parte das lesões encontradas são de origem traumática em acidentes de caça ou em luta com outros homens.

As lesões traumáticas cranianas são as mais comuns. Em sítio arqueológico, próximo de Pequim, um grupo de onze indivíduos do grupo de Java, quatro crânios apresentaram perfurações traumáticas fatais. Em outra área de escavação, abrigando uma família do Paleolítico Superior, composta de sete pessoas, o mais velho apresenta fratura com depressão do temporal esquerdo, a mulher adulta tem fratura parietal esquerda e os outros crânios, pertencentes às crianças de diferentes idades, mostram traumatismos mortais na cabeça. No sítio mesolítico de Ofnet, na Áustria, foram desenterrados trinta e seis crânios, na maioria de crianças, todos arrancados dos corpos e, na maioria, com esmagamento dos ossos parietais provocados por objeto cortante. Dezenas de esqueletos foram recuperados com setas de sílex encravadas em diferentes ossos.

Os moradores das cavernas, provavelmente muito úmidas, nos períodos que abrangem mais de cem mil anos, sofreram os processos degenerativos causados pela artrite deformadora, conhecida como gota das cavernas, pelas doenças do periodonto e do raquitismo.

A absoluta necessidade de utilização dos dentes como instrumento para apreender e triturar o alimento cru, deixaram marcas profundas no aparelho mastigador. Algumas mandíbulas mostram dentes submetidos a tamanha abrasão que o desgaste alcança a polpa com marcas de abcessos. Por outro lado, a cárie dentária não foi assinalada antes do neolítico.

Não restam dúvidas da existência de estreita cooperação entre os bandos nômades que perambulavam no planeta há 400.000 anos. Um dos relatos mais interessantes da paleopatologia, entre muitos, descreve o esqueleto de um homem, achado na gruta La lave (França), ferido pela frente, com a ponta de uma seta de sílex encravada no sacro. Alguém arrancou a haste, cuidou dos ferimentos e alimentou-o enquanto permaneceu imobilizado.

A cooperação entre ancestrais imobilizados por doenças crônicas, que sobreviveram muitos anos, também é detectável através dos estudos da microscopia. A descoberta, em 1956, de alguns ossos de um Homo sapiens que viveu entre 70.000 e 40.000 anos, apresentando sinais de degeneração artríti­ca avançada ocasionando muita dificuldade na locomoção é prova contundente de que recebia alimentação e era auxiliado na locomoção por outros membros do grupo.

O conhecimento historicamente acumulado (CHA) foi o responsável pela aquisição de práticas médicas conservadoras utilizando o gelo, a água, o fogo, a fricção, a sucção, a saliva sobre a área ferida nos acidentes de caça ou de guerra e a imobilização do membro fraturado. O acesso ao corpo e aos seus processos primários de repeti­ção, o nascimento, as mudanças no corpo com o passar do tempo, a menstruação e a morte impostos por uma natureza desconhecida, foram gradualmente com­preendidos.

Por outro lado, as atitudes intervencionistas, uma espécie de cirurgia pré-histórica, estão comprovadas nas análises dos ossos longos, notadamente, úmero, fêmur e dedos com sinais de amputação. Contudo, a craniectomia ou trepanação pré-histórica, além de continuar intrigando os pesquisadores, é um marco da intervenção do homem sobre o homem.

Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram o homem pré-histórico a praticar a craniectomia (abertura e retirada voluntárias de um segmento ósseo do crânio), em diferentes períodos da pré-história, não podem ser dissociados, sob nenhum argumento, do contexto social que os impulsionou para o conhecimento do corpo através da convivência do sagrado com o profano.

          A trepanação foi realizada em duas circunstâncias distintas: seguramente, para reparar os acidentes violentos na cabeça com afunda­mento ósseo e, supostamente, obedecendo certos preceitos mágicos desco­nhecidos.

           A craniotomia pré-histórica permanece como um marco nas atitudes do homem na busca dos enigmas do corpo, ligadas ao sagrado e ao profano. Muitos deles foram abertos cirurgicamente em diferen­tes lugares da Europa, da Ásia e da África. Alguns dos indivíduos subme­tidos à trepanação sobreviveram por longo tempo, o suficiente para que as bordas do osso cortado se regenerassem parcialmente

          O local escolhido do acesso para cortar os espessos ossos cranianos parece ter tido uma significação específica, também ainda não esclarecida. Alguns povos faziam a craniotomia do osso temporal, ou­tros do parietal, retirando pedaços com forma geométrica diferente, de poucos centímetros, até grandes aberturas, como a do crânio achado em Collombey‑Muraz, na Suíça, feito através da órbita direita, da qual pro­vavelmente o doente não sobreviveu.

          A diversidade de como foram feitas contribuiu para supor que elas foram muito difundidas e fizeram parte de um conjunto maior de intervenções do homem no corpo humano, assinalando um momento específico na convivência entre o sagrado e o profano. O agente da cura deixou de ser mero espectador e intermediário da vontade divina, para tentar mudar, com a sua ação, o curso de um acontecimento na saúde.

          Não importa aqui qual tenha sido a principal motivação para que houvesse a concordância do especialista e do paciente, respectiva­mente, para fazer e aceitar a intervenção como necessária; o fato é que elas foram feitas e é muito pouco provável que tenham sido todas elas praticadas sob violência.

                 Os pesquisadores continuam a acirrada discussão acerca das indicações da cirurgia. Alguns acham que eram feitas com objetivo pura­mente religioso; outros, apostam que existiu realmente uma tentativa para sanar alguma queixa grave e permanente. Todavia, é indiscutível que em ambas as alternativas, tornava‑se necessário que a maioria dos mem­bros do grupo aceitassem que o objetivo a ser alcançado estava alojado dentro da cabeça.

          Essas práticas, feitas em grande número há mais de 10 mil anos, encon­traram a força necessária para a sua reprodução a   partir do momento em que o homem desejou mudar o curso da vida, depois de reconhecer a importância das funções vitais abrigadas na intimidade do cérebro.

          Os depoimentos de viajantes, dos séculos XVIII e XIX, que estiveram nas ilhas do Pací­fico, asseguram que o ritual da craniotomia entre aqueles povos era executada pelo feiticeiro para retirar os demônios e maus espíritos causadores de doenças.

          É, no mínimo, pouco sensato não concordar que tenha ocorrido a profunda integração do sagrado com o profano na sedução oferecida pelas trepanações.

          O fato que provavelmente nunca será completamente explicado é o porquê de a trepanação ter sido utilizada por diferentes povos da Euro­pa, Ásia, África e, mais recentemente, pelas civilizações da América pré‑colombiana, sem que os grupos humanos tenham tido ligações étnicas.

          Para quem já teve a oportunidade de ver a complexidade de uma craniotomia e observar a pulsação ritmada dos vasos sanguíneos da dura‑máter, logo abaixo do osso espesso que a protege, fica pensando como poderia uma cirurgia como esta ter sido executada há milhares de anos por diferentes povos em espaços e tempos tão diversos. A freqüência dela nas peças ósseas encontradas chega a surpreender. No sítio neolítico de Saint‑Martin‑la Rivière, na Áustria, foram desenterrados sessenta crânios dos quais cinco (8%) foram trepanados.

          Nas culturas pré‑incaicas, notadamente a Tiawanaku, e na incai­ca as escavações arqueológicas não param de revelar as múmias, magnifi­camente conservadas, que foram submetidas à trepanação em vida.

          A craniotomia pré-histórica serve para reforçar a tese do processo intervencionista do homem sobre o homem utilizando para este fim partes do corpo consideradas mais importantes e vitais. É claro que não é possível isola-las como práticas no Neolítico, já que foram praticadas nas civilizações americanas pré‑colombianas e nas ilhas do Pacífico, ha pouco mais de trezentos anos.

           A crescente complexidade da fala substituiu pouco a pouco a ação. Conforme os recursos da linguagem foram processando novos léxi­cos, tornava‑se menos necessário a ação. A explicação era sinônimo de “não fazer”. Se considerarmos que o ato pode ter antecedido a expli­cação, os primeiros rituais simbólicos poderiam significar a expressão do invisível no sentimento coletivo. Nesse caso, a craniotomia dava a quem executava, o curador, o poder de mostrar o que esta­va escondido dentro da caixa craniana, sem qualquer explicação verbal.

          A oposição entre o falar e o fazer é de fundamental impor­tância para que possamos acompanhar o caminho do homem para penetrar nos inesgotáveis mistérios do seu corpo. A oposição entre o dizer e o fazer já fazia parte dos lugares‑comuns da civilização, da literatura e, da língua grega. A tal ponto que, em muitos textos, a expressão “ele disse” tendia a ser entendida, se não fosse imediatamente corrigida, como “ele não fez”.

          Neste momento, torna‑se indispensável unir todos os elos disponíveis para ajudar no entendimento de como atuaram certas associações simbólicas no aparecimento da trepanação pré‑histórica.

          O culto do crânio é uma das mais importantes. É possível que o conhecimento empírico acumulado já fosse suficiente para dar ao homem a importância do conteúdo do crânio, já que uma pancada na cabeça tinha conseqüências imediatas muito mais graves do que outra de semelhante intensidade na perna. O resultado do traumatismo craniano fazia com que ocorresse a imediata perda dos sentidos, sequelas que podiam permanecer o resto da vida ou ocasionar a morte instantânea. Essa observação forneceu a sedução para que os nossos ancestrais iniciassem uma compreensão do crânio com o seu conteúdo como parte sagrada do corpo.

          O começo da atenção do homem para o valor da massa encefálica na vida de relação é suficiente para justificar o culto da sua estrutura protetora ‑ o crânio ‑ e a intencionalidade de abri‑lo, através das craniotomias, para conhecer e tomar posse das suas qualidades

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