CONSTRUÇOES DOS SABERES MÉDICO JUNTO AO DIREITO E À ÉTICA BUSCANDO O BOM, O BELO, O JUSTO

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Desde tempos ágrafos, os homens e as mulheres ora aliaram-se aos panteões, lutando para entender, sem aceitar, a finitude da vida frente à natureza circundante; ora, organizaram-se para viver mais e melhor desafiando a tirânica competência dos deuses e das deusas para curar.

A Medicina como paidéia é um dos marcos nessa parte da história da humanidade, onde está transparente o conflito de competência entre as três medicinas — oficial, empírica e divina — com o objetivo de ampliar os limites da vida. Esse processo complexo, oriundo desde os tempos imemoriais, alcançou o esplendor na Grécia do século 4 a.C.

Desse lá, permanece um ponto diferencial entre as três medicinas: só a medicina-oficial organizou estruturas teóricas para sustentar as práticas de curas, só registradas a partir das primeiras cidades, assim, de natureza muitíssimo mais recente do que as outras.

Do outro lado, também a partir dos primeiros registros escritos, os poderes organizadores dos núcleos urbanos mais antigos ampararam, ora mais, ora menos, as três medicinas, pendendo mais para uma ou para outra, na mesma proporção em que resolviam os conflitos sociais provocados pelo medo coletivo da dor e da morte prematuras das epidemias que poderiam enfraquecer a ordem social.

Desde os tempos ágrafos, a medicina-divina e a medicina-empírica evidenciam-se plenamente ancoradas nas práticas divinatórias e nos milagres e, menos, nos saberes empíricos historicamente acumulados. Por essas razões, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico trabalhados de maneira ametódica e casual, sem compromisso da compreensão das etiologias.

Por outro lado, a maior parte das experiências empíricas acumuladas permaneceu guardada pelos especialistas da coisa sagrada. Estes fatores representaram ásperos obstáculos para reproduzir os saberes fora dos restritos grupos dos representantes das divindades, enclaustrados nos silêncios que impedem as críticas e as respostas.

Essa evidência fica muito clara nas civilizações que se desenvolveram na Mesopotâmia e nas margens dos rios Indo e Nilo. Apesar do notável senso empírico, as práticas de cura permaneceram contidas nas amarras do sagrado, como assinala a tradição judaica em pelo menos três argumentos:

  1. O incrível poder do curador divino sobre a vida e a morte de tudo e de todos.

Dt 32: 39 — E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver. Sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra).

  1. Os saberes empíricos como dádivas divinas.

Sb 17: 20 — Ele me deu um conhecimento infalível dos seres para entender a estrutura do mundo, a atividade dos elementos, o começo, o meio e o fim dos tempos, a alteração dos solstícios, as mudanças de estações, os ciclos do ano, a posição dos astros, a natureza dos animais, a fúria das feras, o poder dos espíritos, os pensamentos dos homens, a variedade das plantas, as virtudes das raízes.

  1. O médico como representante reconhecido e festejado da divindade.

Eclo 38: 1-2 — Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços, porque o Senhor o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes.

A cultura grega, no século 4 a.C., absorveu as origens mais antigas da medicina-divina e da medicina-empírica mantendo a figura social do médico, em princípio, como dono do saber notável.

Sem abandonar a influência do divino sobre a vida e a morte, os cantos homéricos mostraram o claro destaque do médico como representante da medicina-oficial e agente social na luta contra os agravos à saúde (Ilíada XI, 510: Máxima glória dos povos arquivos, Nestor de Gerena, toma o teu carro depressa; ao teu lado coloca Macáon, e para as naves escuras dirige os velozes cavalos, pois é sabido que um médico vale por muitos guerreiros, que sabe dardos extrair e calmantes deitar nas feridas).

O mesmo médico homérico também marcadamente estava inserido no espaço sagrado das relações sociais. Os médicos Macáon e Podalírio, que se destacaram na guerra de Tróia, mencionado por Homero, são os dois filhos de Asclépio, o deus protetor das medicinas gregas.

Essa aparente dualidade homérica, onde as três medicinas mostram-se sobrepostas, reproduz uma herança sócio-cultural muitíssimo mais anterior à cultura grega, perdida no tempo da ontogenia, e que a genialidade de Homero tratou de expor.

O deus Asclépio, filho de Apolo com a mortal Corônis conquistou uma fama inimaginável. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Junto com as suas filhas Hígia e Panacéia, era celebrado em grandes festas populares, próximas do dia 18 de outubro, data em que, até hoje, se comemora o dia do médico no Ocidente.

No século 4 a.C., na Grécia, a medicina-oficial expondo abertamente o processo de conflito com outras medicinas, mas compreendida como arte, apresentava-se com clareza na estrutura dos saberes que procuravam desvendar a natureza visível e invisível.

A profissão médica estava tão bem sedimentada em sistemas de aprendizado que influenciou, profundamente, nos vinte séculos seguintes, os caminhos tomados pela medicina-oficial no Ocidente.

A medicina-oficial grega do século 4 a.C., concebida como ciência e, nessa condição, deveria valorizar a etiologia (Leucipo de Mileto In: Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: Nenhuma coisa se engendra ao acaso, mas todas a partir da razão e por necessidade). A busca pela etiologia da doença entendida como pressuposto do diagnóstico e da terapêutica estava escancara ao futuro: a fisiologia do corpo que amparava a prática dessa medicina-oficial estava ligada aos pré-socráticos, especificamente, aos filósofos jônicos, intérpretes da natureza circundante visível ou não por meio da tékhne.

Um dos fatos que torna essa reflexão fascinante é que, como hoje, longe de haver separação entre as práticas das três medicinas, a crença no poder de cura dos deuses e deusas e o empirismo continuaram fortes e coerentes com o universo cultural grego.

O herói grego continuou associado à cura de doenças e malefícios. O senso comum compreendia grande número de deuses e deusas possuindo, entre os principais atributos, o dom de sarar as doenças e as feridas de guerra (Platon. Oeuvres Complètes. Paris. Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Rep. 407d: — Por conseguinte afirmaremos que também Asclépio sabia isto, e que, para os que gozam de saúde física, graças a sua natureza e à sua dieta, mas têm qualquer doença localizada, para os que têm essa constituição, ensinou a Medicina, que expulsa as suas enfermidades por meio de remédios e incisões, prescrevendo-lhes a dieta a que estão habituados, a fim de não prejudicarem os negócios políticos.

Contudo, o médico atuava muito além do espaço sagrado, continuava exercendo a arte de adivinhar, porém sobre um sistema teórico coerente que observava e interpretava os sinais da natureza visível e invisível.

Esse avanço de dimensões gigantescas ­— a Medicina como paidéia — possibilitou estabelecer a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Desse modo, a Medicina como paidéia feriu profunda e mortalmente o predomínio da medicina- divina e da medicina-empírica sobre a medicina-oficial.

A associação entre as idéias da Escola Médica de Cós, sob a liderança de Hipócrates, com a filosofia jônica, sem dúvida, possibilitou um avanço de dimensões gigantescas ­— a Medicina como paidéia — estabelecendo a ponte que ligaria, para sempre, a busca da etiologia das doenças ao diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Desse modo, a Medicina como paidéia abriu o caminho para a dominação da medicina-oficial sobre a medicina-divina e medicina-empírica. É possível que com esse objetivo central, os conceitos jônicos da natureza tornaram-se as principais medidas da medicina-oficial. As normas alcançaram os significantes das enfermidades entendendo-as como desvios da natureza e em maior amplitude, mudança na physis do homem.

É possível compor cinco alicerces fundamentais da physis embutidos na Medicina como paidéia:

– Como universalidade e individualidade: todas as coisas têm a sua physis própria, os astros, os ventos, as águas, os medicamentos, o homem com as suas partes e as doenças (Das Epidemias, distingue: ”…a physis comum de todas as coisas, da physis própria de cada coisa”;

– Como princípio: a physis é o princípio (arkhé) de tudo que existe (Sobre os Lugares e o Homem, lê-se: “A physis do corpo é o princípio da razão da Medicina”).

– Como harmonia: na sua aparência e na sua dinâmica a physis é harmoniosa; é a ordem que se realiza com beleza. A natureza é harmoniosa e produz harmonia;

– Como racionalidade: a natureza é racional em si mesma. Por esta razão existe uma fisiologia; a ciência na qual o logos do homem se harmoniza diretamente com os logos da natureza;

– Como divindade: a physis é em si mesma divina.

É possível que esse caráter divino da physis estivesse transparecendo a necessidade de o senso comum manter a medicina-oficial ligada à medicina-divina e à medicina-empírica ou, sob outra perspectiva, não ser possível a completa separação entre as três medicinas.

Esse é um dos aspectos mais interessantes na Medicina, na Grécia, do século 4e a.C.: mesmo sem ataques aos deuses protetores da saúde, em especial, o deus Asclépio, os médicos de Cós e os filósofos estabeleceram elos duradouros entre o binômio saúde-doença com a natureza circundante, como está presente na introdução do manuscrito Dos Ventos, Águas e Regiões, de autor desconhecido, escrito no século 4 (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855. p. 1050):

Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto a sua essência especificada e quanto as suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelas características de cada região. Deve ter presente também os efeitos dos diversos gêneros de Águas. Estas distinguem-se não só pela densidade e pelo saber, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais nada, a posição que ela ocupa em relação as várias correntes de ar ao curso de sol (…) assim como anotar o que se refere as águas (…) e a qualidade do solo (…) Se conhecer o que diz respeito a mudança das estações e do clima, o nascimento e o ocaso dos astros, conhecerá antecipadamente a qualidade do ano. Pode ser que alguém considere isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem, está relacionada com a mudança do clima”.

As doenças deixaram de ser compreendidas sem método e passaram a compor parte da busca da etiologia. Esse é um dos pontos fundamentais da medicina-oficial grega, do século 4, marcando a união entre a filosofia jônica e os conceitos de saúde e de doença. Entre as muitas conseqüências é possível identificar:

– Cada doente ficou compreendido como um doente, diferente de todos os outros;

– Desaparecimento gradual da receita médica que valia para todos, como uma receita de bolo.

O centro de confluência dessa nova estrutura aproximou-se da teoria dos Quatro Elementos, do filósofo e médico Empédocles (495-435 a.C.). Segundo o magistral filósofo de Agrigento, os corpos são formados por quatro elementos eternos que permanecem em constante movimento: fogo, terra, água e ar.

Estava em curso, pela primeira vez, uma proposta teórica para explicar a origem das doenças divorciada dos deuses e deusas. Toda e qualquer enfermidade seria conseqüência do desequilíbrio entre um ou mais elementos.

Como toda mudança profunda nos saberes, a passagem da medicina-divina e da medicina-empírica, ambas ametódicas, mais ou menos mágicas, para a medicina-oficial metódica, unindo o diagnóstico, prognóstico e o tratamento valorizando a busca da etiologia, encontrou resistência em muitos setores da sociedade grega. Para contornar esses estorvos, os médicos expunham, como os sofistas, perante o público, os problemas determinados pelas doenças que poderiam causar a morte e a dor fora de controles.

Não é demais repetir que Platão, sistematizou o pensamento corrente da época ao descrever a nova postura do médico e do político. Ambos, baseados nos respectivos saberes, deveriam sempre que necessário, intervir na sociedade para promover melhoras. O diálogo platônico estabelece alguns parâmetros da nova posição social do médico atuando como agente da Medicina como paidéia no magistral Político (296a-b-c) (Planton. Oeuvres Complètes. Paris. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2.):

“Estrangeiro: É interessante. Dizem, com efeito, que se alguém conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão que for necessário para promover melhoras na sociedade.

Sócrates, o Jovem: Muito bem! Não estarão eles certos?

Estrangeiro: Talvez. Em todo o caso, se alguém dispensa esse consentimento e impõe a reforma pela força, que nome se dará a esse golpe? Mas, espera. Voltemos primeiro aos exemplos precedentes.

Sócrates, o Jovem: Que queres dizer?

Estrangeiro: Suponhamos um médico que não procura persuadir seu doente, senhor de sua arte, impõe a uma criança, a um homem ou uma mulher o que julga melhor, não importando os preceitos escritos. Que nome se dará a essa violência? seria por acaso o de violação da arte e erro pernicioso? E a vítima dessa coerção não teria o direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobras perniciosas e ineptas por parte de médicos que as impuseram.

Sócrates, o Jovem: Dizes a pura verdade.

Estrangeiro: Ora, como chamaríamos aquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto?”

A autoridade de Platão não foi suficiente para estancar as resistências dos curadores da medicina-divina e da medicina-empírica, que muito mais numerosos do que os médicos de Cós, promoveram manifestações públicas contra a nova força da Medicina como Paidéia junto ao poder político.

 

O corte separando o antes e o depois, nos saberes da Medicina como paidéia, encontra-se no livro Das Doenças Sagradas, de autor desconhecido, do século 4 a.C.:

Quanto à doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras”.

Pela primeira vez, uma enfermidade foi explicitamente assentada no domínio da tékhne, após ser retirada do domínio dos deuses e deusas curadoras. Não é demais repetir que também nessa época, na ilha de Cós, ocorreu o ápice da medicina-oficial grega. O genial Hipócrates, o principal representante da Escola de Medicina de Cós, foi reconhecido como o marco nos saberes médicos por Platão (Protágoras 313b-c e Fedro 270c) e, posteriormente, por Aristóteles (La Politique. Paris. J. Vrin. 1989. p. 484).

Os integrantes da Escola de Cós construíram o maior legado da Medicina como paidéia: a teoria dos Quatro Humores, aqui considerada como primeiro corte epistemológico da Medicina. Na realidade, a proposta teórica uniu elementos reconhecidos da Filosofia e da Medicina. Para cada elemento de Empédocles foi associada uma categoria teórica, capaz de unir com coerência as qualidades da natureza com as do corpo.

A teoria dos Quatro Humores, atribuída a Políbio, está descrita no manuscrito Da Natureza do Homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855:

O corpo humano contem sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra, que estes elementos constituem a natureza do corpo e são responsáveis pelas dores que se sentem e pela saúde que se goza. A saúde atinge o seu máximo quando estas coisas estão na devida proporção em relação umas às outras, no que toca a sua composição, força e volume além de estarem devidamente misturadas. A dor surge quando há excesso ou falta de uma destas coisas, ou quando uma delas se isola no corpo em vez de estar misturadas com as outras”.

A Medicina como paidéia saltou do domínio casual e ametódico para o método construído em torno da busca da etiologia nos desequilíbrios dos humores. O diagnóstico acompanhava o prognóstico e a terapêutica para identificar o excesso ou da falta do humor desequilibrado. Como conseqüência, os tratamentos se voltaram para excretar as sobras por meio de vomitórios, sudoreses, diureses, diarréias e sangrias. O prognóstico se materializava na boa ou na ausência de resposta à terapêutica.

A aceitação da teoria dos Quatro Humores por alguns médicos da Escola de Cós, não atenuaram os embates com alguns filósofos, em certa medida, defensores da medicina-empírica e da medicina-divina, ambas livres das medidas de mensurações impostas pelo entendimento jônico da natureza.

Esses conflitos aparecem em dois textos:

– O filósofo Heráclito de Éfeso (540-470), de genialidade exclusiva, é contundente na antipatia aos médicos (Os Pré-Socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo. Abril Cultural. 1978. p. 297: “Os médicos, quando cortam, queimam, e de todo o modo torturam os pacientes, ainda reclamam um salário que não merecem, por efetuarem o mesmo que as doenças”;

– O autor desconhecido de Sobre a Medicina Antiga, do século 4 a.C., testemunha certo conflituoso entre alguns médicos e filósofos, no qual repudiaram de maneira enfática, a generalização de todas as doenças estarem estritamente ligadas somente aos quatro elementos de Empédocles: (DAREMBERG, 1855. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “1. Que no caso de um doente afetado por uma alimentação crua e curado por uma alimentação cozida, não é possível dizer o que foi eliminado da direita, se o calor, se o frio, se a umidade ou a secura; 2. Que não existe um quente absoluto que possa ser misturado para curar o frio, uma pessoa tem de tomar água quente ou vinho quente ou lente quente e a água o vinho e o leite tem propriedades diferentes que serão mais eficazes do que o calor”.

Em alguns trechos da mesma obra, Hipócrates também sustenta que o corpo humano é composto por grande número de coisas de naturezas diversas: salinas, amargas, doces, ácidas, adstringentes, insípidas, etc. e não só de quatro componentes. Essa posição hipocrática é intrigante porque, em última análise, pode ser entendida como resistência à teoria dos Quatro Humores do genro Políbio.

De certo modo, a contestação hipocrática traduz o conflito que alcançou outros filósofos para reduzir a saúde e a doença somente aos quatro determinantes da teoria doa Quatro Humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra). É possível que os médicos da Escola Médica de Cós tenham sofrido influência de Alcméon, filósofo e médico de Crotona, no Sul da Itália, que admitia um grande número de forças atuando nos corpos (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris. Les Belles Lettres. 1981. p. 289-383). No livro Da Natureza do Homem, atribuído a Políbio, na mesma época, ressalta as idéias de Alcméon (Jouanna, J. Hippocrate et l’École de Cnide. Paris. Les Belles Lettres. 1974 p. 137- 174), o defensor da idéia de a saúde ser dependente do equilíbrio de múltiplas forças dinâmicas e a doença seria o predomínio de uma sobre as outras.

Platão (República 407b-c-d-e) adotou o modelo médico dos tempos homéricos. É possível que essa leitura platônica tenha contribuído para ativar o conflito de competência entre a Medicina, voltada à interpretação da natureza por meio da tékhne, e a religião. Em aparente contraditório, Platão retoma a Medicina como téhkne ao distinguir as diferenças entre as práticas Medicinais entre pobres e ricos. O filósofo critica o modo como os médicos dos escravos correm de um paciente para outro e dão instruções rápidas sem falar com os doentes e os compara com os médicos dos homens livres (Leis 720a-b-c-d-e):

“Se um deles ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se a natureza de todos os corpos, morreria de rir e diria no que a maioria das pessoas chamadas médicos replica prontamente em tais casos: — O que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico”.

Em certos aspectos, médicos e filósofos estavam de acordo. Tanto Platão (Platon. Oeuvres Complètes. Paris: Ed. Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade. 1950. v.1, v.2. Banquete, 186-187)  quanto Hipócrates (Darembrg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris: Labe Éditeur. 1855), reconheceram como insofismável a obrigação do médico em esclarecer o doente de todos os aspectos da enfermidade. Aristóteles (Aristote. La Politique. Paris: J.Vrin. 1989. I, 11, 1282) vai mais longe e distingue o médico do homem culto em Medicina, estabelecendo o espaço que cada um pode ocupar nas suas funções específicas.

A relação da medicina-oficial com a natureza que os gregos tão bem assimilaram ao atingir o social, em sistemas de valores e respostas claramente configurados, reforçava-se como paidéia. Nesta perspectiva, foi evocada por Sólon ao descrever os elos entre as doenças pessoais e coletivas com a desorganização social. Baseado nesta relação, esse legislador fundamentou parte do seu pensamento político afirmando que as crises políticas interferiam na qualidade da saúde de uma população.

 

Platão (Górgias 464b, 465a, 501) utilizou parte da estrutura teórica da medicina-oficial grega como instrumento para compor algumas linhas mestras da sua concepção ético-filosófica. Nesse genial processo, estabeleceu valor significante à verdadeira tékhne, como forma de conhecimento na natureza do objeto destinado a servir ao homem.

Os conceitos platônicos confirmaram o médico como a pessoa que, baseada no que sabe sobre a natureza do homem sadio, conhece também o contrário, o homem doente, e competente para encontrar os meios para restituí-lo à saúde.

Com base neste modelo, Platão traçou a imagem do filósofo tendo a mesma função no trato da alma. Existiu, neste ponto do pensamento platônico, uma semelhança viva entre o médico e o filósofo, ao se completarem na busca da harmonia plena do homem com a natureza.

Os médicos gregos interpretaram um dos mais complexos problemas do diagnóstico: as múltiplas formas como uma mesma doença pode se manifestar. Para superar o estorvo, os teóricos das escolas de Knido e Cós viabilizaram classificações descrevendo essas manifestações, mas reconhecendo-as como uma doença (Thivel, Antoine. Cnide et Cós? Paris.  Les belles Lettres. 1981). O genial dessa nova interpretação, nunca antes usada, é o fato de ter evitado o erro cometido nas medicinas-oficiais anteriores, praticadas nas primeiras Cidades, onde as muitas manifestações clínicas da mesma moléstia eram consideradas doenças diferentes. Esse método foi identificado por Platão como dissecação ou divisão dos conceitos universais nas suas diferentes classes (Cornford, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. 2. ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1981).

A Medicina como paidéia também contribuiu para que Platão reconhecesse as três virtudes do corpo ¾ saúde, beleza e força ¾ que harmonizariam com as quatro virtudes da alma ¾ piedade, valentia, moderação e justiça.

As atitudes educadoras da Medicina como paidéia ultrapassaram os limites da terapêutica e incluíram a massagem, a prática dos esportes, a música , a dança, o teatro e os banhos coletivos no cotidiano da busca da saúde. No texto Das Epidemias (Darember. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855), da Escola de Cós, esta idéia está clara:

A arte do médico consiste em eliminar o que causa dor e em sarar o homem, afastando o que o faz sofrer. A natureza pode por si própria conseguir isto. Se sofro for estar sentado, não é preciso mais que levantar-se; se sofre por se mover, basta descansar. E tal como neste caso, muitas coisas da arte do médico a natureza as possui em si própria”.

Também é possível sentir, ao longo do século 3 a.C., o vigor da ação médica ligada à noção global da natureza jônica. O livro Das Epidemias confirma os conceitos de harmonia e medida (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855): “ … o esforço físico é o alimento para os membros e para os músculos, o sono é para as entranhas. Pensar é para o homem o passeio da alma”.

Nesse sentido, o médico era chamado para recompor a saúde, por meio de técnicas desconhecidas dos não médicos. Para esse fim, utilizava os saberes como instrumento de leitura da natureza, como a justa medida da saúde. Hipócrates e os médicos da Escola de Cós, na obra Da Medicina Antiga, seguiram esse pressuposto ao afirmarem que o médico não pode saber de Medicina nem tratar os seus doentes sem conhecer a natureza do homem (Daremberg. Oeuvres Choisies d’Hippocrate. Paris. Labe Éditeur. 1855: “... os argumentos deles apontam para a Filosofia tal como a de Empédocles e de outros que escreveram sobre a natureza e descreveram o que o homem é desde a origem, como primeiro surgiu e de que elementos é constituído”.

A concepção teórica de saúde dos gregos também envolveu a harmonia. Sendo de natureza harmônica em si mesma, isto é, preenchendo na medida e simetria exatas as vicissitudes individuais, a saúde deveria ser procurada neste contexto da compreensão do normal. Sob essa mesma perspectiva, Platão (Fédon, 93e; Leis 773a; Górgias 504c) entendeu a saúde como a ordem do corpo e Aristóteles (Aristote. Ética a Nicômaco. X 1180b) associou o multiplicidade do comportamento moral às múltiplas dietas prescritas pelos médicos para as febres, mas não para todas as febres.

A tendência classificatória do pensamento grego, especialmente o aristocrático, estimulou as tentativas de ordenar as doenças em grupos que apresentassem alguma semelhança no diagnóstico, no tratamento e no prognóstico.

Com a literatura médica contendo as recomendações específicas das normas que deveriam ser obedecidas para evitar a doença, a medicina-oficial grega inicia outra importante contribuição para consolidar-se como paidéia ¾ a saúde não dependeria só dos médicos. A dieta, a higiene, o laser, a cultura, o esporte são partes do corpo são.

Os hospitais construídos nesse período eram grandes e possuíam divisões destinadas aos médicos e enfermos. O hospital da Escola Médica, na ilha de Cós, possuía salas de salas de exames, alojamentos individuais para os doentes, salas de banhos coletivos, praça de esportes e anfiteatro para dez mil pessoas. É um dos muitos exemplos de como a arquitetura grega amparava o discurso teórico da harmonia com a natureza na busca da saúde.

O novo espaço da Medicina como Paidéia junto aos conceitos jônicos com objetivos educadores, contribuíram para o surgimento das mais importantes obras médicas destinadas ao público não médico. Essas obras, Da Dieta, De um Regime de Vida Saudável e Da Natureza do Homem contêm fantásticas sugestões de como deve ser a vida das pessoas para evitar as doenças. Entre muitos aspectos, descrevem detalhes da caminhada após cada refeição dependendo da idade e das condições físicas de cada pessoa nas diferentes estações do ano.

A palavra higiene se impõe no sentido regulador não só da alimentação, mas também como caráter educativo na rotina do trabalho. A ginástica passou a fazer parte da manutenção da saúde. Por esta razão, os ginastas permaneceram independentes frente ao crescente poder médico nas relações sociais e também conquistaram papel importante no aconselhamento do corpo sadio.

O texto De um Regime de Vida Saudável se propõe servir de guia ao público. O autor desconhecido estabeleceu os parâmetros da cultura médica mínima que todos deveriam ter para permanecerem saudáveis. O objetivo central seria estabelecer, pela lei, o caminho que as pessoas deveriam seguir para evitar a doença.

O propósito parece ser o mesmo do autor do livro Da Dieta que aborda, em quatro capítulos, a teoria dos Quatro Humores. Se as patologias eram causados pelo desequilíbrio dos humores ¾ o sanguíneo, o linfático, o bilioso amarelo e o bilioso negro ¾ e estavam relacionadas com ao cotidiano das pessoas, nada mais lógico do que estabelecer normas alimentares com o intuito de evitar os males da alimentação.

A estrutura teórica da Medicina como paidéia, na Grécia, no século 3 a.C., estava tão bem elaborada que perpassou o mundo romano. No século 2 d.C., o médico Galeno (138-201), o mais conhecido representante da medicina-oficial romano-cristã, acoplou aos humores da Escola de Cós as novas categorias denominadas temperamentos. Os escritos galênicos, valorizados durante mais de quinze séculos, no Ocidente cristão, valorizava a sangria sobre todas as alternativas de tratamentos. Para cada humor haveria um temperamento que ditaria as condições de saúde, de doença, e da capacidade intelectual de cada indivíduo:

 

Humor                                     Temperamento
 
Sanguíneo                             Sanguíneo
Fleuma                        Linfático
Bilioso preto                            Melancólico
Bilioso amarelo                      Colérico

 

A imensa flexibilidade da Medicina como paidéia acabou ferida, na Idade Média, pela intolerância restritiva exaltando a medicina-divina, onde Jesus Cristo e os Santos ao substituírem os deuses e deusas greco-romanos, tornaram-se a única terapêutica requerida pelos incontáveis doentes sem esperanças, nos incontáveis santuários, especialmente em Jerusalém e Compostela.

A influência hipocrático-galênica trazida pelo elemento colonizador esteve claramente presente no Brasil, quando a princesa Paula Mariana, filha do primeiro imperador do Brasil, sob os cuidados dos mais importantes médicos da corte, faleceu após ser submetida às muitas sangrias e clisteres para expurgar os “maus humores”. No século 19, quando o viajante Von Martius descreveu o temperamento dos índios como “fleumático, por terem pouco sangue nas veias”.

 

 

 

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