AÇÕES INTENCIONAIS E REPETIDAS NOS CORPOS PARA EMPURRAR OS LIMITES DA VIDA: ADESÕES E CONFLITOS

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Entre os anos 1950 e 1970, de modo geral, nos países industrializados, os cursos de Medicina, desvincularam-se ainda mais das relações históricas do doente e das doenças. Esse fato pode ter contribuído para acentuar a desinformação sobre quanto representa o papel da Medicina, desde a pré-história, no processo de busca, para manter a solidariedade na relação médico-paciente, aumentar a materialidade e diminuir a abstração na abordagem da saúde e da doença.

O processo que culminou com a Medicina como especialidade social, com avanço e recuos, tem proporcionado:

– Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;

– Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;

– Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.

É mais difícil ao médico da atualidade compreender a Medicina sem olhar para trás e apreender a dinâmica social co-relacionada às práticas de curas.

Esses saberes históricos, negligenciados pelos que optaram exclusivamente pela tecnologia médico-hospitalar, facilitam o entendimento da função do médico, como um dos especialistas sociais que trabalha para evitar a dor e empurrar os limites da morte.

Sob esse enfoque – as práticas de curas – não comportam a dissociação entre o presente e o passado distante. As práticas de curas constituem história de longa duração, iniciado na pré-história, antes de a nossa espécie ter promovido o sedentarismo. Os registros arqueológicos daquela época se mostram suficientes para que as análises paleopatológicas possam caracterizar algumas ações intencionais e repetidas do ancestral sobre o corpo do outro com o fito de adiar os limites da vida.

É possível que as comunidades ágrafas de caçadores e coletores tivessem na busca da sobrevivência cotidiana e na observação das mudanças, em torno da natureza circundante e do corpo, grande parte da atenção. As relações entre a vida-morte e saúde-doença deveriam estar entre as mais significativas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva. Esse conjunto pode ter provocado a especialização de alguns membros que se interessaram em controlar as situações de risco à vida.

Nessa fase, quando o nosso ancestral começou a tentar modificar os determinismos dos binômios vida-morte e saúde-doença, iniciou o extraordinário processo com o objetivo de diminuir a abstração e aumentar a materialidade das ações que pudessem evitar a dor e empurrar os limites da vida.

Essas pessoas diferenciadas fizeram-se curadores!

Naquele contexto, os nossos ancestrais distantes, os curadores, marcados pela generosidade e cooperação como instrumentos mentais que os distinguiam dos outros animais, alguém que cuidava do outro, fragilizado ou ferido, impossibilitado de se movimentar ou cuidar da própria segurança, iniciou a construção dos elos de confiança entre o curador e o doente, bases sustentadoras da Medicina como especialidade social.

Os registros paleopatológicos indicam a existência de práticas de curas, na pré-histórica, alguns milhares de anos antes dos documentos escritos na Mesopotâmia. Um desses conjuntos bem documentado data de aproximadamente 45.000 anos, no Pleistoceno Superior. Trata-se do esqueleto de um Neandertal, descoberto no monte Zagros, no Iraque, com traços de amputação intencional, no braço direito, com a marca indiscutível de o osso ter sido seccionado com a ajuda de objeto cortante e, no coto amputado, sinal de crescimento ósseo, comprovando que o hominídeo viveu muito tempo após a amputação, suficiente para proporcionar o crescimento ósseo do úmero. Sem que jamais saibamos a razão pela qual o hominídeo teve o braço amputado, comprova que um ou mais membros praticaram a ação dirigida no corpo de outro, para adiar os limites da vida.

Existem outras ações curadoras bem documentadas, como a encontrada no osso rádio de ancestral que viveu em torno de 25.000 anos, com sinal de fratura traumática consolidada após ter sido reduzida de modo correto e imobilizada, demonstrando que recebeu ajuda por outro membro do grupo social.

Sem dúvida, fora das lesões determinadas pelos traumas, acidentes e embates dos nossos ancestrais entre eles e com outros animais, doenças causadas por vírus, fungos e bactérias deixaram marcas nos ossos dos pré-históricos que existiram antes da nossa espécie.

A questão maior é tentar desvendar como esses grupos de caçadores e coletores se relacionavam com as doenças na luta pela sobrevivência.

A análise do registro paleopatológico pode estabelecer algum paralelismo da ação curadora exercida pelo homem pré-histórico com certos grupos étnicos ágrafos, de caçadores-coletores, como os bosquímanos, na África, e indígenas no noroeste do Amazonas.

A paleopatologia mostra que homens e mulheres pré-históricos estavam sujeitos a diversas doenças semelhantes as do homem moderno. A fratura traumática constituiu uma das mais freqüentes nos fósseis estudados. Em alguns, foram confirmados sinais evidentes de graves formas de osteomielite, lembrando as encontradas nos hospitais de hoje.

Do mesmo modo, se comprovou a existência de doenças sistêmicas, não traumáticas, como a denominada gota das cavernas, uma espécie de reumatismo do homem pré-histórico que certamente dificultava a locomoção. Nesse caso, alguém fornecia o alimento e a guarda desse ancestral fragilizado, sugerindo ação plena de generosidade e cooperação.

Com exceção do corpo congelado de um caçador, que viveu em torno de 6.000 anos, encontrado nos Alpes, na Suíça, as pesquisas arqueológicas jamais encontraram outros corpos ou órgãos anteriores a essa época. Por outro lado, foram identificadas várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica no homem atual, existe desde o Pleistoceno Médio, isto é, há mais de 100.000 anos. A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico freqüente nos países subdesenvolvidos, foi documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico dessa doença.

A ocorrência de moléstias na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para controlar a dor, conservar a saúde e empurrar os limites da vida. Sob essa perspectiva, é possível articular respostas comparativas com o comportamento de certos animais, quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem limpeza mútua e comem plantas eméticas. Parece lógico pressupor que o homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira: lambendo a área ferida, pressionando o local para parar a hemorragia dos ferimentos traumáticos e utilizando recursos da natureza circundante para interromper a dor, como a amputação intencional realizada no hominídeo encontrado na sepultura pré-histórica do monte Zagros.

Perdura a questão de quando iniciou, na hominização, uma das mais importantes mudanças no sistema nervoso central, o aparecimento do neocórtex e das ligações com diferentes níveis encefálicos, capaz de construir as concepções abstratas, que poderiam ter culminado em mudanças do pensamento-comportamento capazes de construir idéias abstratas na busca de cura das doenças.

Na gruta de Trois Frères, nos Pirineus franceses, continua desafiando a imaginação coletiva a pintura do personagem, em movimento de dança, datada de 10.000 anos, travestido de cervo, em atitude que sugere uma espécie de ritual, semelhante aos movimentos do chamam, na dança dos bisões, dos índios, no norte dos Estados Unidos, e do pajé, no norte do Amazonas, ambos em cerimônias simbolizando o poder animal na cura das doenças.

O conjunto das informações paleopatológicas, no Neolítico, em torno de 10.000 anos, sugere fortemente a efetiva incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem. Essas atitudes, algumas vezes foram muito agressivas, como a trepanação do crânio com instrumentos suficientemente fortes para cortar regularmente os ossos do crânio em formas geométricas bem definidas. Essa extraordinária prática é facilmente comprovada por meio do estudo dos fósseis. E mais, alguns desses homens pré-históricos que sofreram a craniotomia sobreviveram muito tempo após a realização, o suficiente para favorecer o crescimento do osso cortado.

É interessante assinalar que craniotonias semelhantes as do Neolítico europeu, também foram executadas, até o século 16, em outras sociedades que não tiveram contato interétnico, como as da Polinésia francesa e as do  altiplano peruano nos tempos pré-coloniais.

Restará sempre a dúvida do por que as craniotomias terem sido realizadas. De qualquer modo, não há como negar que representou conjunto de ações absolutamente extraordinárias, na medida em que uma parte do corpo, o conteúdo do crânio, foi exposta intencionalmente, desvendando o escondido atrás da pele e do osso.

É possível que o curador pré-histórico tenha exercido, simultaneamente, funções de liderança. Essa demonstração explícita de poder – um homem mortal igual aos outros, intervindo no corpo do outro – resultaria em grande destaque no grupo social.

Respeitando as devidas proporções, essa relação de dominação do curador sobre o objeto da sua prática – o doente –, sob alguns aspectos, perdura até os dias atuais. Esse poder do curador, na pré-história como nos dias atuais, poderia aumentar o nível de persuasão sobre o doente, tendo como base dois dos pontos de maior sensibilidade humana: o pressuposto de a ação intencional do curador poder interromper a dor fora de controle ou aumentar os limites da vida.

Esse processo complexo, da fuga da dor e da morte, pode ter sido um dos pilares sustentadores que edificaram os ancestrais distantes para aperfeiçoar a linguagem e transmitir os saberes., também na construção do curador.

Com o sedentarismo avançando, no Neolítico, importantes modificações foram se processando nos grupos sociais que habitavam as terras férteis da Mesopotâmia e do Egito. Essas sociedades arcaicas iriam absorver parte da experiência acumulada. Nessa fase, ocorreu o início da modificação da economia produtora, passando do nível de subsistência coletiva à concreta divisão do trabalho, com o aparecimento do excedente de produção e das trocas comerciais. As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. Também surgiram as propriedades privadas, que possibilitaram os assentamentos duradouros dos antigos grupos de caçadores e coletores, que evoluíram para a organização das primeiras aldeias.

As cidades foram sendo formadas e fortalecidas, nas margens de lagos e rios piscosos e nas rotas de migração dos grupos caçadores e coletores. Entre as mais festejadas, destacaram-se as que obtiveram avanços na guarda territorial e poder de guerra de conquista de novos territórios: a babilônia e a egípcia. Esses povos, aqui compreendidos como civilizações regionais, decididamente, influenciaram as culturas posteriores por terem assimilado, ao longo de vários milênios, diferentes formas de governos, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista.

As transformações urbanas também provocaram reconstruções das idéias e crenças religiosas com o aparecimento dos templos, para abrigar os deuses e deusas, e uma nova hierarquia social formada e homens e mulheres identificados como intermediários das divindades: sacerdotes e sacerdotisas.

É possível que o atávico medo da morte e da dor fora de controle tenha desempenhado papel importante para que essas pessoas, aceitas como representantes das divindades, também fossem entendidas capazes de realizar curas, por meio da ação dos deuses bons e evitar a intervenção dos deuses maus. Dessa forma, é possível que os primeiros médicos, assim entendidos pelo poder político dominante, tenham se formado nos templos, como núcleos de ensino do conhecimento historicamente acumulado.

Nessas sociedades rigidamente hierarquizadas, como na egípcia e mesopotâmica, as mudanças sociais induzidas pela urbanização, moldaram a ação dos curadores em torno de três vertentes, sem que existissem limites precisos, formadas por homens e mulheres especialistas, compreendidos como capazes de controlar a dor e empurrar os limites da morte.

– Medicina-divina:

Com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e taumaturgos. Os agentes representados pelos representantes das divindades: sacerdotes e sacerdotisas, que construíam ladainhas e cânticos para facilitar a intervenção dos deuses bons e evitar os demônios causadores de doenças;

– Medicina-empírica:

Utilizando o conhecimento historicamente acumulado a partir dos recursos terapêuticos da natureza circundante. Os agentes estavam entre parteiras, herveiros, os que sabiam reduzir e imobilizar as fraturas, incisar abscessos, massagistas e outros que dominavam o conhecimento historicamente acumulado dos remédios retirados das plantas.

– Medicina-oficial:

Muito mais recente do que as anteriores, tendo o único agente, o médico, presente e nominado nas primeiras cidades, da Mesopotâmia e do Egito, mantendo claro vinculo com o poder político dominante e por ele remunerado. Por essas razões sujeito às sanções disciplinares moldadas pelo mesmo poder dominantes, como o claramente exposto no Código de Hammurabi.

As enormes mudanças sociais que alcançaram os descendentes, já sedentários, dos antigos caçadores-coletores, também impuseram reconstruções nas práticas de curas, naquele momento, já envolvendo os agentes da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, continuamente interligados, sem que se possa determinar o início da ação de um e o fim da do outro:

– Apreensão do conjunto de conhecimento historicamente acumulado, oriundo da pré-história, voltado às ações que poderiam interromper ou amenizar a dor fora de controle:  agentes da Medicina-empirica;

– Utilização de ritos das idéias e crenças religiosas, para buscar a cura: agentes da Medicina-divina;

– Processo formador, nos templos das divindades dominantes, sob a guarda do poder político, capaz de transmitir e registrar nas respectivas linguagens escritas, os saberes envolvendo os dois anteriores acrescidos de outras observações das doenças e dos doentes: agentes da Medicina-oficial.

As guerras que ofereceram os saques, novos escravos e territórios, fortaleceram a troca de conhecimentos entre os agentes de curas.  Também é provável que os mais destacados tenham sido absorvidos nas sociedades vencedoras. Por outro lado, os traumas provocados pelo combate corpo a corpo, acrescentaram outros saberes, principalmente, no manuseio das grandes feridas, incisão de abscessos, imobilização das fraturados e nas amputações dos membros dilacerados.

Os metais foram fundidos e o cobre utilizado em várias atividades produtivas. A agricultura tomou corpo com os arados primitivos. Apareceu o barco com vela e o uso do ferro. Esses fatos da nova vida social contribuíram para aumentar as trocas do excedente da produção, fortalecendo a maior especialização e a propriedade privada dos mais poderosos.

Outro extraordinário desdobramento da construção do pensamento subjetivo, já claramente presente no neolítico, a crença no renascimento após a morte, conduziu ao sepultamento ritual das pessoas prezadas, acompanhado de grandes quantidades de carne e artefatos de pesca e caça junto aos esqueletos, que, de acordo com o professor Leroi Gurhan presente desde 20.000. Esse cuidado importou manuseios específicos do corpo morto, junto aos rituais religiosos, para a conservação após a morte. Essa conduta alcançou níveis de grande sofisticação entre os egípcios.

Nas sociedades que floresceram, em torno de 4.000 anos, nas margens dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e Indo, além dos agentes da Medicina-empírica e Medicina-divina, os registros identificam os médicos, como agentes da Medicina-oficial, nominados de acordo com as funções e especialidades e remunerados pelo poder político dominante,

A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários segmentos sociais, suficiente para originar conflitos muito freqüentes, gerando mal-estar social e obrigando o legislador intervir. O rei Hammurabi (1728-1688 a.C.), da Babilônia, dedicou vários parágrafos do seu famoso código para disciplinar o exercício da Medicina, impondo prêmios e castigos. Nos parágrafos 218 a 223, está claro que: o médico era reconhecido e ocupava espaço importante nas relações sociais numa sociedade claramente hierarquizada.

Somente é possível entender as severidades das penas como espelho do problema social gerado pelo grande número de conflitos oriundos da má prática, todas de procedimentos cirúrgicos:

218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos de cidadão) uma incisão difícil com uma faca de bronze e o causou a morte do awilum ou abriu o nakkaptum (sobre a sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão;

219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto;

220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço;

221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico 5 ciclos (cerca de 40 gramas) de prata;

222 – Se foi filho de um muskenum: dará 3 ciclos (cerca de 24 gramas) de prata;

223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono de escravo dará 2 ciclos (cerca de 16 gramas) de prata.

Com isso o Código de Hammurabi, como a primeira manifestação de poder dominante de práticas médicas laicizadas, firmou conceito e jurisprudência de dois pontos cruciais da ordem médica:

– Sanções que os médicos devem receber pela má prática;

– Honorários diferenciados pela prática de bons resultados em pessoas dos diversos grupos sociais.

Tanto as sanções quanto as punições eram diretamente proporcionais ao enquadramento social e financeiro do doente, quando mais próximo do poder dominador estivesse o doente, maior o honorário pela prática de bom resultado e mais severa a penalidade pela prática que resultasse em sequela incapacitante ou morte, incluindo a amputação das mãos. Ao contrário, se o doente fosse um escravo, a remuneração era menor e o castigo mais brando.

Os registros apontam não terem ocorrido grandes diferenças entre as ações médicas nas sociedades que se desenvolveram nas margens dos rios Tigre, Eufrates e Nilo, no segundo milênio a.C. Nessas civilizações regionais, apesar dos avanços, não existia nenhum esboço teórico desvinculado das idéias e crenças religiosas para compreender a saúde e as doenças. Cada moléstia era compreendida como unidade única com indissolúvel componente dependente da vontade de um ou mais deuses ou deusas. Como conseqüência da divinização da saúde e da doença, só outra ação divina ou humana ajudada pelo deus ou deuses protetores poderia desfazer o nó causador de sofrimento.

Um dos antigos documentos escritos que registra a participação do médico, no antigo Egito, data de início do segundo milênio a.C., na estela funerária de Was-ptah, onde está descrita uma morte por colapso cardíaco. Ainda no Egito, nesse período, já existia diferenças entre as práticas médicas, traduzindo certa especialização. Um médico da corte Khaui, na IV Dinastia, faz clara distinção entre cirurgiões e médicos, que se dividiam em três especialidades: os que tratavam das doenças dos olhos, dos dentes e do corpo.

As traduções dos papiros médicos trouxeram esclarecimentos de como ocorriam as práticas médicas, pelo menos nas camadas sociais mais abastadas, com registros de muitas doenças e os respectivos tratamentos, com extraordinário bom senso.

– Papiro de Ebers:

O nome é do primeiro comprador George Ebers, que adquiriu, em 1872, de um comerciante egípcio. Hoje, está na Universidade de Leipzig, na Alemanha. O autor ou autores do Papiro de Ebers escreveram o texto em torno do ano 1550 a.C., no reinado de Amenophis I. Alguns especialistas acreditam ser cópia de outro papiro mais antigo. O Papiro de Ebers tem 20 metros de comprimento e contem um conjunto de informações de natureza médica, incluindo 875 receitas. Entre outros registros de impressionante acuidade e bom senso, se destaca a descrição do infarto do miocárdio: “Se examinares um homem que sofre do estômago, se queixa de dores no braço e no peito, mais precisamente na parte lateral… Diz-se então que se trata de doença wid… Deves dizer: é a morte que se aproxima dele…”.

– Papiro de Smith:

Encontrado numa tumba, em Tebas, datado de 1570 a.C., comprado por Edwin Smith, em 1862, um jovem egiptólogo americano. Como o Papiro de Ebers, é sugestivo ser compilação de outros registros anteriores. O texto trata de bem ordenado conjunto de informações de anatomia e procedimentos cirúrgicos. A instrução 35 descreve com precisão o tratamento da fratura bilateral da clavícula: “Se você estiver examinando um homem com fraturas nas clavículas, encontrando uma mais curta e em posição diferente da outra, então você tem de dizer: trata-se de fratura de ambas as clavículas, uma enfermidade que eu trato. Você deve então deitá-lo de costas dobrando algum objeto para colocá-lo entre as omoplatas. Depois deverá afastar as omoplatas para que as duas clavículas retornem ao lugar certo. Faça então dois chumaços de tecido, um deles deve ser colocado no lado de dentro da parte superior do braço; o outro, na parte inferior do úmero. Depois, imobilizar a fratura com atadura com mineral…

– Pequeno Papiro de Berlim:

Escrito em 1540 a.C., na 17ª. Dinastia, contém prescrições em forma de encantamentos para proteger as mães e os filhos.

– Grande papiro de Berlim ou Brugsch:

Escrito em 1540 a.C., também na 17ª. Dinastia, é o mais específico: medicação para tratar parasitas intestinais. É possível analisar a importância desse receituário na medida em que a civilização egípcia se desenvolveu nas margens do rio Nilo, aproveitando as margens ricas de humos das várzeas, onde também estavam os animais domesticados, determinando facilidade à infestação intestinal.

 

– Papiro de Londres:

Descreve ritos de natureza religiosa para tratar doenças dos olhos e das mulheres.

– Papiro de Kahoun:

O mais antigo dos papiros médicos, escrito em torno de 2.000 a.C., trata do diagnóstico e tratamento das doenças ginecológicas, da gestação e do parto.

– Papiro de Cheaster Beatty:

Escrito em torno de 1330 a.C. descreve as doenças do ânus e os respectivos tratamentos.

Apesar da extraordinária qualidade das informações contidas nos papiros médicos, se torna evidente a ausência do processo teórico para entender a saúde e a doença fora dos poderes dos deuses e deusas dos panteões egípcios. O conjunto informativo sugere que os tratamentos eram empregados como receitas de bolos.

De modo geral, o conhecimento historicamente acumulado moldando os saberes empíricos da natureza circundante, sob a guarda dos médicos, estava presente nas terapêuticas contidas nesses papiros. Mesmo à luz dos conhecimentos atuais, não há como duvidar da extraordinária eficácia. Entre outros exemplos:

– Recomendação do chá de sementes da papoula aos recém-nascidos insones;

– Digital aos idosos com taquicardia e edema nas pernas;

– Identificação dos diferentes tipos e sequelas dos traumas crânio-encefálicos;

– Imobilização dos membros fraturados.

Não é demais repetir que nessas culturas regionais também está clara a inter-relação da Medicina-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, sempre atadas entre si, sem que seja possível estabelecer os limites onde uma começava e a outra terminava:

– Medicina-divina: com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e taumaturgos;

– Medicina-empírica: utilizando o conhecimento historicamente acumulado a partir dos recursos terapêuticos da natureza circundante;

– Medicina-oficial: representada pelas práticas de curas realizadas médicos, desfrutando de reconhecidos e remuneração pelo poder dominante, mas com forte vínculos com as anteriores.

Apesar da utilidade prática dos monumentais conteúdos dos papiros de Ebers e de Edwin-Smith, a prática da Medicina-oficial egípcia estava longe de constituir um sistema organizado. Não é demais repetir a ausência de estrutura teórica para explicar a saúde e a doença fora do domínio das crenças e idéias religiosas. A resultante dessa condição estava atrelada no fato de cada doença ser considerada uma entidade mórbida em si mesma.

Além de a Medicina praticada no Egito, a que era feita na Babilônia, também apresentava característica semelhante: ausência da estrutura teórica para entender a saúde e a doença fora dos domínios do sagrado.  Entre muitos exemplos, a Medicina-divina babilônica considerada as doenças como castigo do deus Shamash, que presidia a justiça.

As práticas médicas que se desenvolveram nessas cidades-estados, mesmo com a estrita vinculação religiosa, todas apresentam notáveis registros da eficácia dos saberes historicamente acumulados articulando o uso empírico dos recursos da natureza circundante. Confirmando que, paralelamente, existiam a Medicina-empírica e a Medicina-oficial que utilizavam remédios oriundos de plantas medicinais: beladona, anis, óleo de rícino, gengibre, hortelã, romã e a papoula, que continuam sendo utilizados até hoje, por milhões de pessoas em vários continentes.

Nessa fase, em torno da primeira metade do segundo milênio, as pesquisas arqueológicas nas principais cidades, mostraram importantes mudanças introduzidas para melhorar as condições sanitárias, pelo menos nas partes mais ricas, próximas aos palácios da administração: redes de esgotos, abastecimento de água potável, de fazer inveja as periferias urbanas de muitos países.

Não há porque duvidar que essa melhoria arquitetônica, mesmo somente voltada aos ricos e influentes, também fora relacionada às informações patrocinas pelas primeiras experiências do sedentarismo, nas margens dos grandes rios e lagos, e com a efetiva participação dos médicos, agentes da Medicina-oficial, interessados que as doenças observáveis nos grupos mais pobres, onde não existiam cuidados com os excrementos e sem água potável, não alcançassem os mais ricos.

É importante salientar que o progresso na melhoria da condição de vida das pessoas que podiam desfrutar da água potável e do esgoto sanitário, nas próprias casas, certamente, não acessível aos mais pobres e escravos, não estava estritamente ligado às idéias e crença religiosas; se tratavam de objetivos concretos ligados à saúde e à doença.

Existe, no Museu de Louvre, em Paris, um vaso achado na região de Lagash, apresentando o símbolo do deus da cura – Ningishzida – com dois dragões coroados e duas serpentes entrelaçadas num bastão. É possível que a solidez desse símbolo mítico – a serpente – ligado à cura de doenças de alguma forma já estivesse fortemente presente nas gerações anteriores. Só assim é possível explicar por que tenha sobrevivido durante tanto tempo, metamórfica, na Medicina greco-romana, na serpente entrelaçada no bastão, representando Asclépio, o deus grego da Medicina, e adotada pelos médicos até hoje.

Essa solidez simbólica pode estar acoplada ao fato de a serpente ter relação com a requerida transcendência humana, podendo renascer após a morte: a cobra pode viver acima e abaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos, e, especialmente, como nenhum outro animal, de tempos em tempos, substitui a pele, marcando a capacidade de renascer em vida.

A grande mudança das práticas médicas, ocorreu na Grécia, na primeira metade do século 5, durante a administração de Péricles, na consolidação da cultura grega ligada à cidade-estado (do grego = pólis) com estrutura político-jurídica defendendo a liberdade de escolha do cidadão livre, portanto pequena parcela da sociedade.

Nesse conjunto, sobressaindo Hipócrates e seus seguidores, na ilha de Cós, entre outros extraordinários filósofos, constituiu o esplendor da nova visão das relações do homem com a saúde e a doença.

 

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