Práticas médicas no período greco-romano

 

Práticas médicas no período greco-romano

 

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Considerações gerais

Apesar de as praticas médicas, na Grécia e Roma antigas, mostrarem alguns aspectos de continuidade, em muitos outros guardas características próprias que sofreram ajustes importantes aos movimentos sociais e políticos.

Dessa forma, os dois serão considerados separadamente.

 

Grécia

 

Considerações gerais

 

A formação grega antiga tem as suas raízes nas invasões da península itálica pelos indo-europeus, no segundo milênio a. C. No século 8 a. C., chegam a essa região os regos, cartagineses e etruscos, povos mais adiantados em relação aos primeiros invasores.

Entre os séculos 8 e 6 a. C. várias cidades são organizadas, contudo Atenas e Esparta se destacam com melhor organização social. Por essa razão, o confronto armado entre elas, a guerra do Peloponeso, no século 5 a. C., tornou-se inevitável e contribuiu para enfraquecê-las.

Em 359 a. C., Filipe da Macedônia, com 23 anos de idade, frente a um numeroso exército organizado, conquistou todas as cidades gregas. Com a base grega consolidada, seu filho Alexandre, o Grande, iniciou a anexação militar do imenso Império persa.

De modo geral é possível estabelecer quatro períodos na Medicina grega antiga:

 

Primeiro período ou mitológico

 

Mais abundante entre os séculos 10 e 7 a. C. e foi caracterizado pela essência mitológica, na qual os numerosos deuses do panteão grego são os responsáveis pela saúde e pela doença dos homens e das mulheres.

 

Segundo período ou filosófico

Inicialmente, liderado pelos filósofos pré-socráticos, teve o marco fixado no século 6 a.C., quando foi iniciada a dissociação entre a Medicina e as idéias e crenças religiosas.

Terceiro período ou hipocrático

 

Desenvolveu-se em torno de Hipócrates e dos seus seguidores, no século 4 a. C., na ilha de Cós, quando foi descrita a primeira teoria geral ¾ teoria dos Quatro Humores ¾ para explicar a saúde e a doença, representando a consolidação da ruptura da Medicina com os deuses.

 

Quarto período ou pós-hipocrático

 

Está relacionado com o surgimento das correntes médico-filosóficas, em Alexandria, logo após a morte de Hipócrates, no ano 377 a. C., que defendiam o dogmatismo e o empirismo.

Primeiro período ou mitológico

 

A maior característica do panteão grego, dessa fase, é o caráter humano dos seus deuses, isto é, além de antropomórficas, as divindades eram materializadas como as mais bonitas, mais fortes, mais apaixonadas, mais viris do que os humanos, sempre encarregados de proteger tudo e todos em setores específicos da visa social.

Entre as centenas de deidades, os relacionados com a saúde e a doença recebiam especial deferência:

– Afrodite: deusa da beleza e do amor, desfrutava de imensa importância na solução dos problemas sexuais;

– Hera: mulher de Zeus, protegia as mulheres grávidas das complicações do parto;

– Panacéa: deusa de todas as curas;

– Hermes: filho de Zeus e de Hera, era o mensageiro e o intérprete dos deuses;

– Héracles: adepto da hidroterapia, utilizava plantas Medicinais com efeitos sedativos;

– Asclépio: os primeiros registros desse importante deus grego datam de 1260 a. C., na Tessália. Filho do poderoso Apolo com a bela e mortal Coronis, foi educado pelo centauro Quirão, o mestre do saber médico. Em conseqüência do seu extraordinário poder de ressuscitar os mortos, Asclépio foi elevado a suprema posição de deus da Medicina. Contudo, Zeus, outro influente deus grego, enciumado com o destaque de Asclépio e receoso que a ordem mortal do mundo fosse afetada pelas ressuscitações, decretou a sua morte com os raios dos Cíclopes. A cobra enrolada num bastão se tornou a símbolo do deus da Medicina grega. A tradição mitológica grega identifica a família de Asclépio constituída de dois filhos: Macaon, o mestre da cirurgia, e Podalírio, o inigualável clínico; e duas filhas: Hígia, aquela que assegura a prevenção das doenças, e Panaceia, o símbolo do remédio para todas as doenças.

A Medicina homérica, isto é, as descrições de conteúdo médico na Ilíada e na Odisséia, também estão contidas nesse período e podem ser agrupadas em quatro princípios que interligam o poder dos deuses taumaturgos à saúde e à doença:

 

Primeiro princípio: as doenças são resultantes da punição divina e representam a cólera dos deuses

Essa era a tradição predominante nas culturas escravistas, incluindo os povos mesopotâmicos, indianos e egípcios antigos.

Nos cânticos homéricos, na Ilíada, os soldados gregos foram vítimas da ação da flecha maligna do poderoso Zeus. Por outro lado, algumas patologias como a epilepsia e os distúrbios do comportamento eram consideradas como doenças sagradas. Nessa época, no mundo grego, não havia uma palavra que designasse com clareza a idéia de alma ou espírito.

Tanto na Ilíada quanto na Odisséia, Homero descreveu com precisão muitas estruturas anatômicas, que incluíam ossos, partes moles, vísceras e órgãos. Sem dúvida, para que tivesse ocorrido esse detalhamento seria necessário que o autor tivesse conhecimento da anatomia, embutido numa complexa relação com os saberes historicamente acumulados.

Esse fato leva ao claro pressuposto de que, de certa forma, a abordagem anatômica do corpo humano, de modo lúcido, disseminada entre a parcela letrada da sociedade. Como exemplos, podemos citar:

– Ossos = ostéa leuká;

– Medula espinhal = myelós;

– Vértebra = astrágaloi e sphondýlioi;

– Porção anterior do tórax = stérnon;

– Ombro = õmos;

– Mão = kheír;

– Articulação coxo-femural = iskhíon;

– Pele = pous;

– Encefálo = enképhalos;

– Olho = ophthalmós.

Por outro lado, incluíam erros como os de citar, indistintamente, os tendões da mão, visíveis sob a pele, como tendões e nervos.

As feridas traumáticas, oriunda dos esportes ou da guerra, eram igualmente consideradas, quase sempre interpretadas por três possibilidades:

– Tipo da lesão: superficial ou profunda; causada por ferro ou pedra;

– Gravidade: mortais e não mortais;

– Localização anatômica.

Essa extraordinária análise crítica, mais uma vez, demonstrando a ligação entre a Medicina-divina e a Medicina-empírica, concebe a origem das doenças em três segmentos:

– Traumática: todas as determinadas pelo trauma de qualquer natureza;

– Divina: sempre punitiva, como a peste do Canto I, da Ilíada;

– Ambiental: causada por causas externas não traumáticas, como frio ou calor.

Os tratamentos estavam contidos em três alternativas:

– Cirúrgico: com ênfase quase exclusivo às feridas da guerra;

– Medicamentoso: a palavra phármakon que significava remédio ou veneno;

– Dietético: valorizando as práticas de higiene, a ginástica e a alimentação saudável.

 

Segundo princípio: os segredos e o meios da cura são da exclusivos dos deuses:

Nos Cantos III e IV, da Ilíada, Homero descreve Aquiles, discípulo de Asclépio, curando com a impostação das mãos.

 

Terceiro princípio: os homens dispõem de conhecimento anatômico para estudar e curar certos ferimentos:

De certa forma, em várias passagens da Ilíada, ocorre clara fronteira de certas feridas que podem ser curadas pelos homens e outras que são saradas pelos deuses. Na primeira referência, nos Cantos XIII e XXII, os guerreiros se tratam entre si; na Segunda, quando o ferido é um personagens mais poderosos, como o rei Menelau, a cura é realizada por Machaon, filho de Asclépio.

 

Quarto princípio: as plantas e os cuidados de higiene podem colaborar na cura.

Esse tipo de tratamento é exclusivo dos ferimentos superficiais. O medicamento conhecido como pharmaka é aplicado sobre as feridas. De maneira genial os gregos entenderam que tão importante quanto a tratamento médico eram os cuidados com a higiene pessoal e coletiva. Nesse sentido, foram intensificadas as construções de abastamento de água potável e instalações sanitárias públicas.

Esse rico contexto que interligava as três Medicinas divina, empírica e oficial era amparado pela existência de templos ricamente decorados, onde os sacerdotes também dedicavam-se à cura divina e a adivinhação. Um dos mais famosos e respeitados foi o santuário de Delfos, no qual as sacerdotisas eram intérpretes das enigmáticas mensagens dos deuses protetores e vingadores.

Essas consultas divinas da saber da saúde e da doença, da vida e da morte do povo, dirigidas em torno de ritos especiais, pressupunham dois aspectos norteadores:

– Indissolubilidade entre as idéias e crenças religiosas e a terapêutica: a doença era uma punição divina e, dessa forma, só o representante da divindade, o sacerdote, poderia apaziguar a fúria do deus vingador;

– Interação entre a Medicina-divina e a Medicina-empírica: os registros apontam para a certeza de que os sacerdotes eram profundos conhecedores das plantas Medicinais, regras de higiene, dietas adequadas e da ginástica terapêutica.

– A presença constante, nos templo gregos, de Asclépio acompanhado dos seus filhos Machaon e Pdalírio e das suas filhas Hígia e Panacéia, representam a extraordinária relação entre as Medicinas divina, empírica e oficial, onde a prevenção das doenças, a saúde perfeita e o tratamento do trauma deveriam estar protegidos pelo deus da Medicina grega. A maior parte dos santuários que se notabilizaram na prática da Medicina-divina eram dedicados ao culto de Asclépio, espalhados nas principais cidades gregas, recebiam as dádivas dos doentes que registravam as curas.

A diversidade do panteão grego, é de fundamental importância ao esclarecimento do quanto era forte a papel dos deuses taumaturgos. A data atual de comemoração do dia do médico – 18 de outubro – corresponde, à época em que era celebrada a festa do filho de Apolo, Asclépio, o deus da Medicina grega.

O estudo da representação social de Asclépio no panteão grego é identificada na rebeldia à ordem divina. O deus grego da Medicina causou medo aos outros deuses do Olimpo na medida em que ele curava as doenças e evitava a morte.

Asclépio conquistou uma fama inimaginável. Nos templos a ele dedicados, esse deus era capaz de curar os doentes durante o sono. Tinha a deli­cadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirur­gião. Todos os doentes que não obtinham cura em outros oráculos procuravam os serviços médicos de Asclépio.

Asclépio foi educado pelo centauro Quirão, o exímio conhecedor das plantas medicinais, mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos e por essa razão foi ful­minado por Zeus com os raios dos Cíclopes. Zeus matou o filho de Apolo porque temia que a ordem natural das coisas fosse subverti­da pelas curas e pela ressurreição dos mortos.

O episódio da morte de Asclépio, motivada pelo ciúme de Zeus, retrata o marco da resistência dos homens e das mulheres contra os deuses.

Como já foi dito, o deus da Medicina grega deixou duas filhas (Hígia e Panacéia) e dois filhos (Machaon e Podalírio ). As duas mulheres se notabilizaram pelos conhecimentos empíricos ligados à higiene e às plantas Medicinais. Os dois homens ficaram de tal modo famosos como médicos guerreiros praticando a cirurgia, na guerra de Tróia, que foram citados nominalmente por Homero (Ilíada, 830). A maior parte das esculturas e dos afrescos retratando Asclépio contêm uma serpente enrolada em um bastão.

 

Os filósofos gregos e a Medicina

        Pré-socráticos

         

Uma das primeiras característica do pensamento pré-socrático foi a determinação de desvendar a origem de tudo. Esse primeiro momento é chamado período cosmológico porque os filósofos estavam empenhados em explicar o cosmo e a sua realidade última a fisis.

Essa posição é traduzida pelas propostas dos filósofos em torno da busca do elemento comum formador de tudo e de todos.

Tales

Tales nasceu em Mileto, importante cidade da Jônia, na Ásia Menor. Os seus principais representantes propuseram diferentes elementos como representação desse elo formador comum.

Reconhecido como filósofo da natureza foi o primeiro dos pensadores gregos a receber o nome de sábio e, de modo claro, a declarar, como os egípcios, quase dois mil anos antes, a alma como entidade imortal. Entre as principais observações, assinalou a associação do Sol e da Lua com os eclipses e os equinócios. É o autor da máxima conhece-te a ti mesmo.

A água foi compreendida como o elemento fundamental da essência de tudo e de todos.

É certo ter ocorrido certa influência do conhecimento egípcio sobre o grego. Além dos registros da ida de alguns filósofos ao Egito, a presença de papiros com escrita hieroglifa, encontrado em cidade grega, reforça essa afirmativa.

 

 

 

Anaximandro

Também nasceu em Mileto e propôs o ilimitado como o elemento mais importante, sem precisar se se tratava do ar, água ou outra coisa.

 

Anaxímenes

Também nasceu em Mileto e foi discípulo e sucessor de Anaximandro. Ele afirmou ser o ar o elemento fundamental.

 

Pitágoras

Pitágoras casceu na ilha de Samos e exerceu as suas atividades em Crotona, no sul da Itália, no ano 530 a. C. As linhas mestres do pensamento desse filósofo foram transcritas por Filolau, um dos membro dessa comunidade que adotava os preceitos comuns de maneira dogmática.

Os seguidores de Pitágoras viviam em comunidade e guardavam segredo sobre suas atividades. Também adotavam a temperança e o vegetarianismo, embora, sem que haja uma explicação plausível, houvesse o tabu de comer lentilhas.

É possível que a prática vegetariana fosse decorrência da metempsicose ou teoria da transmigração da alma. Segundo essa proposta, após a morte a alma passa para outros seres vivos. Dessa forma, os pitagóricos abstinham-se de carne porque poderiam abater um animal que fosse a morada da alma do amigo morto.

A maior parte das idéias desenvolveu-se na investigação das propriedades dos números, já que os pitagóricos acreditavam serem os números a origem e a forma do mundo. Para eles, a matemática constitua a base moral para a conduta e os números, os fundamentos da filosofia e da vida. O princípio harmônico dor números que governava o universo ¾ o macrocosmo ¾ refletia-se no microcosmo, o corpo humano.

Na cidade de Crotona, na Itália Meridional, onde floresceu o pensamento pitagórico, era também famosa por abrigar escola médica liderada por Alcmeon, contemporâneo de Pitágoras.

No seu livro On nature (Sobre a natureza), Alcmeon descreveu com maestria:

– Os nervos ópticos;

– A trompa de Eustáquio, que comunica a orelha média com a fossas nasal;

– O cérebro a fonte do intelecto e dos sentidos;

– Três fatores principais que afetavam a visão: a luz externa, o fogo interno e o líquido contido no olho;

– Distinguiu as veias das artérias;

– Descreveu os distúrbios funcionais do cérebro;

– Propôs explicação para o sono e a morte sendo o sono causado pelo refluxo sangüíneo do cérebro para as veias e, quando ocorresse alteração nesse sistema, a morte seria inevitável;

– Ampliou a concepção de Empédocles e acrescentou outros elementos para explicar a saúde e doença. Assim, a boa e a má saúde dependiam de uma combinação de elementos opostos como quente e frio, molhado e seco, doce e azedo, e assim por diante;

– A doença era causada pela perturbação desse equilíbrio, isto é, a má nutrição , a dieta irregular ou inadequada e fatores externos como o clima e a altitude.

 

Xénofane

Nasceu em Colofon e desenvolveu as suas atividades em Eléia. Defendeu teses contrárias as de Tales e Pitágoras:

– Os elementos fundamentais são quatro ;

– Os mundos são ilimitados e não diferentes uns dos outros;

– A substância de deus é esférica e em nada se parece com a dos homens;

– Deus é inteiramente intelectual, consciente e eterno.

Em diálogo de oposição à Empéclodes que declarou ser impossível encontrar um sábio, respondeu: Realmente, é necessário ser sábio para reconhecer o sábio.

 

Parmênides

Filho de família ilustre e rica, nasceu em Eléia e foi aluno de Xénofane. Foi o primeiro a afirmar a forma esférica da Terra e que estava situada no centro do mundo. Admitiu dois elementos fundamentais: o fogo e a terra. O primeiro agindo como demiurgo, e o segundo como matéria.

 

Zenão

Zenão foi contemporâneo de Pitágoras e de Demócrito. Também nasceu em Eléia e discípulo de Xenófane ou de Parmênides. Os historiadores o atribuem como o fundador da dialética, assim como Empédocles foi o da retórica.

Uma das suas máximas, diz: Se aquilo que existe não possui grandeza (volume), não existe. Se existe, é necessário que cada existência tenha uma certa grandeza (volume), uma certa espessura e que mantenha uma certa distância em relação ao outro.

 

Melissos

Nasceu em Samos e viveu na época de Zenão e de Empédocles e freqüentou as conferências de Heráclito. Esse sábio grego defendia a teoria de ser tudo infinito e que nada se poderia falar dos deuses porque eles escapavam ao conhecimento.

 

Heráclito

Heráclito de Éfeso era de descendência rica e nobre. Dos seus escritos restaram vários fragmentos originais que revelaram seu pensamento peculiar. Aparentemente não fundou nem pertenceu a nenhuma escola. A estrutura central da compreensão do mundo desse extraordinário filósofo está contida no logos, como o verdadeiro constituinte das coisas e o portador da verdade absoluta, universal e eterna, independentemente do indivíduo.

Entre as suas máximas, destacam-se:

– Todas as coisas são constituídas a partir do fogo e se dissolvem em si mesmas;

– Tudo acontece de acordo com o destino de cada um;

– O fogo é um elemento e todas as coisas são mudadas pelo fogo e nascem a partir da condensação e da rarefação.

i. Empédocles

Nasceu em Agrigento, em torno do ano 500 a. C., entre muitas obras, escreveu um poema, Da natureza, composto em dois livros com mais ou menos dois mil versos e um texto de Medicina em prosa.

Defendia a teoria na qual o mundo seria constituído de quatro elementos inalteráveis que em partes iguais formavam tudo e todos ¾ terra , ar , fogo e água.

Associou a teoria dos quatro elementos para compreender a anatomia humana, desvendando o coração como o centro de sistema circulatório: o sangue fluindo incessantemente, enquanto o pneuma, ou sopro de vida, era distribuído pelo corpo, através dos vasos sangüíneos. Ao valorizar o ar, ele acrescentou que a respiração não se restringia aos pulmões, mas também ocorria pelos poros.

Produziu incontáveis associações entre a proporcionalidade entre os quatro elementos fundamentais ¾ terra , ar , fogo e água ¾ compondo condições perceptíveis como o calor, frio, umidade e secura, para explicar a origem das partes que compõem o corpo humano e as ma formações congênitas inclusive.

 

Leucipo e Demócrito

Do ponto de vista de similitude do pensamento é difícil separar esses dois pensadores gregos.

Ambos contemporâneos de Sócrates, não sabe-se ao certo as cidade nas quais nasceram Leucipo e Demócrito. Alguns afirmam ter sido em Eléia, outros em Abdera e Mileto.

Ambos admitiam:

– Todas as coisas são ilimitadas e se transformariam umas nas outras;

– Os átomos são ilimitados em número e o vazio ilimitado em tamanho;

– O cheio e o vazio, respectivamente, denominados de ser (pleno de vida) e não-ser (sem vida) são formados de elementos ¾ átomos;

– O movimento é eterno;

– As coisas seriam revestidas com membrana protetora formada de átomos recurvados;

– Os corpos atômicos são dotados de movimento aleatório e se movimentam continuamente;

– A alma é formada de fogo.

 

Período platônico-aristotélico

 

Platão

Platão nasceu em Atenas, no ano de 428/427 a.C., no demo de Colitos. Segundo Diógenes Laércio, o seu pai, Aríston, descendia de Codro. A sua mãe, Perictíone, irmã de Cármides e prima de Crítias, o tirano, descendia de Drópides que, ainda segundo Diógenes Laércio, seria irmão de Sólon. O filósofo tinha dois irmãos mais velhos, Adimanto e Glauco, e uma irmã, Potone, que foi a mãe de Espêusipo. O pai, Aríston, deve ter morrido cedo, pois a mãe voltou a casar com Pirilampo, com quem teve um filho chamado Antífon.

Quando Platão morreu, só restava da família uma criança chamada Adimanto, neto do seu irmão. O grande pensador grego fez dele o seu herdeiro e as fontes registram Adimanto como membro da Academia, no tempo de Xenócrates.

Na Grécia antiga, era costume escolher o mesmo nome do avô para o primeiro filho, desta forma é provável que Platão tivesse o nome de Arístocles, como o avô. Existem dúvidas das razões pelas quais prevaleceu o nome Platão, aliás comum naquela época. Diógenes Laércio conta que esse nome lhe foi dado pelo seu professor de ginástica por causa da sua estatura, contudo não existe consenso entre os historiadores sobre essa questão.

A família de Platão possuía propriedade próximo de Kefissia, no Cefiso, onde o filósofo, certamente, aprendeu a amar a vida no campo, talvez pela exigência da melhor educação, deve ter passado a maior parte da infância na cidade.

Como parte desse aprendizado esmerado, como convinha à criança de alta estirpe, aprendeu primeiro a honrar os deuses e a observar os ritos da religião. Platão guardaria durante toda a vida esse respeito pela religião e iria torná-lo claro no livro Leis. Além da ginástica e da música, que constituíam a outra base da educação ateniense, também estudou desenho e pintura. Nessa fase, compôs tragédias, poemas líricos e ditirambos.

O estudo da filosofia foi orientado por Crátilo, um dos discípulos de Heráclito. Com vinte anos de idade teve o primeiro encontrou com Sócrates.

Desajeitado e trajando vestes descuidadas, o reverso dos sofistas, Sócrates começou a falar nas praças. A profundidade dos discursos sempre procurando verdades e valores mais sólidos fez com que, pouco a pouco, aumentasse o número de discípulos e de admiradores.

Uma das maiores determinações de Sócrates era a busca dos conhecimentos verdadeiros e universais, identificados por ele na virtude. Com a arma da ironia, levava o seu interlocutor a descobrir dialeticamente a falta de base de suas opiniões e, em conseqüência, a própria ignorância fundamental. Continuando o diálogo, conduzia o interlocutor, pelo método da indução, a passar do particular para o geral, fazendo nascer ¾ maiêutica ¾ o conhecimento verdadeiro por meio das definições do saber racional, universal e imutável ou seja a essência da realidade.

Sócrates negava o valor da autoridade e da tradição como critério de verdade e optou pela reflexão livre e convicção racional. Argumentava sobre a certeza objetiva da própria razão, fundamentalmente, como a capacidade humana de se conhecer ¾ conhece-te a ti mesmo. Pretendia organizar de modo racional e ético a vida pessoal e coletiva identificando o conhecimento à virtude, posição também adotada por Platão.

Contudo, é importante ressaltar que Sócrates não ensinou o que é o bem ¾ conteúdo ¾, mas ressaltou o caminho do bem ¾ método. Essa postura socrática, inclusive a dura crítica às aparências, se por um lado prepararam o gênio de Platão, por outro foi tragicamente mal entendido por outros discípulos, para quem a censura aberta à autoridade e à tradição representava na prática a completa perda das crenças religiosas e hábitos morais que, em última análise, serviam como suportes para os restringir os impulsos humanos destituídos de honra e virtude.

Sob essa terrível denúncia, Sócrates foi acusado de perverter os jovens e de ser ateu. Condenado à morte, pagou com a vida a sua extraordinária busca da verdade.

A influência de Sócrates sobre Platão foi tão grande que, sobretudo nas suas primeiras obras, é difícil distinguir quem de fato, está falando: se o mestre ou o discípulo. Em muitos escritos platônicos, Sócrates é apresentada como o tipo ideal do filósofo e o mártir do seu pensamento e da busca da verdade e do bem.

Platão nunca aceitou a injustiça da condenação e em vários livros renasce Sócrates com as mais belas palavras sobre a verdadeira piedade e sobre a reta educação da juventude. Na parte final do Fedro, 118, onde relata de maneira emocionante a morte do insuperável mestre, Platão define Sócrates: o homem… que, entre todos os de seu tempo, era o melhor, o mais sábio e o mais justo.

O certo é que a História continua reverenciando Sócrates e não se lembra dos nomes dos seus algozes.

Depois da morte do seu mestre, Platão retirou-se para Mégara, junto de Euclides e de Terpsíon, também discípulos de Sócrates. Parece que, algum tempo depois, retornou à Atenas e junto aos seus irmãos, se engajou nas campanhas militares de 395 a 394 a. C, na guerra de Corinto. Não deixou registros dessa fase, mas preconizou os exercícios militares para desenvolver o vigor.

Como era comum, naquela época, a grandeza do saber estava relacionado ao conhecimento de outros povos e lugares. Em torno do ano 390 a.C., foi ao Egito levando uma carga de azeite para pagar a viagem. A civilização egípcia, com pouca variação, há milhares de anos, influenciou o pensamento de Platão quanto ao pressuposto de ser preferível que os governantes mantenham o equilíbrio social em torno de antigas idéias do que forçar a obediência coletiva às novas ordens.

Do Egito, dirigiu-se para Cirene, onde freqüentou a escola do matemático Teodoro, que seria um dos personagens do seu livro Teeteto. De Cirene, viajou para a Itália, onde conheceu os pitagóricos Filolau, Árquitas e Timeu. Não existe consenso se elas tenham tido alguma influência na reconhecida crença platônica da transmigração e eternidade das almas.

Quando retornou à Atenas, no ano 388 a. C., com quarenta anos de idade, a guerra estava próxima do fim por meio da paz de Antálquidas. Contudo, o antigo esplendor ateniense passava por período político conturbado. Esse ambiente, pleno de decadência dos valores, onde, de certa forma, predominava o subjetivismo gnosiológico e ético, que se ergue imponente a figura de Sócrates, de quem Platão recebeu a maior influência filosófica e foi amigo e fiel ouvinte durante cerca de oito anos, até à morte do Mestre.

Platão começou a ensinar, mas diverso do mestre Sócrates, para reunir os seus discípulos, comprou um pequeno terreno nas proximidades do ginásio de Academo, perto de Colona, terra natal de Sófocles.

Não se sabe certo o ano em que Platão morreu, fixado em 347 ou 346 a.C. A Academia sobreviveu até o ano 529 d. C., quando Justiniano determinou a sua extinção.

A obra do Platão conta com 28 diálogos considerados autênticos. Antes de viajar, compôs diálogos centrados na figura de Sócrates, em que procura definir noções:

– Mentira: Hípias menor;

– Dever: Críton;

– Natureza humana: Alcibíades;

– Sabedoria: Cármides;

– Coragem: Laques;

– Amizade: Lísis;

– Piedade: Eutífron;

– Retórica: Górgias e Protágoras.

Entre 387 e 361 a.C., escreveu os seguintes livros com os enfoques sobre:

– Menexeno e Ménon: a virtude;

– Eutidemo: a erística ou argumento sofista;

– Crátilo: a justeza dos nomes;

– O Banquete: o amor;

– Fédon e A República: a justiça:

– Fedro e Teeteto: a ciência;

– Parmênides.

Os diálogos da maturidade são sobre:

– O Sofista: o ser;

– O Político e Timeu: a natureza;

– Crítias: a Atlântida;

– Filebo: o prazer;

– As leis: organização social.

Como as obras de Platão também estão intimamente relacionadas com a Medicina grega, nunca é demais ressaltar alguns poucos aspectos da filosofia platônica:

– O dialogo constitui o momento inaugural da filosofia;

– O amor (Philia) está relacionado ao desejo, ou seja, falta de saber (Sophia);

– O mundo inteligível é distinto do mundo sensível, descrito de modo extraordinário no mito da caverna, no livro A república;

– A vida verdadeira corresponde ao que a opinião comum acredita ser a morte, ou seja, o estado no qual a alma renasce a cada vez que se separa da prisão do corpo;

– O amor e a matemática são as duas vias que levam a verdade;

– A dialética é ao mesmo tempo o caminho que conduz as idéias e a ciência da articulação das idéias;

– A teoria das idéias permite identificar o erro, a ilusão e a mentira;

– A política é essencial na organização social;

– O homem feliz é aquele que vive conforme a sua natureza, mesmo que seja um escravo.

A estrutura teórica da Medicina grega antiga foi concebida em torno da distinção entre o real e o imaginário. Sob essa égide, a anamnese, fazendo o paciente recordar o passado, é a porte que conduz a prática médica ao diagnóstico, isto é, a identificação do real e do imaginário no doente. Assim, é importante o pequeno comentário sob O mito da caverna, a alegoria platônica que serve para explicar a evolução do processo de conhecimento e a diferenciação entre o real e o imaginário.

Segundo esse gênio grego, a maioria dos seres humanos se encontra como prisioneiros de uma caverna, permanecendo de costas para a abertura luminosa e de frente para a parede escura do fundo. Devido a uma luz que entra na caverna, o prisioneiro contempla na parede do fundo as projeções dos seres que compõem a realidade. Acostumado a ver somente essas projeções, assume a ilusão do que vê ¾ as sombras do real ¾ como se fosse a verdadeira realidade. Se escapasse da caverna e alcançasse o mundo luminoso da realidade, ficaria livre da ilusão. Mas, estando acostumado às sombras e às ilusões, teria de habituar os olhos à visão do real: primeiro olharia as estrelas da noite, depois as imagens das coisas refletidas nas águas tranqüilas, até que pudessem encarar diretamente o Sol e enxergar a fonte de toda luminosidade.

Possivelmente, a passagem de Platão pelo Egito foi a responsável pelo resgate da lenda do deus egípcio Thot, protetor dos escribas, inventor dos números e dos cálculos para criticar a substituição da memória oral já em curso naquele tempo na Grécia.

A divinização da memória, na Grécia, fez-se por meio da deusa Mnemosine, que lembrava aos homens os seus heróis e feitos além de presidir a poesia lírica. A memória estava distribuída em funções especificas pelo poeta, resgatando o passado com os cantores, e pelo adivinho, prevendo o futuro. Estava intimamente associado com a vida e colocava-se como o contrário do esquecimento, aqui entendido como o sinônimo da morte desmemoriada. Desse modo, a memória também apareceu como um dom aos iniciados nas doutrinas órficas e pitagóricas, ligadas à crença da metempsicose, na qual a lembrança das vidas anteriores, um dos pontos angulares do orfismo, vencia o esquecimento decorrente da morte e fazia renascer (reencarnar) com o conhecimento acumulado da vida anterior com o objetivo de buscar a perfeição.

O médico, até hoje, edifica a sua relação com o paciente sobre a anamnese ou reminiscência, buscando, nas informações prestada pela memória do doente, os fatos que podem ajudar a esclarecer o diagnóstico.

Não há mais dúvida que uma parte dos saberes médicos presentes na cultura grega, representa o produto sincrético do conhecimento dos povos, de regiões próximas, que antecederam a formação da Grécia.

De acordo com a mitologia grega, a Medicina começou com Apolo, filha de Zeus com Leto. Apolo é reconhecido na literatura com dezenas de qualificações, além de deus –curador. Foi também identificado como Aplous, aquele que fala de verdade. O seu poder era transmitido a água dos banhos que purificava a alma, e por isso, era considerado o deus que lavava e libertava o mal. De modo geral, o herói grego estava quase sempre associado à arte de curar. Grande número de deuses e personagens da mitologia grega tinham, entre seus atributos, o dom de curar doenças e feridas de guerra.

Platão sistematizou e descreveu a necessidade da nova postura do medico no Político, quando firmou, no diálogo entre Sócrates, o Jovem e o Estrangeiro, a semelhança entre a postura do político e do médico ao admitir que ambos, baseados no conhecimento, devem, intervir sempre que necessário para promover melhoras na sociedade:

Estrangeiro: É interessante. Dizem, com efeito, que se alguém conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão com o consentimento de cada cidadão; de outro modo não.

Sócrates, o Jovem: Muito bem! Não estarão eles certos?.

Estrangeiro: Talvez. Em todo caso se alguém dispensa esse consentimento e impõe a reforma pela força, que nome se Dara a esse golpe? Mas, espera. Voltemos primeiro aos exemplos procedentes.

Sócrates, o Jovem: Que queres dizer?

Estrangeiro: Suponhamos um médico que não procura persuadir seu doente, senhor de sua arte, impõe uma criança, a um homem ou uma mulher o que julga melhor, não importando os preceitos escritos. Que nome se dará a essa violência? Seria por acaso o de violação da arte e erro pernicioso? E a vítima dessa coerção não teria o direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobra perniciosas ineptas por parte de médicos que as puseram.

Sócrates, o Jovem: Dizes a pura verdade.

Estrangeiro: Ora, como chamaríamos aquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto?

Esse diálogo refletiu uma explosão coletiva de consciência, como as que seguem as rupturas com o conhecimento acumulado, a ponto de refletir precisamente a nova posição social assumida pelo médico, capaz de poder interferir politicamente para modificar o conjunto social. Assim, a Medicina passou a ser associada com a justiça, estando os seus agentes num estrato diferenciado da sociedade, em conseqüência do conhecimento que eles acumulam e, por essa razão, autorizados a influenciar as pessoas na direção de uma vida melhor. Ao contrário, se o médico não utilizasse a sua capacidade de persuasão, de acordo com os preceitos aceitos pela sociedade grega, estaria incorrendo em falsidade ideológica capaz de prejudicar outros homens.

O papel do político assumido pelo médico, na polis grega, a partir dessa consciência crítica da necessidade de modificar a dor histórica, foi sentida por vários autores. Essa premência de ampliar o espaço social dos agentes da saúde foi deslocada pela nova organização social imposta pela urbanização dos hábitos sociais, quando a maior aglomeração de pessoas passou a exigir outras medidas para superar as novas dificuldades que foram aparecendo, a linguagem um papel extraordinário como fator de convencimento. Portanto, a análise platônica interpretou o movimento das mentalidades na polis.

A nova situação de conflito entre médicos e filósofos foi apreendida de modo definitiva em Platão. Ele adotou o modelo médico dos tempos homéricos e considerou o deus Asclépio o verdadeiro político da saúde, porque teria sido ele o inventor da Medicina fazendo a releitura e recolocando o conflito da Medicina com a religião em evidência, ao mesmo tempo em que retirava a filosofia dessa área de atrito.

A interpretação é absolutamente coerente com a compreensão social platônica, ao dividir a sociedade em dominadores e dominados, senhores e escravo, tudo pela vontade dos deuses. Se a sociedade era estratificada, obrigatoriamente as especialidades sociais que a serviam teriam que ser do mesmo modo. Assim, ele incorporou na sua filosofia as práticas médicas diferenciadas entre os senhores e escravos, ricos que podem ficar doentes e pobres que não têm tempo para adoecer, existente mais de um milênio antes da polis grega e que foram legisladas por Hammurabi.

Platão ao ligar-se mais fortemente à Medicina em Górgias, deixou bem claro o papel que o agente da cura pode desempenhar na relação médico paciente, na dependência da sua compreensão da dor histórica, quando o doente o procura para refazer a saúde comprometida. Isso porque, quando um elemento enfermo vai ao encontro de um médico buscando ajuda, ele o faz movido pela necessidade de interromper o seu desconforto e atraído pela complexa malha de confiança que o liga historicamente ao poder do conhecimento do médico. Esse, por sua vez, pode agir com os curadores dos escravos, assumindo uma posição tirânica frente a fragilidade do doente, ou como os que tratavam os homens livres que, além de buscarem a origem das doenças, ensinavam ao paciente a melhor maneira de tratá-las.

É evidente que o platonismo exerceu decisiva importância sobre o atual pensamento acidental em relação à saúde e a doença. Foi graças à dicotomia corpo-alma do platonismo e do aristotelismo, que foi perdida grande parte do avanço proporcionado pela dessacralização da doença – primeiro corte da Medicina iniciada na Escola de Cós. Acabou predominando no pensamento coletivo a grande tradição herdada das sociedades ágrafas e dos tempos homéricos, que valorizava a origem divina das doenças e poder da divindade para curar.

Considerando a importância do conjunto filosófico platônico na história da Medicina, não é demais relembrar um pouco de alguns temas abordados nas suas principais obras:

– Política

As obras nas quais Platão trata especificamente do problema da política, são A República, O Político e As Leis.

Em A República, um das obras fundamentais de Platão, trata do Estado ideal, do reino do espírito, da razão e dos filósofos.

No pensamento platônico o Estado está inserido na própria natureza humana por que cada homem precisa do auxílio material e moral dos outros. Dessa variedade de necessidades humanas origina-se a divisão do trabalho e, por conseqüência, a distinção em castas, que representam o desenvolvimento social e a sistematização estável do trabalho.

A essência do Estado seria uma sociedade de indivíduos desiguais. Uma das características dessa da divisão de trabalho estaria representada pela instituição da escravidão inserida na certeza de os trabalhos servis serem incompatíveis com a condição do homem livre.

Dessa forma, o Estado ideal deveria ser dividido em estamentos sociais: dos filósofos, dos guerreiros e dos produtores, as quais corresponderiam, respectivamente, às almas: racional, irascível e concupiscível no organismo humano.

A dos filósofos estaria predisposta a dirigir a República por que eles:

– Contemplam o mundo das idéias;

– Conhecem a realidade das coisas;

– Ordem ideal do mundo;

– Ordem da sociedade humana.

Por essas razões, estariam preparados para orientar racionalmente o homem e a sociedade. A atividade política constituiria um dever para o filósofo, não, porém, o fim absoluto, pois essa meta seria, unicamente, a contemplação das idéias.

A dos guerreiros caberia a defesa interna e externa do Estado de acordo com a ordem estabelecida pelos filósofos, dos quais receberiam a educação. Os guerreiros representam a força a serviço do direito.

Os produtores – agricultores e artesãos – submetidos às duas anteriores, cabendo a eles a conservação econômica do Estado. Na rígida hierarquia dos níveis sociais idealizados por Platão, a dos produtores ocuparia o nível mais inferior, certamente influenciado pelo desprezo com que os cidadãos gregos antigos em geral enfocavam o trabalho material.

Se a natureza do Estado seria essencialmente a de um organismo ético, a sua finalidade primordial seria pedagógica. Assim, o processo educativo deveria estar sob a responsabilidade do Estado. Sob essa égide, uma das principais funções do Estado, antes de tudo, seria educar os cidadãos para a virtude, e, secundariamente, promover os bens materiais.

A obra platônica, de modo geral, desvaloriza o militarismo, o comércio, a dominação e a riqueza, e, por outro lado, valoriza a grandeza moral. O verdadeiro político não seria o homem prático e empírico, mas o sábio que realiza tanto as obras exteriores quanto a espiritualização dos homens.

A educação do estamento superior, dos filósofos, incluiria a música, ginástica, a Medicina, a poesia, o teatro e a história, entre outros temas. Por essa razão a Medicina como paidéia, isto é, como processo de conhecimento, é um instrumentos para que os cidadãos e o Estado possa alcançar a boa saúde física e espiritual.

A primeira etapa desse processo de conhecimento é dominada pelas impressões ou sensações advindas dos sentidos. Essas impressões sensíveis são responsáveis pela opinião que temos da realidade. A opinião (doxa, em grego) representa o saber que temos sem tê-lo procurado metodicamente.

Entretanto, o conhecimento para ser autentico deve ultrapassar a esfera das impressões sensoriais ¾ o plano da opinião ¾ e penetrar na esfera racional da sabedoria ¾ o mundo das idéias. Para atingir esse mundo, o homem não pode ter apenas amor ao saber ou filosofia.

O método proposto por Platão para atingir o conhecimento autêntico – episteme – é a dialética. Consiste na contraposição da opinião com a crítica que dela é possível articular ou seja, a afirmação de uma tese seguida da discussão e/ou negação dessa tese, com o objetivo de purificá-la dos erros e equívocos.

Dessa forma o pensamento platônico elabora diferença fundamental entre conhecimento e opinião. Quem possui saber tem conhecimento de alguma coisa, isto é, de algo que existe, pois o inexistente não é nada. Assim, os saberes seriam infalíveis, já que é logicamente impossível que se equivoque.

Outra estrutura teórica platônica é a fundamente diferença entre conhecimento e opinião. O primeiro, é representado pelo saber essencial, e o segundo, estaria voltado aquilo que carece de essência. Portanto, a opinião pode ser tanto do que é quanto do que não é.

Para compreender essa extraordinária idéia platônica é necessário, antes, saber que o platonismo admite a coisas particulares sempre contendo características em oposição: o que é belo é, também, sob certo aspecto, é feio; o que é justo, pode ser injusto, e assim por diante. Todos os determinantes sensíveis, segundo Platão, possuem esse caráter contraditório como objeto de opinião, mas não do conhecimento.

Somente quando saímos do mundo sensível e atingimos o mundo racional das idéias é que alcançamos também o domínio do ser absoluto, eterno e imutável. Nesse mundo das idéias só poderemos penetrar, segundo Platão, por meio do conhecimento racional, científico ou filosófico.

Dessa forma, o platonismo sustenta que a opinião se forma do mundo apresentado pelos sentidos, enquanto o conhecimento é de um mundo eterno. A opinião trata de coisas belas determinadas e o conhecimento ocupa-se da beleza em si. Sob a perspectiva platônica, a plena beleza em toda a plenitude só pode ser encontrada no mundo das idéias. Nesse dimensão – mundo das idéias – é onde moram os seres totais e perfeitos: a justiça, a bondade, a coragem e a sabedoria.

Fora desse mundo das idéias, tudo o que captamos através dos nossos sentidos possui apenas uma parte do ser ideal. O mundo sensível, portanto, é um mundo de seres incompletos e imperfeitos.

Sob certa perspectiva, a teoria das idéias de Platão representa a tentativa de conciliar as duas grandes tendências anteriores da filosofia grega:

– Concepção do ser eterno e imutável de Parmênides;

– Concepção do ser plural e móvel de Heráclito.

Contudo, para Platão, o ser eterno e universal habita o mundo da luz racional, da essência e da realidade pura. E os seres individuais e mutáveis moram no mundo das sombras e sensações, das aparências e ilusões.

– A moral

Segundo a estrutura teórica platônica a natureza do homem é racional e, em conseqüência, é a razão a guia para alcançar a felicidade e a virtude. Todavia, a natureza racional humana é obstaculizada pelo corpo na medida em que o intelecto se confronta com os sentidos e a vontade no impulso. Dessa forma, em última instância, na vida, seria impossível conciliar a natureza racional humana com o corpo sensível. A supressão da sensibilidade sé seria possível na morte quando a alma se separaria do corpo. Sob essa perspectiva o agir moral e racionalmente seria filosofar, que por sua vez, representaria suprimir o sensível prevalecendo o espírito, o inteligível, a idéia. Desse conjunto, Platão estruturou as quatro virtudes naturais:

– Prudência;

– Fortaleza;

– Temperança;

– Justiça.

Quanto ao problema do destino das almas depois da morte, Platão concebeu:

– As que cometeram pecados inexpiáveis, portanto condenadas eternamente;

– As que cometeram pecados expiáveis;

– As que viveram conforme a justiça, como as dos filósofos, libertados da vida temporal para sempre.

As duas últimas categorias renasceriam novamente, por meio da reencarnação, para receber a pena ou o prêmio merecidos.

– A religião e a arte

A idéia do bem seria o ponto central da religião platônica, sendo o culto à ciência o ponto essencial. Dependentes do bem, a virtude ligada à ciência e todas as outras idéias estariam todas subordinadas ao Deus supremo.

Por entender que o bem espiritual e ético, recusava aceitá-lo objeto da religião. Talvez por essa razão, Platão hostiliza o antropomorfismo, particularmente, o da mitopoiese homérica.

Em relação ao valor estético o conjunto do pensamento platônico não valorizou o gênio artístico grego. Essa postura estaria assentada no pressuposto de ser a arte seria semelhante à opinião, por:

– Ser cópia de parte do mundo empírico, portanto muito diversa da ciência ligada à essência;

– Atuar sobre o sentimento, pode atrair tanto para o verdadeiro quanto para o falso, para o bem e para o mal.

 

Aristóteles

Aristóteles, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu no ano 384 a.C., em Estagira, colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu. Aos dezoito anos, em 367, foi para Atenas e ingressou na Academia platônica, onde permaneceu durante vinte anos, até à morte de Platão, quando instalou-se em Asso, na Eólida, e depois, em Lesbos.

Em 343, foi chamado à corte de Filipe da Macedônia, para dirigir a educação do seu filho, o jovem de treze anos, que passaria à História como Alexandre, o Grande. De volta à Atenas, em 335, treze anos depois da morte de Platão, Aristóteles instalou, perto do templo de Apolo Lício, a sua escola denominada Liceu, em conseqüência dessa aproximação.

Com a morte de Alexandre, em 323, o grande império perdeu a força política e foram acesas as aspirações de independência nas colônias. Em Atenas, Demóstenes liderou o processo de separação. Como o passado de Aristóteles o ligada aos macedônios, para evitar a condenação retirou-se, voluntariamente para Eubéia. No verão do ano seguinte, Aristóteles faleceu, com sessenta anos de idade.

Ao longo da vida escreveu sobre lógica, fenômenos naturais, metafísica, ética, vida animal, política, retórica, poética, filosofia, teologia, física, astronomia, biologia, psicologia, política e literatura.

As principais obras de Aristóteles, são:

– Lógica:

– Categorias;

– Da interpretação;

– Primeira Analítica;

– Segunda Analítica;

– Tópicos;

– Refutações dos sofistas.

De um modo geral, Aristóteles procurou entender o conhecimento a partir das antinomias acumuladas pelos predecessores:

– Unidade e multiplicidade;

– Percepção intelectual e percepção sensível;

– Identidade e mudança.

Essa extraordinária produção literária de Aristóteles elaborada de modo sistemático e pedagógico esteve relacionada com a história da Medicina, durante mais de vinte séculos. De modo sucinto, é possível estabelecer alguns eixos:

– Ciência e filosofia

De certa forma diversa de Platão que valorizou o dualismo, isto é, o mundo da inteligência separado do mundo das coisas sensíveis, para obter coerência entre o conceito e seu objeto, o realismo de Aristóteles procurou estabelecer a mesma coerência sem abandonar o mundo sensível: a partir da experiência, insere o dualismo entre o inteligível e o sensível. Dessa forma, pretendia resgatar a unidade do homem consigo mesmo e com o mundo.

Em determinado momento, Aristóteles censurou a Platão por ter seguido um caminho ilusório, que retirava a natureza do alcance da ciência. Para isso Aristóteles sustentou que o ser existe, diversamente, na inteligência e nas coisas, mas o intelecto ativo, que é atributo da primeira, capta nas últimas, o que elas têm de inteligível.

– Lógica

Nos primeiros séculos do cristianismo, as obras de Aristóteles sobre Lógica, foram reunidos sob a denominação Órganon. No livro Tópicos classifica os diferentes modos de atribuição do predicado ao sujeito. No Primeira Analítica, consolida a teoria do Silogismo, com o propósito de demonstrar a formalidade do raciocínio, independente de representar a verdade objetiva.

Sob a leitura do silogismo aristotélico se B é A (proposição maior), se C é B (proposição menor), logo C é A (conclusão).

– Metafísica

Destaca-se na metafísica aristotélica as dez categorias do ser:

 

– Essência;

– Qualidade;

– Quantidade;

– Relação;

– Lugar;

– Tempo;

– Situação;

– Ter;

– Ação;

– Paixão.

Essas categorias seriam as essências do ser, onde poderia ocorrer a conciliação a unidade e pluralidade. Por outro lado, o ser unívoco, isto é, aquele que na admitida pluralidade comportaria seres absolutamente idênticos, existiria separado do mundo sensível: seria a pura essência, aquela que não é possível atribuir nenhuma outra categoria além da própria essência.

– Filosofia da natureza

Sempre atento em compreender a multiplicidade do ser, Aristóteles sustentou que a mudança perceptível não contrariava o princípio de identidade, já que representava apenas a atualização da potência nelas contidas. Sob esse embasamento, desenvolveu categorias para explicar essa posição: a substância, o acidente e a as quatro causas.

– A substância é o que existe por si ou o elemento estável das coisas;

– O acidente é o que só existe no outro, como determinação secundária e mutante.

Em conseqüência da combinação dois princípios, a substância se manifesta através dos acidentes, isto é, o agir segue o ser.

Por outro lado, os seres são dependentes de quatro causas com as respectivas determinantes:

 

 

 

Material potencialidade
Formal especificidade
Eficiente existência
Final intenção

 

 

– Ética e política

Aristóteles foi o primeiro filósofo a distinguir a ética da política:

– Ética: a ação voluntária e moral do indivíduo;

– Política: os laços do indivíduo com a comunidade.

Dotado de logos = palavra, como instrumento da linguagem, o homem estaria fadado a ser parte fundamental i estrutural da pólis = cidade. Sob essa perspectiva, a cidade, como organização social regida pelo homem dotado da linguagem, seria conseqüência do destino natural e precederia a própria família.

Dos instrumentos de organização social coletiva que o homem concebeu a pólis é a mais adequada, superando em função e plasticidade a família e a tribo. Para administrar a pólis, os regimes políticos seriam os responsáveis pelas soluções oferecidas aos conflitos entre os componentes da comunidade. Haveria três formas boas regimes e as respectivas deformidades:

 

Monarquia tirania
Aristocracia oligarquia
Politéia demagogia

 

 

O difícil equilíbrio entre relação unidade-pluralidade seria obtido por meio das leis que atuariam como processos complementares na obtenção da concórdia.

 

– Poética

Aristóteles distinguiu as artes oriundas da imitação enaltecendo o dinamismo criador do homem que, ao contemplar a visível, é captar a idéia contida na natureza.

No livro Poética, atribuiu grande importância à tragédia, como espetáculo que recria a vida, imitando não os homens, mas uma ação e a vida. Se competente, a tragédia seria suficientemente competente para exercer profundo efeito modificador sobre o espectador, determinando a purificação das paixões = kátharsis.

– Física e ciências naturais

A maior parte da compreensão aristotélica da Física foi a realidade sensível, na qual a idéia é inteiramente envolvida pela matéria.

O físico deveria possuir acurado espírito de observação. A realidade natural, em seus aspectos mais gerais, é autônoma contrapondo-se à espontaneidade acidental que exprime os efeitos inesperados que as coisas produzem no homem.

A natureza é auto-criação sob o permanente efeito do movimento, o qual apresenta-se quanto ao aspecto quantitativo (aumento e diminuição) e espacial (locomoção e translação).

A física aristotélica compreendeu os seres orgânicos apresentando aspectos diversos entre si, porém todos constituídos de matéria (o corpo) e de forma (o princípio do movimento). A importância do movimento sobre tudo e todos moldou as significâncias opostas da dinâmica e da estática:

– Dinâmica: o corpo inanimado não pode permanecer em movimento sem a ação constante de uma força, constituída pela ação e pela potência;

– Estática: constituída pela matéria e pela forma.

A concepção hierarquizada da física de Aristóteles concebeu diferenças fundamentais entre os seres vivos. Os animais superiores seriam dotados:

– Matéria;

– Forma;

– Movimento;

– Sensibilidade;

– Potencialidade receptiva.

Os animais apresentariam propriedades sensitivas e motoras., enquanto as plantas possuiriam apenas propriedades nutritivas. O homem ocuparia o vértice da pirâmide, aliando a todas essas propriedades uma potencialidade receptiva em grau elevado.

Como seqüência imediata, a anatomia aristotélica ressaltou a importância da distribuição da matéria nas funções orgânicas, ao mesmo tempo em que vaticinou, nos seres mais desenvolvidos, a correlação entre os estados psíquicos e os processos fisiológicos.

– Medicina

A partir da observação de animais e dissecações anatômicas Aristóteles escreveu sobre vários temas médicos:

– Corpus aristotelicum: a maior parte dedicada ao estudo dos seres vivos;

– Sobre a alma;

– Parva naturalia;

– Sobre a sensação e o sentido;

– Sobre a adivinhação pelo sono;

– Sobre a memória e a reminiscência;

– Sobre o sono;

– Sobre a duração e a brevidade da vida;

– Sobre a vida e a morte;

– Sobre a respiração;

– Sobre a história dos animais;

– Sobre as partes dos animais;

– Sobre o movimento dos animais;

– Sobre o andar dos animais;

– Sobre a geração dos animais;

– Sobre o espírito;

– Sobre as plantas;

– História das plantas.

Do mesmo modo como os livros de Platão, os de Aristóteles influenciaram de modo marcante os rumos da história da Medicina, notadamente, durante toda a Idade Media. Dessa forma, é conveniente relembrar alguns poucos e resumidos pontos da estrutura teórica que moldou o pensamento médico ocidental, durante vinte séculos:

A noção de vida: todas as substâncias pertencentes ao mundo físico têm movimento, mas há entre elas grandes diferenças, que as dividem em duas ordens distintas:

– Inertes ou não vivas: só deslocam-se quando impulsionadas por algum agente extrínseco;

– Móveis ou vivas: possuem o princípio intrínseco do movimento espontâneo, para seu próprio bem ou seu próprio fim.

Essa distinção entre viventes e não viventes não provém da matéria constitutiva, idêntica em ambos os seres, tanto um quanto o outro é composto dos quatro elementos (ar, água, terra e fogo), mas de sua forma que contém ou não o princípio intrínseco do movimento.

Essa capacidade vital do movimento não consiste somente no deslocamento local, presente nos seres vivos superiores, mas essencialmente na capacidade de auto-modificação para reparar as perdas sofridas.

O princípio da vida seria a alma, compreendida não somente como ato da matéria em ordem ao conjunto dos elementos corpóreos, mas em ordem ao conjunto de órgãos: ato primeiro do corpo físico orgânico, que tem vida em potência.

Considerava a natureza da vida essencialmente ligada ao calor, mas não o que provém do elemento fogo, mas outro de categoria superior, que procede do Sol ou dos astros:

– Seres vivos

Aristóteles distingue vários graus de perfeição na escala dos seres vivos. São distintos, mas cada grau superior inclui naturalmente os inferiores, de certo modo, semelhante às figuras geométricas: o quadrilátero inclui o triângulo, porque pode dividir-se em dois triângulos iguais, mas o triângulo pode existir sem o quadrilátero:

– Plantas: têm alma vegetativa ou nutritiva, destinadas a exercer as funções de assimilação e reprodução, mas não têm sensibilidade e movimento local;

– Animais imperfeitos, que têm alma sensitiva, mas não têm o movimento progressivo;

– Animais perfeitos, que têm alma sensitiva, e além disso, apetite, fantasia, memória e faculdade locomotiva para transladar-se de um lugar a outro;

– O homem marca o grau máximo na hierarquia dos seres vivos e sintetiza a perfeição dos seres anteriores; distingue-se e os supera pela alma, que é uma forma dotada de entendimento e vontade, capaz de ciência e deliberação.

Quanto a interação corpo-alma, é possível distinguir três etapas do pensamento aristotélico:

– Primeira ou platônica: Aristóteles considera a alma e o corpo como duas substâncias distintas e até opostas, unidas não só acidental e violentamente como constituindo uma unidade apenas temporal; a alma preexistiria ao corpo e retornaria, depois da morte, ao seu estado primitivo;

– Segunda ou transição: a alma ainda que distinta do corpo, está unida a ele acidentalmente, mas o corpo concebe-se como um instrumento da alma. O corpo é por e para a alma. A alma age no corpo e pelo corpo, ao qual governa como a uma cidade bem governada. Não há ainda união substancial, mas a união já não aparece como violenta, mas como comunhão de atividades, se bem que a alma conserva certa independência;

– Helimórfica: a alma seria ato do corpo, com o qual se une como a forma com a matéria. Alma e corpo, ainda que distintos, constituiriam um só e único composto substancial, do qual brotam todas as operações próprias do ser vivo. As ações não poderiam ser atribuídas, separadamente, nem ao corpo, nem à alma, mas ao sujeito substancial que resulta da união de ambos, e que tem um ato único de existência:

Nessa sistemática do pensamento aristotélico, é possível assinalar em relação à fase helimórfica:

– Assim como o olho compreende a pupila e a vista, assim a alma e o corpo formam juntamente o ser vivo;

– Não é o corpo o ato da alma, mas a alma o ato de um certo corpo… não pode ser nem um corpo, nem num corpo; porque ela não é um corpo, mas alguma coisa do corpo, e por causa disto ela está num corpo;

– A alma é a forma de um corpo natural que tem a vida em potência;

– É o ato primeiro de um corpo natural que tem a vida em potência;

– É o ato de um corpo natural orgânico;

– É aquilo pelo qual vivemos, sentimos e pensamos;

-Com a aplicação da teoria helimórfica à biologia, a união da alma com o corpo apareceria como ato natural, excluindo do pensamento filosófico grego:

– O conceito materialista dos pitagóricos que concebiam a alma como a harmonia resultante dos elementos do corpo;

– A teoria platônica da preexistência e da transmigração por que o corpo não é o cárcere da alma, mas ambos são dois princípios distintos de cuja união resulta um só ser substancial e natural;

– Divisão platônica da alma em três partes diferentes.

– Potências da alma

A alma é una, mas realiza múltiplas funções e essa razão tem cinco classes de potência ou princípios distintos acidentais se diversificam em função de seus atos e dos seus objetivos:

– Vegetativa;

– Sensitiva;

– Intelectiva;

– Apetitiva;

– Locomotiva.

As três primeiras seriam operações imanentes, ao passo que as duas últimas responderiam à finalidade extrínseca dos seres, pois o fim dos seres vivos implica o apetite e a faculdade de mover-se para a consecução do objeto apetecido.

Aristóteles inclui três funções presentes na classe inferior de vida, exclusivamente, voltadas à vida vegetativa: nutrição, crescimento e geração. As duas primeiras tendem à conservação indivíduo, e a segunda a da espécie:

A sensibilidade marca um grau mais alto na hierarquia dos seres vivos. Os animais acrescentam às plantas a faculdade de conhecer outros seres distintos deles mesmos. A essa qualidade estão acopladas duas outras faculdades: conhecimento sensitivo e potência locomotiva:

A maior parte da teoria aristotélica do conhecimento foi concebida junto ao mundo real. Dessa forma, Aristóteles não duvidou da existência de existência do mundo exterior e objetivo e nem da faculdade do homem para conhecê-lo. A explicação do saber, tal como o percebe a experiência, desenvolve-se em função dos dois conceitos fundamentais: ato e potência. A combinação simultânea do ato e da potência resultariam na ação cognoscitiva do sujeito sobre o objeto.

Contudo, entre sujeito e objeto deve haver proporcionalidade, pois somente o semelhante seria competente para conhecer o semelhante. Os inferiores não poderiam supor sobre os superiores, mas os superiores, portadores de sentidos, implicam sobre todos os inferiores. Dessa combinação entre a ação do objeto com a receptividade dos órgãos sensíveis resultaria a sensação como expressão de ordem vital.

A genialidade de Aristóteles também moldou a diferença entre os sentidos externos e internos, que não se basearia só na exterioridade e interioridade dos órgãos, mas no modo como seriam afetados pelos objetos.

Os sentidos externos são cinco: visão, olfação, audição, gustação e tato. Todos necessitariam da presença dos objetos sensíveis, isto é, sem a ação não seria possível a sensação.

Os sentidos internos: sentido comum, imaginação, estimativa e memória, ao contrário, não precisam da ação. São capazes de conservar as sensações e de reproduzir as experimentadas anteriormente.

Os sentidos não chegam a perceber as essências das coisas, nem mesmo a sua forma substancial, somente percebem as formas acidentais externas. Podem ser distinguidos em duas classes:

– Sensíveis próprios: correspondem aos objetos próprios e particulares de cada um dos sentidos externos. A especificidade de cada sentido seria afetada por determinada classe de sensíveis e não poderia perceber os outros. Assim, o olho não pode ouvir, nem o ouvido ver:

 

 

visão cor
audição som
olfação cheiro
gustação sabor
tato calor e frio

 

 

– Sensíveis comuns: são aqueles cuja percepção não é exclusiva de nenhum sentido específico, mas são apreendidos, indistintamente, por todos ou vários. Não constituem objetos independentes entre si, mas são modalidades dos sensíveis próprios. Por essa razão não servem para especificar nenhum sentido em particular. São representados:

– Magnitude;

– Figura;

– Número;

– Unidade;

– Pluralidade;

– Movimento;

– Repouso.

Aristóteles distinguiu nos animais outros quatro sentidos internos, caracterizados por realizarem as funções na ausência dos objetos na medida em que as sensações deixam vestígios na sensibilidade. Os animais têm a capacidade de reproduzi-los, combiná-los, associá-los e compará-los entre si, conforme as exigências das necessidades práticas:

– Sentido comum: presente em todos os animais, sendo espécie de faculdade centralizadora da rede de percepções sensíveis dispersas;

– Imaginação: é sentido interno superior ao sentido comum, que somente possuem os animais mais perfeitos;

– Estimativa: os animais percebem nos objetos não somente o que é agradável ou desagradável a cada sentido particular, mas também o que é útil ou nocivo ao sujeito;

– Memória: conservação das imagens do passado.

É possível distinguir algumas posições de Aristóteles quanto à imortalidade:

– Eudemo: como Platão, crê na preexistência e imortalidade pessoal da alma;

– De generatione animalium: a alma não procederia por via de geração, mas viria de fora, o que faz supor que também sobreviverá ao fim do corpo;

– Metafísica; restringe a imortalidade somente à parte intelectiva da alma;

– De anima: a imortalidade ficaria reservada somente ao entendimento ativo, enquanto que o passivo corrompe-se com o corpo;

– Ética a Nicômaco: realça a dúvida sobre a imortalidade Podemos desejar coisas impossíveis, por exemplo, a imortalidade.

 

Período hipocrático

 

Hipócrates , segundo Sorano de Éfeso, nasceu na ilha de Cós, em 460 a. C. Filho do médico Héraclides, aprendeu os segredos da prática médica com o pai e nas viagens à Tessária, Trácia, Líbia e o Egito.

Esse período admirável da Medicina grega, do qual Hipócrates foi o mais importante representante, compreendeu cinco centros de cultura médica que receberam os respectivos nomes da cidade onde funcionaram: Cós, fundada por Hipócrates, em 440 a. C., Rhodes, Cnido, Crotona e Agrigento

Devido a importância fundamental na história da Medicina, a Escola de Cós acabou absorvendo a denominação de Medicina hipocrática em menção honrosa a Hipócrates.

O sucesso da Escola Médica de Cós, onde Hipócrates e seus seguidores estruturaram as bases da Medicina-oficial grega, responsável pela primeira teoria para explicar a saúde e a doença ¾ a teoria dos Quatro Humores ¾ que rpresenta o primeiro corte epistemológico da Medicina, foi cristianizado no medievo e traduzido para o francês no século 19.

 

Medicina hipocrática

A totalidade das obras publicadas pelos médicos da Escola de Cós é responsável pela primeiro corte epistemológico na história da Medicina, quando as práticas médicas iniciaram o processo de separação das crenças e idéias religiosas. A cura deixou de ser um atributo exclusivo dos deuses protetores ou vingadores para ser explicada pela Medicina-oficial, onde era possível e preferível que o homem agisse sobre o outro homem doente, para alcançar a melhoria da saúde.

A estrutura teórica da Medicina hipocrática está contida no pensamento filosófico grego pré-socrático, notadamente, na teoria dos Quatro Elementos de Empédocles (água, terra, ar e fogo). Posteriormente, foi incluído no mundo das idéias platônico-aristotélico.

Se for considerado o fato de que, até o século 3 a. C., na Grécia, qualquer pessoa poderia exercer a Medicina, o notável avanço proporcionado pelos escritos da Escola de Cós, sistematizando os saberes historicamente acumulados e iniciando o processo de ruptura com as idéias e crenças religiosas inclusive, é fundamental conhecer algumas idéias centrais que moldaram a Medicina, no Ocidente, durante vinte séculos.

Dessa forma, é possível estabelecer quatro conceitos fundamentais na Medicina hipocrática:

– É fundamental conhecer o corpo humano e o ambiente: só é possível entender a saúde e a doença se o homem for estudado em conjunto com o ambiente onde vive;

– A doença é conseqüência de agressão ao equilíbrio do corpo: as causas e as conseqüências das doença devem ser entendidas em conjunto com as reações naturais do corpo frente à agressão;

– A saúde é obtida por meio do equilíbrio entre os Quatro Humores (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra) que correspondem aos Quatro Elementos de Empédocles (água, terra, ar e fogo):

– Sangue: elaborado no coração;

– Fleuma, na hipófise;

– Bile amarela, no fígado;

– Bile negra, nas pequenas veias.

A doença é o resultado do desequilíbrio dos Quatro Humores que poderia ocorrer seja por causas internas, próprias do doente, seja por vetores externos, ao ambiente ou modo de vida do paciente, seja pela conjunção dos dois fatores. Sob esse pressuposto teórico, praticar a sangria era uma das formas de obter o equilíbrio dos humores.

Os escritos hipocráticos consideravam como fatores internos:

– Idade:

– Infância, predominaria o sangue quente;

– Adolescência, com maior concentração da bílis amarela, ocorreria maior ardência nas paixões;

– Idade adulta, a maior quantidade de bílis negra favoreceria a inteligência;

– Velhice, existiria a preponderância do fleuma;

– Fatores congênitos;

– Condições étnicas.

– As estações: quando ocorreriam predominância de certos humores:

-Inverno: o fleuma, o humor frio e úmido;

– Primavera: o sangue, humor quente e úmido;

– Verão: o sangue, humor seco e quente;

– Outono: bile negra, humor seco e frio.

– Águas: poderiam provocar as doenças em função:

– Quantidade;

– Qualidade.

– Ar: considerado o mais importante instrumento da função vital, poderia ser determinante de patologias se introduzido no corpo em quantidades:

– Excessivas;

– Reduzidas;

– Muito denso.

-Ventos: as doenças seriam facultadas quando estivessem:

– Seco;

– Úmido;

– Quente;

– Frio.

A doença foi entendida, na Escola de Cós, como um processo resultante de três fases sucessivas e interrelacionadas:

– Incubação: em conseqüência dos fatores intrínsecos ou extrínsecos ou ambos atuando sobre o corpo seria iniciado o processo da alteração dos humores, nem sempre verificável no exame clínico;

– Crítica: os humores estariam plenamente desequilibrados e a doença seria manifesta;

– Resolução: os mecanismos naturais e/ou aqueles provocados pelo médico para eliminar o excesso dos humores seriam os responsáveis pela cura ou pela organização localizada da doença, por exemplo, o abcesso e o empiema.

Ao lado desse conjunto teórico, sempre atado à teoria dos Quatro Humores, os médicos hipocráticos trataram de compor normas para obter o adequado exame clínico, que deveria compreender quatro etapas:

– Reconhecimento dos antecedentes do doente que poderiam estar relacionados ao estado mórbido;

– Análise dos sinais e sintomas apresentados, cujos mais importantes são:

– Febre;

– Dispnéia;

– Queixas digestivas;

– Alterações nas eliminações de secreção, fezes e urina.

– Identificação dos sinais locais, como os conseqüentes dos traumatismos;

– Exame clínico geral, compreendendo:

– Cabeça e pescoço;

– Posição assumida pelo doente frente a dor e o desconforto determinados pela patologia;

– Ritmo da respiração;

– Aspecto das ferida e úlceras;

– Suor;

– Palpação dos hipocôndrios;

– Qualidade e quantidade do sono;

– Aspecto e quantidade da urina;

– Aparência das secreções e do pus;

– Resultados do trauma externo e interno;

– Doenças ginecológicas e das mamas.

As propostas terapêuticas, também idealizados em torno da teoria dos Quatro Humores, comportavam orientações diferentes às doenças agudas e crônicas, e nasceram como conseqüência natural dessa fiel organização do exame clínico. Ofereciam cinco vertentes que poderiam ou não ser utilizadas simultaneamente:

– Regime alimentar: plena de regras na quantidade e qualidade dos alimentos;

– Fármacos: compreendiam remédios tanto de origem mineral quanto de vegetais;

– Cirurgia: muitas procedimentos cirúrgicos foram descritos com muita precisão, entre outros, para a excisão de tumores, abcessos, fístulas anais e hemorróidas. Do mesmo modo, vários livros trataram com minúcias os tipos de instrumentos cirúrgicos e curativos mais adequados.

– Psicológico: sob certa análise, esse aspecto terapêutico manteve ligação com as idéias e crenças religiosas, notadamente, o culto de Asclépio, na medida em que era prática comum, no templo de Epidauro, localizado ao lado da Escola de Cós, os doentes acreditarem poder ser curados durante sono, graças a visita desse deus da Medicina grega sob a forma da serpente;

– Atitudes realizadas sobre o doente para apressar o equilíbrio dos humores: sangrias, vomitórios, cataplasmas, diuréticos, diarrêicos e sudorese.

 

Medicina e a mitologia grega

Os gregos que parecem ter sido os primeiros a fazer da Medicina a profissão mais ilustre e completa, escreveram na conformidade deste conceito que fora Apolo o inventor dela o que não deixa de Ter aparente razão. Eles entendiam Apolo como o Sol (com o seu calor benigno e temperados, vivificador das plantas e do homem) ou como o homem, que possuidor de um espírito divino e melhor que todos os demais do seu tempo. Apolo também foi o primeiro que ensinou e praticou o uso das ervas. Como Ovídio deu a entender na sua obra Metamorfoses:

A Medicina um dia eu inventei;

Com ela, a toda gente auxílio dei;

Das ervas o poder a mim se prende;

De mim, pois, a saúde só depende.

Na verdade, a origem da Medicina será sempre divina e celeste (Ambroise Paré, 1582).

Esse trecho retirado do livro Ouvres Completes, de Ambroise Paré (1510-1590), o mais famoso cirurgião-barbeiro de todos os tempos e um dos responsáveis pela incorporação da cirurgia como especialidade na Medicina, mostra como a mitologia grega influenciou a prática médica no Ocidente durante mais de vinte séculos depois da sua elaboração.

As relações da Medicina com a compreensão mítica da realidade se perderam no tempo. É impossível separar as idéias míticas do entendimento do homem sobre a saúde e a doença.

Esse fato se deve também porque a mitologia é uma forma de conhecimento numa sociedade que ainda não tem condições de explicar racionalmente a realidade circundante. A mitologia nasce de uma relação com o mundo da natureza empírica, mas acima do meramente empírico.

Das primitivas relações do homem com o animal, posteriormente substituídas pelas relações com a terra, surgiu empiricamente o uso das plantas na busca da saúde.

A utilização racional do vegetal, indispensável para a sobrevivência do homem, se processou em complexa compreensão mítica, que foi marcada pelas explicações que se sucederam nos milênios da origem primeira e do destino final do ser humano. Elas evoluíram da epopéia de Gilgamesh, dos babilônios, à teoria do Big Bang, dos modernos astrofísicos, passando pela gênese judaico-cristã e pela Yebá beló da lenda desana da criação do Sol.

Apesar da melhor compreensão que temos hoje da transformação do pensamento mítico, a dificuldade de interpretação aumenta na proporção que recuamos no tempo. Além de existirem poucos registros disponíveis, a interpretação deles sofre grandes variações pessoais.

Entretanto, parece ser a partir do século 6 a.C., na Grécia, que chegou o material historiográfico suficiente para traçar, com alguma segurança, um perfil da Medicina da mitologia.

É provável que o acervo cultural e médico dos povos mesopotâmicos e dos vales do Indo e do Nilo tenham influenciado a formação do universo médico mítico grego. Os registros históricos que se ocupam da Medicina na mitologia grega são, provavelmente, o produto das complexas relações do homem que antecedeu a formação do pensamento grego. É possível estabelecer paralelismo entre muitos aspectos das relações-médico-míticas das civilizações babilônica, egípcia e indiana com as da Grécia dos cinco primeiros séculos antes de Cristo.

De acordo com a mitologia grega a Medicina começou com Apolo, filho da união de Zeus com Leto. Inicialmente, Apolo foi considerado como o deus protetor dos guerrilheiros, posteriormente, foi identificado como Aplous ou aquele que fala verdade. Ele agia purificando a alma, por meio das lavagens e aspersões, e do corpo, com remédios curativos. Era considerado o deus que lavava e libertava o mal.

Um dos seus filho Asclépio, teria sido educado pelo centauro Quiron para ser médico . A escolha do centauro mítico para dirigir a educação de Asclépio foi feita porque ele dominava o completo conhecimento da música, magia, adivinhações , astronomia e da Medicina. O centauro, além destas habilidades, tinha incomparável destreza, manejava com a mesma habilidade o bisturi e a lira.

Ainda segundo o discurso mitológico grego o centauro Quiron foi o primeiro que Plantou, na Tessália, as plantas medicinais e, a primeira delas, foi a denominada Gentiana centaurium.

O centauro Quiron, além de ter educado Asclépio na Medicina, foi o orientador principal da educação de Jason na arte de vencer os mais incríveis obstáculos e de Dionísio, o deus da vegetação e do vinho, conhecedor dos mistérios da religião, do êxtase e da embriaguez.

É necessário tentar explicar porque o Centauro Quiron foi o preceptor de Asclépio, Jason e Dionísio. É provável que tenha existido razão no pensamento mítico grego para justificar a ligação entre as qualidades necessárias para exercer a prática médica, encontradas em Asclépio, com a epopéia épica do Velo de Ouro, de Jason, e com o conhecimento dos mistérios da religião e da vegetação de Dionísio.

Apesar de tratarem-se de pontos aparentemente discrepantes e sem qualquer relação entre eles, é possível estabelecer o elo coerente a partir da compreensão de como era a prática médica naquela época. O entendimento fica mais fácil se retirarmos da ciência médica atual os seus dois cortes, a histopatologia e a genética. Dessa forma, sem esses conhecimentos, a ação médica fica desprovida dos seus principais suportes racionais e as dificuldades com o objetivo de sua prática ficam quase intransponíveis.

Para o exercício da prática médica sem o apoio da histopatologia e da genética torna-se necessário possuir a determinação de Jason em vender incríveis obstáculos e o conhecimento da vegetação e da religião de Dionísio. É possível tenha sido essa a base da relação do centauro Quiron, com Asclépio, Jason e Dioníso.

Para os gregos daquela época predominou a idéia de que Asclépio deificava a Medicina na mitologia. Ele era celebrado em grandes festas públicas no dia 18 de outubro, data em que até hoje se comemora o dia do médico no Ocidente.

Asclépio conquistou uma fama inimaginável tinha delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressivo do cirurgião. Todos os doentes que não obtinham cura em outros lugares, procuravam os serviços médicos desse deus. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos e, imediatamente, foi morto por Zeus, com os raios dos Cíclopes. Zeus matou Asclépio por temer que a ordem do mundo fosse transtornada.

Asclépio deixou duas filhas, Hígia e Panacéia, a primeira celebrada como a deusa da Medicina e a Segunda, curava todos os doentes com os segredos das plantas medicinais. Além delas, teve dois filhos, Machaon e Podalírio, médicos guerreiros, que se destacaram na guerra de Tróia. Panacéias continuou a linhagem de médicos que começou com Apolo, fazendo do seu filho Hipocoonte um médico famoso e ancestral de Hipócrates.

Existem muitas comprovações arqueológicas das dádivas de agradecimentos dos doentes à Asclépio. No hospital de Epidauro, na ilha de Cós, na Grécia, foram encontradas várias esculturas com o nome do doente a descrição da doente e da cura obtida. Esses objetos artísticos simbolizando Asclépio e Hipócrates, produzidas entre os séculos 6 e 2 a.C., contém uma serpente enrolada num bastão.

A relação entre a serpente e a Medicina já estava presente na civilização babilônica, dez séculos antes da formação da polis grega. Existe no Museu do Louvre, em Paris, um vaso de cerâmica encontrado na região de Lagash, representando o deus da cura babilônico – Ningishzida – segurando um bastão com duas serpentes entrelaçadas nele. Esse simbolismo da serpente é freqüentemente ligado à transcendência da morte. Existem duas explicações principais para a relação da Medicina com a serpente:

– A serpente pode viver em cima e embaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos e em estreita vinculação com o ancestral pensamento da localização subterrânea do outro mundo;

– A capacidade da serpente de mudar a sua pele de tempos em tempos, encenando o renascimento. Essa última interpretação está relatada no Rig Veda (1.79,1), no qual os Adityas são descritos como os descendentes das serpentes e ao perderem a pele velha, eles venceram a morte e adquiriram a imortalidade.

Seja qual for a razão que levou o homem no passado a estabelecer um elo da serpente com a Medicina, provavelmente estava relacionada com as complexas relações que o homem estabeleceu com a morte, onde o médico simbolizava o símbolo vivo da luta do homem pela sobrevivência.

Em última análise é provável que todas as teogonias e teofanias que o homem elaborou em consonância os processos de transformação sócio econômica tenham sido um caminho na busca da sua origem primeira e do destino final, tendo a Medicina desempenhado uma parcela importante neste conjunto.

 

Roma

 

Considerações gerais

 

Segundo a tradição Roma foi fundada, em 753a. C., nas margens do rio Tibre e governada por reis, até o ano 509 a. C., quando foi instalada a república.. Durante o século 3 a. C., os domínios romanos alcançam a península itálica No ano 45 a. C., Júlio César, impõe a ditadura e avança na conquista de novos territórios. O apogeu dos domínio ocorreu, no século 2 d. C., quando o poder romano atingiu a Europa, Ásia e África.

Após a terceira guerra púnica, os romanos consolidaram o vasto império no Mediterrâneo. Nos anos seguintes, muitos romanos resistiram ao avanço da Medicina grega hipocrática. Nesse sentido, o historiador romano Marco Pórcio Catão, no século 2 d.C., expõe com clareza o descontentamento: “Os gregos decidiram matar todos os bárbaros com a Medicina e a ainda cobram por isto”. e em carta a seu filho é incisivo: “Proíbo-te de recorrer aos médicos”.

O espírito legislador romano não deixou de abordar as atividades médicas. Com a regulamentação romana, os médicos passaram a constituir uma categoria profissional definida, tanto entre os homens livres como entre os escravos. As obrigações do médico eram estipuladas pelo Estado que pagava os seus serviços profissionais. Sob o império de Adriano, no século 2 d.C., os médicos eram dispensados do serviço militar e quase todas as cidades romanas dispunham de médico oficial.

Em torno do século 4 d.C., a profissão médica foi severamente fiscalizada e instituído rigoroso exame para todos que quisessem exercer a profissão. O império romano subvencionava os estudantes de Medicina, mas em troca erram obrigados a prestar assistência aos pobres. Os médicos foram proibidos de praticar o aborto e negar o atendimento a qualquer doente, sob risco de castigo corporal e multa.

Como nas culturas, dos dois milênios a. C., existia grande difusão da melhor condução do parto, entre as populações fora do círculo do poder inclusive, como demonstra a escultura em terracota encontrada na periferia da Roma imperial.

No Império de Diocleciano, no ano de 300 d.C., um édito do Imperador impunha como condição para entrar na escola de Medicina, a apresentação de certificado de boa conduta fornecido pelo comando militar da cidade de origem.

A diferenciação entre médicos e cirurgiões foi reforçada e Cícero falava dos médicos verdadeiros, o que corresponderia aos clínicos gerais de hoje. Em seus versos, Cícero registrou:

Cascelio extirpa ou cura os doentes; tu Igino, queimas os cílios que irritam os olhos, Eros elimina as tristes cicatrizes dos servos e Hermes goza de fama de ser o Podalírio das hérnias”.

Os registros apontam para a existência de muitas especialidades na Medicina romana. Esse fato talvez tenha sido resultante não só dos progressos técnicos, mas principalmente de certas especialidades serem mais lucrativas para quem as exercia. Alguns médicos especialistas romanos, como Stertínio, conseguiu acumular considerável fortuna. Provavelmente, em conseqüência de abusos nos lucros obtidos por alguns médicos, no ano 368 d.C., Valentiano proibiu que os médicos empregados do Império recebessem dinheiro dos doentes pobres.

Sem dúvida alguma o Império Romano preocupou-se com a prática médica e procurou, através de normas jurídicas, constituir o serviço médico público. Porém, esse início teve a sua estrutura formada a partir da assistência médica aos legionários, durante após as batalhas, com a construção de hospitais militares em diferentes regiões do imenso Império Romano. O mais famoso deles foi o de Vindonissa, em Windish, na atual Suiça, com sessenta quartos e capacidades para 480 doentes distribuídos em enfermarias.

A preocupação dos administradores romanos com a saúde pública é inquestionável. A lei das Doze Tábuas que remonta aos primórdios da República, estabeleceu normas para o sepultamento e queima dos cadáveres fora dos muros da cidade e a construção dos esgotos, como o Esgoto Máximo, em Roma, que só seria revisto no século 11 e ainda é utilizado na parte antiga da cidade.

Do mesmo modo, pelos menos nas casas abastadas, o cuidado com a higiene do corpo fazia parte do cotidiano, demonstrado na existência de termas amplas e arejadas.

As autoridades públicas fiscalizavam o cumprimento das normas que regulamentavam a higiene pública. Os grandes arquitetos romanos, como Vitrúvio, recomendavam a escolha de lugares ensolarados para a construção das casas.

Além dos cuidados com a organização das cidades, foram construídos centenas de banhos públicos para estímulo da higiene pessoal. Estas termas, algumas recuperadas pelos trabalhos arqueológicos, como o de Diocleciano, em Roma, podiam obrigar em diferentes piscinas e salas de ginásticas centenas de pessoas ao mesmo tempo.

De certa forma, o ideário da beleza grega segue trajetória semelhante em Roma. Os cuidados para manter o corpo esbelto por meio da dieta e dos exercícios físicos eram prescritos pelos médicos e pelos professores de ginástica.

 

Práticas médicas

 

No século 2 a. C., após a diminuição da importância política da Grécia, vários médicos gregos migram para Roma, como Asclepíade e Sorano de Éfesos. A Medicina considerada profissão pouco digna para o cidadão romano, é exercida por escravos e imigrantes. Por essa razão, é razoável supor que os tratamentos dentários que, obrigatoriamente, impunham trabalho manual para a confecção da prótese, também estivessem no rol dos ofícios não recomendados.

Por outro lado, existem inequívocas comprovações de que a anatomia era ensinada também no meio dos grupos sociais fora do poder central romano, inclusive entre cristãos que habitavam as catacumbas romanas.

No século 1 d.C., Celso divide as doenças em três categorias quanto às resposta ao tratamento:

– Alimentação;

– Remédio;

– Cirurgia: as diversidades dos instrumentos cirúrgicos comprovam a existência de médicos que exerciam a cirurgia em várias áreas do corpo, contudo, sem penetrar nas cavidades.

Em relação aos livros escritos, a Medicina romana pode ser melhor compreendida sob a perspectiva de dois períodos:

A. Primeiro período

Entre os séculos 1 e 2 d. C., no mundo romano, vários médicos que escreveram obras monumentais que marcaram os avanços das novas abordagens da saúde e da doença:

– Diascórides, farmacologia: os livros desse extraordinário médico atravessou mais de dez séculos e serviu de base à terapêutica medieval e renacentista;

– Areteo de Capadócia, fisiopatologia e pneumologia;

– Rufus de Éfeso, doenças contagiosas como a lepra e a peste;

– Soranos de Éfeso, pediatria, ginecologia e obstetrícia: somente no Renascimento foi que a monumental obra de Sorano foi resgatada da intolerância clerical;

– Celso, autor do tratado De Re Medica.

B. Segundo período: caracterizado pelos trabalhos de Galeno.

De modo geral, a Medicina romana pode ser dividida em três fases, contudo é importante ressaltar que, em nenhuma época, houve dissociação das Medicinas empírica, divina e oficial. Em um ou outro período, pode ter ocorrido, em determinado segmento social, a predominância de alguma corrente médica:

– Medicina-divinatória:

Com forte influência etrusca, desde a fundação de Roma até o século 3 a. C., a prática médica estava assentada, como a babilônica, na análise das vísceras de animais, notadamente, do fígado de carneiro. A partir do ano 295 a. C., o culto de Asclépio foi introduzido entre os romanos, sob o nome de Esculápio;

– Medicina-oficial pré-galênica:

A conquista romana das principais cidades gregas resultou na mudança das antigas concepções da saúde e da doença, antes exclusivamente voltada à adivinhação. Parece que o médico Archagatus, de Esparta, em 219 a. C., foi o primeiro médico grego a se instalar em Roma. Sem dúvida, a definitiva conquista da Grécia, efetivada no ano 146 a. C., contribuiu para que um grande número de médicos da Escola de Alexandria estabelecessem residência no território romano.

Entre os médicos de maior produção, destacou-se o extraordinário anatomista Herófilo, ainda hoje tido como o primeiro a executar, sistematicamente, a dissecção do corpo humano.

Resultantes da dispersão dos seguidores das antigas correntes filosóficas gregas, alguns médicos organizaram grupos que se destacaram:

– Atomistas: Liderados por Asclépiade da Bitinia (124-70 d. C.), os atomistas rejeitavam formalmente o teoria do Quatro Humores. Consideravam o corpo formado por átomos em contínuo e perpétuo movimento. Sob essa perspectiva, a febre, a inflamação e as dores seriam conseqüentes da alteração desses átomos;

– Metodistas: Derivados dos epicuristas, os metodistas floresceram em torno do ano 50 a. C., e não aceitavam as razões sagradas da saúde e da doença nem a teoria dos Quatro Humores. Consideravam a saúde como resultante do equilíbrio entre as seguintes condições:

– Tono ou capacidade de contração dos sólidos que compõem o corpo;

– Atonia ou o relaxamento dos mesmos sólidos.

– Pneumonistas: Fundada por Athéneo de Atália, floresceu entre 10 e 54 d. C., estava assentada no pensamento estóico que defendia a doutrina do pneuma, segundo a qual tudo e todos seriam formados de ar em permanente movimento. Por outro lado, as doenças apareceriam quando o pneuma se acumularia ;

– Ecléticos: As patologias ocorreriam não só em conseqüência do pneuma acumulado, mas também de outros fatores não conhecidos.

– Medicina-oficial galênica:

Cláudio Galeno (129-200d. C.), filho de conhecido arquiteto, em Roma, fez várias viagens, como era comum nessa época, entre jovens oriundos de famílias abastadas. Na cidade de Alexandria, sob a direção do famoso Herófilo, participou de varias sessões de dissecção humana, que lhe forneceram os primeiros aprendizados de anatomia e fisiologia. Retornando à Pérgamo, em 158, iniciou os seus trabalhos como médico dos gladiadores, onde adquiriu excelente habilidade de cirurgião. Poucos anos depois, chegou à Roma, onde os seus consistentes conhecimento e forte temperamento, em pouco tempo, contribuíram para ganhar fama e inimigos entre os médicos. Em 166, durante um episódio de peste, deixou Roma, fato que concorreu para os seus adversários acusá-lo de covardia. Galeno escreveu muitos livros, porém só são conhecidos alguns que não foram perdidos no grande incêndio, no ano 192:

Da melhor Medicina e Filosofia;

– Dos elementos segundo Hipócrates;

– Os ossos;

– Da dissecção dos músculos;

– Dos dogmas de Hipócrates e Platão;

– Dos lugares contaminados;

– A arte médica.

Apesar dos erros cometidos, como afirmação da existência da comunicação interventricular, os seus estudos de anatomia e fisiologia de Galeno, seguramente, contribuíram para o conhecimento do corpo humano.

Corajosamente, em oposição a Platão, Aristóteles e os estóicos romanos, contestou ser o coração o órgão de onde partiria os nervos e, enfrentando forte oposição dos seus colegas, sustentou ser o coração de onde saiam as artérias e o fígado, as veias. Entre os seus ensinamentos, destacam-se:

– O cirurgião deve conhecer a anatomia para evitar lesar os vasos e nervos;

– O sangue seria formado no fígado;

– Possivelmente influenciado pela dissecção de algum cadáver portador de anomalia congênita cardíaca, descreveu a comunicação inter-ventricular como parte da sua teoria da circulação;

– Talvez pela mesma razão, sustentou ser o útero bilobular, no qual a porção esquerda seria destinada para receber o feto feminino e a direita, o feto masculino;

– Incorporou a sua teoria a dos Quatro Temperamentos:

– sangüíneo;

– fleumático;

– colérico;

– melancólico

e aos Quatro Elementos de Empédocles:

– terra;

– ar;

– sangue;

– fogo

à teoria dos Quatro Humores de Hipócrates:

– sangue;

– fleuma;

– bílis preta;

– bílis amarela.

Além dos Quatro Temperamentos que, de certa forma, moldariam a vida social de cada pessoa, Galeno acreditava que a fisiologia humana era formada do:

– Espírito vital, no coração;

– Espírito animal, no cérebro;

– Espírito natural, nos órgãos do ventre.

Dessa forma, a saúde seria o produto do equilíbrio dos espíritos vitais e esse equilíbrio poderia ser rompido pelo frio, calor e trauma entre muitos outros.

Provavelmente em conseqüência da sua crença no monoteísmo, contrária à idéia romana dominante, os escritos de Galeno atravessavam o medievo como instruções dogmáticas, influenciando de forma marcante as práticas médicas.

Semelhante as outras povos da antigüidade, no Império romano, as pessoas que possuíssem facilidade de expressão e certa habilidade poderiam praticar a Medicina, pelo menos, as práticas mais conhecidas da Medicina-empírica.

É possível que os médicos renomados, em dependência de pedidos ou elos de parentescos, aceitassem receber eventuais discípulos em sistema de tutela. Por essa razão, sem a interferência consensual do poder político, esse período de ensino variava de onze anos, defendido por Galeno, a seis meses, preconizado por Telassos.

Possivelmente, pressionado pelos pedidos de pessoas influentes junto a poder administrador e pelo grande número de pessoas vindas de outros países que praticavam a Medicina e obtinham bons resultados também nas faixas abastadas da população, em 46 a. C., Júlio César concedeu o direito de cidadão romano a todos os médicos estrangeiros.

Essa aglutinação de pessoas praticando a Medicina, a maior parte formada de estrangeiros vinda das colônias romanas, certamente, motivou a administração central iniciar o processo de controle com o objetivo de retirar os curadores que provocavam mais erros do que acertos. Dessa forma, foram instaladas escolas de Medicina onde já existiam históricos núcleos do aprendizado médico: Atenas, Alexandria, Marselha, Lion e Saragosa. Os médicos oriundos dessas escolas, representantes da Medicina-oficial, recebiam o título de Medicus a Republica.

Novamente, talvez sob pressão coletiva, seja dos mais abastados, seja das parcelas da população que foram prejudicadas pelo mal atendimento, o Imperador Juliano, no século 3, editou lei obrigando todos os médicos formados nas escolas prestarem exame de suficiência perante banca de renomados profissionais.

Esse conjunto de medidas, patrocinado pela maior fiscalização do poder administrativo, fortaleceu o processo de melhoria tanto nos cuidados da saúde pessoal quanto na coletiva:

– Abastecimento residencial de água potável;

– Fontes públicas de água potável;

– Drenagem e aterro dos pântanos;

– Esgotos para as águas usadas;

– Esgotos sanitários;

– Salas de banhos públicos;

– Cuidados de enfermagem.

Existiam cinco categorias de médicos em Roma:

– Liberal: o atendimento do doente era feto na iatreia, ou consultório médico, onde era possível fazer realizar desde a simples consulta até uma pequena cirurgia e a sangria inclusive. Esses médicos também faziam visitas domiciliares acompanhados dos assistentes, algumas vezes escravos. Quando não recebiam o pagamento combinado, recorriam às cortes de justiça para a devida reclamação. A existência de pinturas e instrumentos médicos comprovam a diversidade da Medicina-oficial, em torno de especialistas;

– Públicos: eram remunerados pelo poder público e tinham o privilégio de não pagarem impostos. Faziam os atendimentos médicos nos estabelecimentos públicos em Roma e nas colônias:

– Corte: cuidava do Imperador e dos súditos mais influentes;

– Populares: instalados nas cidades das colônia em proporção ao número de habitantes. Entres outras funções eram obrigados a dirigir o aprendizado de alunos para o atendimento dos pobres;

– Militares: organizados no reinado de Augusto, quando ocorreram muitas campanhas militares, no Leste, eram conhecidos com várias designações: medicus cohortes, medicus castrensis, medicus duplicarus, medicus ordinarus e medicus veterinarus (responsáveis pelos cuidados dos cavalos das tropas. Entre as funções, destacam-se: exame dos recrutas, que eram classificados em: aptos (vocatio militiae) e inapto (morbus); aposentadoria (honesta missia) dos militares; higiene, alimentação e controle da qualidade das águas usadas pelas legiões nos acampamentos e nos descolamentos; atendimento médico e cirúrgico nos campos de batalhas. O mais célebre médico militar romano, Diascóride, escreveu o insubstituível tratado De materia medica, que introduziu a farmacologia das plantas medicinais.

– Tratamentos

– Clínicos: Fórmulas com muitos componentes: algumas eram preparadas com mais de sessenta itens, como a teriaga do médico Andromacus, o Jovem, da corte do Imperador Nero. Eram utilizadas para tratar dores de cabeça, tonteiras, diminuição da acuidade visual, delírios, epilepsia, asma, hemoptise, puerpério, icterícia, metrorragia, febres e outras doenças que não respondiam à terapêutica habitual. A existência de vidraçaria destinada aos remédios é indicativo de que não só existia a freqüência do uso de remédios como também o consumidor;

– Hidroterapia: as águas alcalinas, sulfurosas e salinas eram usadas no banho e na ingestão;

– Sangrias: como uma das mais fortes influências da Medicina grega e de Galeno, com a meta de equilibrar os humores, as sangrias eram indicadas de modo abusivo, para tratar todas as doenças;

– Hospitalização:

Os romanos organizaram numerosos hospitais militares, distribuídos em várias colônias do império, para receber os soldados feridos nos campos de batalhas. Eram construções especiais dotadas de amplas enfermarias com amplas varandas e muito bem arejadas. Como uma das conseqüências dessa centralização, houve grande progresso da prática cirúrgica para tratar as feridas de guerra, que resultaram no aparecimento de muitos instrumentos específicos.

Incontáveis avanços da anatomia romana foram escondidas nos mosteiros e abadias, na Idade Média, sob a guarda sigilosa das autoridades eclesiásticas romanas, contribuíndo para que estranhas concepções anatômicas tenham florido na Medicina-oficial do medievo. Do mesmo modo, várias associações pessoais foram feitas entre os filósofos gregos, como a de Plínio, adotados pelo cristianismo, e obras médicas que se destacaram na Medicina romana.

 

 

 Alguns aspectos da medicina no cristianismo primitivo

 

Considerações gerais

 

De acordo com os exegetas, as fontes cristãs que remontam às origens do cristianismo não são abundantes. Apesar das controvérsias, uma das correntes acredita que, em ordem cronológica, os registros mais significativos são:

– Apocalipse de São João, ano 68;

– Epístolas, primeira metade do século 2;

– Evangelhos, segunda metade do século 2;

– Ato dos apóstolos, Segunda metade do século 2.

Os estudos das fontes históricas não cristãs, principalmente das obras de Filon de Alexandria, Flávio Josefo e Justo de Tiberíade, reforçam o pensamento de que as relações entre a Medicina e o cristianismo primitivo se fizeram baseadas principalmente na herança cultural dos judeus e de outros povos escravos que viveram próximos do centro de influência da nova religião.

Por estas razões, é muito razoável supor que a Medicina praticada pelos cristãos primitivos estivesse mais próxima das práticas médicas judaicas.

A nova crença religiosa, o cristianismo, representou uma das principais manifestações da crise social em curso. No seu início, traduziu contra a ordem vigente. Esse sentido está absolutamente claro no Didaqué (Doutrina dos Doze Apóstolos) que exigia a libertação dos escravos e protestava contra a ordem vigente. Culminou com o tom inconciliável do Apocalipse de São João que condenava o poder de Roma e previa o seu fim próximo (Ap.17,15-18 e 18,1-3).

A religião cristã no seu processo de formação sincretizou o conceito da doença como castigo já existente há muitos séculos antes do monoteísmo. Como conseqüência imediata, deve ter aparecido a figura do profeta, que era representado por um homem especial capaz de ressuscitar os mortos, curar algumas doenças e de prever o futuro. Não se pode afastar a possibilidade de que este personagem mítico tenha surgido a partir da ação dos sacerdotes que curavam e adivinhavam os acontecimentos De acordo com o discurso cristão, Jesus foi também um profeta (Mt 16, 14; Lc 7, 16; Jo 4, 19 e 9, 17).

A prática médica no cristianismo primitivo deve ter seguido os preceitos míticos do Velho Testamento até a sua ruptura com o judaísmo. Esta nova fase pode ter iniciado a partir da recusa dos judeus cristãos de se envolverem na guerra messiânica contra os romanos no ano 66. A importância deste acontecimento não passou desapercebido de Eusébio (História eclesiática, III, 5,3). As autoridades militares romanas evacuaram alguns para Pela, na Transjordânia, outros se refugiaram nas cidades da Síria, da Ásia Menor e em Alexandria. O resultado final foi a desvinculação dos cristãos com o destino nacional de Israel e maior difusão dos seus ensinamentos.

Até que fosse elaborada a estruturas teórica da religião cristã, o Velho Testamento foi o seu suporte ideológico. A doença se apresentava como resultado do castigo divino pelas transgressões morais cometidas ( Ex. 4, 6; Jo 16,12; Sl 39,11) ou como um mal que nas promessas escatológicas será suprimido no novo mundo que Deus dará aos homens ( Is 35,5; 25,8; 65,19). Porém, no judaísmo pós exílio aparece mais a ação dos demônios e espíritos maléficos como os grandes responsáveis pelo aparecimento das doenças.

As atenções médico míticas do AT reproduzem as antigas praticada pelos povos politeístas. As doenças, lepra, loucura, cegueira e paralisia, descritas como sendo de origem divina, são as mesmas e com o mesmo sentido, descritas nas sociedades que povoavam aquela região antes do aparecimento do judaísmo.

É interessante notar que o AT não proíbe o recurso médico formal (2R 20,7 e Tb 11,8-11) e o emprego de certos remédios (Is 1,6; Jr 8,22 e Sb 7,20), contudo ao mesmo tempo afirma:

Dt 32, 39 – E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro deus! Sou eu que mato e faço viver, sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra).

A separação do cristianismo do judaísmo foi fundamental para a difusão como a Nova Aliança. Esse divórcio ficou ligado na literatura eclesiástica ao nome de São Paulo, que no Novo Testamento foi caracterizado como apóstolo dos pagãos.

Sem pormenorizar certas contradições históricas dos evangélicos, Jesus apareceu, inicialmente, como Deus feito homem e como Messias, o Salvador, anunciado pelos profetas hebreus do Velho Testamento. A profecia rezava que a chegada do Messias redimiria o povo de Israel. Nada disto se materializou e a situação dos judeus agravou-se durante e depois da revolta contra os romanos.

Mesmo tendo nascido no meio da nação judaica, o cristianismo primitivo encontrou enorme resistência do judaísmo. Esta oposição aumentou na medida em que os cristãos assimilavam rapidamente os elementos das outras religiões, inclusive alguns ritos e festas pagãs.

Depois da Segunda e última revolta dos judeus, sob a liderança de Bar-Kocheba, entre os anos 132-136, ocorreu o definitivo afastamento entre as duas religiões, de certa forma ajudado pelas medidas administrativas e militares dos romanos. Por exemplo, no local do santuário do Deus de Israel, em Jerusalém, os romanos ergueram o templo para Júpiter.

Para que a separação entre o judaísmo e o cristianismo fosse efetivada, começou a elaboração, por este último, de um conjunto normativo as proibições. Um dos primeiros ritos judaicos abolidos foi o da circuncisão, de fundamental importância para os hebreus já que a salvação só poderia ser alcançada com a obediência da aliança feita entre Abraão e Deus (Gn 17,9-14;21-24).

Seguiu-se com o tom violento da Primeira Epístola aos Tessalonicenses que afirma, pela primeira vez, a acusação contra os judeus de terem crucificado Jesus (1 Ti, 2,15). Foi com base neste veredicto que os representantes da Igreja, ao longo de diferentes períodos, perseguiram os judeus,

A base doutrinária cristã contida nos Evangélicos, já elaborados nessa fase, espalhou-se por grande parte do Império Romano. De certa forma, muito diferente da abordagem vingativa e guerreira do AT, a mensagem cristã, nos primeiros séculos, era dominada pelo contido em:

2Co 11, 20 – Se alguém vos subjugar, se alguém vos devorar, se alguém se apoderar de vós, se alguém for arrogante, se alguém vos bater na cara, suportai-o.

Da Medicina praticada pela massa popular cristã ou não, até o século 5, restaram poucos registros. A maioria deles está nas relações médico-míticas do AT. Da exercida entre os detentores do poder econômico e militar, o conjunto de informações é tão grande que ficou conhecido na historiografia como Medicina romana. É importante saber que esse conjunto de conhecimentos médicos, em Roma, foi exercida em benefício de uma parcela muito pequena da população, representada pelos nobres, militares e ricos comerciantes.

Por outro lado, no período compreendido entre os primeiros anos da era cristã e as invasões do Império Romano pelos bárbaros, é possível que a Medicina popular fosse composta por complexa relação de fatores envolvendo diferentes aspectos que interligavam as Medicinas divina, empírica e oficial.

O sacerdócio de Jesus inspirou o sentimento de ajuda ao enfermo como um dever religioso e perdeu grande parte das conquistas racionais introduzidas pela escola de Cós, entre os séculos 5 e 3 a. C.

A introdução do consolo aos moribundos e incuráveis, a valorização da dor como alternativa de tratamento. A oração, os exorcismos e a extrema unção foram definitivamente adotadas;

A doença como fruto do pecado foi fundamentado por Gregório de Nusa (? – 394) que reconstruiu algumas propostas teóricas de Platão e Galeno, para elaborar os fundamentos da antropologia cristã do pecado para explicar a cura das doenças por meio do milagre.

A partir desta fase, baseados no neoplatonismo, efervescente na época, Anastácio (? – 373) e Gregório desenvolveram a explicação da origem da doença na história da humanidade e o seu valor na criação do homem. Eles concluíram que Adão, foi o arquétipo ideal da espécie humana e que antes do pecado original não existia qualquer doença. Legitimaram, deste modo, a milenar associação entre enfermidade e castigo divino;

Fora desse forte laço que se iniciava com as novas crenças e idéias religiosas, existe evidências de aspectos da medicina greco-romana que se mantinham no cristianismo primitivo.

O conflito da Medicina com o cristianismo se ligou ao tekhné do politeísmo grego. Alguns cristãos ortodoxos, como Taciano (110-175) e Tertuliano (? – depois de 220), chegaram a afirmar ser ilícito o uso de remédios prescritos pela tekhné. Taciano aceitava o uso das drogas nos pagãos, mas não nos cristãos: A cura com remédios, em todas as suas formas, é fruto do engano. se alguém é curado pela fé na matéria, abandona o poder de Deus (Orat. ad Graecos, 20).

Existiu outra corrente com idéias completamente opostas, conforme relatou Eusébio (? – 340). Este grupo cultivava a filosofia aristotélica, a geometria de Euclides, a ciência natural e a Medicina de Galeno. Chegou a afirmar textualmente: Galeno era venerado por alguns deles ( Hist. ecles. V, 1).

É possível que a adoção da idéia grega da physis, como sinônimo de divino tenha sido determinante da sanção eclesiástica desses estudiosos que tentaram enfrentar a cúpula da hierarquia cristã naquela época.

Esse tema foi reaberto por Orígenes (? – 253), que na sua polêmica contra Celso (Sec. II) questionou se era Asclépio, o deus da Medicina grega, ou Jesus quem curava as doenças.

Apesar das controvérsias entre as fontes históricas não cristãs, existe uma tendência para aceitar a possibilidade de que o cristianismo no seu processo de consolidação como religião, tentou conciliar a tekhné grega baseada na experiência com a idéia do Deus cristão pessoal, criador e transcendente.

 

 

 

 

 

LEITURA COMPLEMENTAR

 

ARISTÓTELES. Metafísica (Livro I e Livro II); Ética a Nicômaco; Poética. (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural. 1984.

AUGÉ, Mar, (dir.) A construção do mundo. Lisboa: Ed. 70. 1974.

BOTELHO, João Bosco. Medicina e religião: conflito de competência. 2ª Ed. Manaus. Valer. 2005.

BOTELHO, João Bosco. História da Medicina: da abstração à materialidade. Manaus. Valer. 2004.

Botelho, João Bosco. Epidemias: a humanidade contra o medo da dor e da morte.  Manaus. Valer. 2008.

BOTELHO, João Bosco. Arqueologia do prazer. Manaus.Metro Cúbico. 1992.

BOTELHO, João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Plexus. 1998.

BOTELHO, João Bosco. O Deus-genético. Manaus. EDUA. 2000.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 2. ed. Petrópolis: Vozes. v. 1. 1986.

CORNFORD, F. M. Principium sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1981.

ENTRALGO, Pedro Lain. Estudios de historia de la medicina y de antropología médica. Madri: Escorial. 1943.

HIPÓCRATES. In: Tratados Hipocráticos. Madri: Gredos. 1990.

LYONS, Albert S. Petrucelli, R. Joseph. Histoire ilustrée de la médecine. Paris: Presses de la Renaissence. 1979.

 

 

 

Esta entrada foi publicada em HISTÓRIA DA MEDICINA. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *