ENTENDENDO A SAÚDE E A DOENÇA

ENTENDENDO A SAÚDE E A DOENÇA

Prof. Dr. HC JOÃO BOSCO BOTELHO

A medicina como especialidade social

  1. A dor e o prazer
  2. As memórias sócias genéticas
  3. Ser-tempo e ser-não-tempo
  4. Curadores e adivinhos

A MEDICINA COMO ESPECIALIDADE SOCIAL

O passar dos olhos no processo histórico que consolidou a Medicina como especialidade social trás à toma o esforço humano para:

  1. Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das incontáveis formas e funções das partes do corpo humano;
  2. Estabelecer os parâmetros do normal e do patológico;
  3. Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte;
  4. Manter aceso o conflito de competência com a religião.

A pulsão inata para desvendar o corpo, dotado de propriedades sensíveis de comunicar-se e locomover-se, para fugir da dor e clamar pelo prazer, pode ser considerada uma verdade fundamental tanto no espaço sagrado quanto no espaço profano das relações sociais.

No espaço profano, o observar empírico do ancestral mais distante iniciou, na medida visível dos sentidos natos, as comparações entre o próprio corpo e os dos outros animais. Por outro lado, essa observação jamais esteve desvinculada dos complexos sentimentos com o sagrado. Em muitas circunstâncias, ainda hoje, é impossível saber onde começa o sagrado e termina o profano.

Na malha dessas emoções interligando sagrado e profano, o antepassado remoto   percebeu o quanto diferia dos membros do grupo, a carnalidade da pele, as batidas do coração, o calor do ar expirado e a putrefação da morte. As divergências físicas somaram-se ao confronto entre o real e o imaginário, representado pelas sensações do medo, prazer, coragem, amor e do ódio.

É lógico supor que os nossos antepassados remotos sabiam, através do conhecimento historicamente acumulado (CHA), que uma pancada na cabeça era capaz de matar ou imobilizar a caça ou o inimigo muito mais rápido. Esse primitivo elo entre forma e função pode ter alicerçado o primórdio da consciência do corpo ou da categorização segmentária corporal ¾ a integridade da cabeça como parte mais importante para a sobrevivência do que o dedo amputado ¾ está inserido na mesma textura da precoce observação do quanto os homens e as mulheres são semelhantes e, ao mesmo tempo, diferentes entre si.

Contudo, muito mais do que isto, a consciência do corpo transformou-se, rapidamente, na consciência da vida e da morte. A dicotomia competitiva entre a vida, ligada ao sangue que coagula, e a morte, cercada do mal cheiro da putrefação do corpo, moldou o cortejo das relações socais com o objetivo de prolongar a vida e adiar a morte.

O especialista capaz de adiar a morte ou interromper a dor assumiu importância especial no seio comunitário primitivo.

A recusa da morte como o marco divisor nas relações sociais de competição e cooperação está representado pelo sepultamento ritualístico. A arqueologia sustenta que os neandertalenses, no paleolítico médio, há 400.000 anos, cuidavam dos feridos e enterraram os seus mortos.

As necessidades física e mental da espécie, ao longo de centenas de gerações, moldaram a nível genético, as incontáveis formas e funções do corpo humano para inibir a dor e aceitar o prazer. É transparente o contínuo frenesi para sentir, intensamente, o conforto físico e emocional. O ser é biológico e social; ele não existe sem as trocas e estas não seriam possíveis sem ele.

Nesse contexto, é impossível não pensar em processo muito mais interativo unindo a estrutura genética como o social   ¾ a memória sócio -genética (MSG)¾ moldando o corpo humano ao longo de milhares de anos em torno da posse do território como garantia contra a fome e a sede, das liberdades de ir vir, falar e explorar, do abrigo contra o frio e o calor (Botelho, 1993).

Todos fogem da dor e procuram o prazer. Conforto e desconforto são as chaves acionadoras da MSG. Os corpos vivos, dos espongiários aos mamíferos, são recobertos por tecidos especializados, em muitos milhões de anos, para reagir às agressões externas de natureza física, química ou biológica. A ontogênese, repetindo a filogênese, formou-se com a prioridade de enfrentar o sofrimento e receber, com harmonia, as sensações prazerosas.

Por outro lado, é evidente como a dor lacerante contribui para alterar as emoções, deter e amedrontar qualquer bicho.

As relações interpessoais, com ou sem ajuda da técnica, resultando prazerosas, são acatadas pela maioria. Sempre que o poder dominante insiste em limitá-las ocorre a resistência. A rebeldia contra as fronteiras artificiais, o clamor étnico, o sexo limitado, a incrível sedução pelas drogas proibidas, as revoluções milenaristas e a atual ordem internacional voltada para o verde estão contidas na mesma geometria.

A constância transmitida aos descendentes, no patrimônio genético, das mensagens comuns das memórias sócio-genéticas pessoais forma a memória sócio-genética coletiva (MSGC).

As MSGs são competentes para explicar não só os fantásticos dispositivos natos contra a dor que cobrem cada milímetro do corpo, mas também a própria organização social em torno da resistência pessoal e coletiva contra os que atentam contra os limites da suportabilidade.

Quando a morte advém, como antítese da vida, emudece a MSG, descolora o tegumento cutâneo, resfriando-o e tornando-o insensível ao pior dos tormentos: a dor. O movimento respiratório e o coração param. O corpo desfigurado pelo rigor cadavérico enche de sentido a vida dos que choram. É quando o vivo se apercebe da própria existência e rejeita a morte refletida na carne indolor e desmemoriada.

Deste modo, a História da Medicina é uma parte importante do longo processo histórico da humanidade para escapar da dor, aumentar o prazer, prolongar a vida e fugir da morte a partir do desvendar do corpo em todas as dimensões do visível e do invisível.

O PRAZER

Um dos aspectos mais fascinantes do corpo humano é como ocorreu o processo de adaptação da dor e do prazer à sobrevivência da espécie. O maior obstáculo da neurofisiologia continua sendo estabelecer as correlações entre a forma e a função, no sistema nervoso central (SNC) e no sistema nervoso periférico (SNP), nos níveis macroscópico (órgão), microscópico (célula), ultramicroscópico (molécula), atômico (partículas formadoras do átomo) e subatômico (interação massa e energia)

Dito de outro modo, se o saber empírico é suficiente para comprovar que as pessoas são capazes de sentir dor e prazer, de muitos modos e diferentes intensidades, torna‑se obrigatório existirem áreas, em todos os níveis acima mencionados, responsáveis por aquelas sensações.

Os entraves aumentam na razão direta do desvendar da menor estrutura. O desconhecimento fica mais denso a partir da molécula, por-tanto ainda muito distante do subatômico.

A dor e o prazer estão unidos em complexa ponte, construída du-rante o lento processo de humanização, envolvendo o SNC e o SNP com a vida de relação. Os principais alicerces dessa ligação entre o passado, oriundo de uma filogenia comum, e o corpo atual, formador de uma ontogenia própria, é o neo-córtex e a fantástica malha de células específicas os neurônios    cobrindo as superfícies corporais internas e externas.

O neo-córtex adicionou ajustes no corpo muito remoto moldando-o às emoções recentes, atualizadas na temporalidade das relações sociais. Composto pelo tronco encefálico, hipotálamo, tálamo, área pré‑frontal e sistema límbico, permite o gesto da comoção, o clamor da dor e a busca do prazer.

Com o objetivo de aliviar a dor interior, o corpo, em nível molecular, elabora opiáceos endomorfina, dimorfina e encefalinas   de composição química semelhante à morfina. Na forte emoção, os opiáceos naturais podem exacerbar, a ponto de causa bem-estar. Por outro lado, modelos matemáticos experimentais demonstram que a sensibilidade dolorosa aumenta no estresse.

A fuga da dor e busca do prazer continua sendo duas incontroláveis ordens ontogenéticas. As pessoas organizam‑se com o objetivo de evitar a dor e buscar as fontes determinantes de prazer. Entre as mais importantes, figuram a livre expressão da sexualidade, a posse da terra, a vida depois da morte, dependência entre o seres-tempo e o seres não-tempo e o fácil acesso ao alimento, todos acompanhados das variações simbólicas.

Aceitar o prazer e recusar a dor tem sido um ponto comum de incontestável relevância na vida humana. O corpo foi adaptado a essa determinante sócio‑genética.

O processo evolutivo delimitou mudanças, em todos os níveis do corpo, capazes de ajustá-lo ao movimento social. É inconcebível pensar na dor e no prazer ligados somente às trocas metabólicas físico‑químicas ou ao exclusivo contexto societário. É tempo de interagir a natureza, o social e a História com a genética.

O conjunto das reações neurológicas e bioquímicas, ligando o ser ao mundo das idéias, só é consolidado nas mentalidades   memorizado e reproduzido   quando estiver elaborado em estreita consonância com as exigências pessoais e coletivas, requeridas no processo de humanização. O ser é biológico e social; ele não existe sem as relações de trocas e estas não seriam possíveis sem ele.

O conjunto formador que gera a ação apreendida não se dá sobre o nada. As estruturas nervosas, centrais e periféricas, responsáveis pela intercomunicação entre a memória, a linguagem, os sentidos e o social ligam‑se através de bilhões de sinapses. É a prisão mental de cada um. É a jarra de Pandora, de onde saem os infortúnios e as esperanças da humanidade.

As análises, pretendendo compreender e transformar a sociedade, desprezando um dos componentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e o intrínseco (a genética) têm pouca possibilidade de resistir à crítica.

Há de existir algum tipo de coerência funcional unindo, no nível sócio-genético, a forma e a função dos SNC e SNP ao mundo das idéias A capacidade individual para sentir a dor e expressar o prazer nasce dessas relações biológicas e sociais. Algo que poderia ser chamado de crítica da proteção pura.

AS MEMÓRIAS SÓCIO-GENÉTICAS

Apesar de os estudos da anatomia e da fisiologia terem desvendado alguns aspectos importantes da forma e da função do SNC e do SNP relacionados à dor e ao prazer, estamos longe, muito longe de compreender a maior parte das dúvidas.

Uma das barreiras é a fantástica multiplicidade das formas, no ser vivente, gerando funções semelhantes. Apesar de os homens e as mulheres possuírem áreas anátomo‑funcionais semelhantes, relacionadas com a secreção dos opiáceos naturais, nunca se expressam igualmente.

As maneiras de sentir dor e prazer são infinitas. O produto final dessas sensações desagradáveis e prazerosas é modulado através dos componentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e os intrínsecos (os padrões genéticos herdados na reprodução sexuada).

O estudo das mentalidades, em diferentes períodos, mostra um histérico repetir coletivo, a partir da ordem vinda de um ponto perdido na escala filogenética, atrás dos anseios fundamentais, ditados por uma categoria denominada neste ensaio de memória sócio genética (MSG). É traduzida na vida de relação, desde os tempos imemoriais na liberdade para buscar, mais e mais, o conforto físico e emocional (aqui compreendido como a liberdade de ir e vir, de falar, de explorar e, sobretudo, a sede e a fome saciadas, o abrigo do calor e do frio) nunca resolvidos para a maior parte da humanidade.

Todos fogem da dor e procuram o prazer. A polaridade entre o conforto e o desconforto, sentidos no corpo, são as chaves acionadoras da MSG. Todas as relações interpessoais e com a natureza, com ou sem ajuda da técnica, que resultem prazerosas, são acatadas, sem esforço, pela maioria. Sempre que a ordem social insiste em limitá‑las, ocorre resistência. A rebeldia contra a falta da terra para cultivar, o sexo limitado, o alimento escasso e a incrível sedução pelas drogas proibidas são partes importantes do mesmo universo.

A constância transmitida aos descendentes, pela reprodução sexuada, dos pontos comuns das memórias sócio genéticas pessoais, forma a memória sócio genética coletiva (MSGC), herança do traço ontogenético comum.

As mensagens oral e escrita, estruturadas na ambigüidade objetivo‑subjetivo ou, sob certas leituras, do sagrado‑profano, trazendo a esperança de amenizar a dor, são sempre bem aceitas e festejadas pelas Mg. Nenhum poder ordenador amparado pela força explícita conseguiu conter, apesar da brutal repressão nos porões da intolerância de todos os matizes, a expressão clara das MSGs.

A capacidade de convencimento, fazendo parte da ideia institucionalizada, assenta‑se, sobretudo, na história das representações, das ideologias e das mentalidades constituídas a partir do saber acumulado e sobre ele. Por essa razão, continua muito significativo, junto às massas populares, a sedução exercida na ação política, prometendo maior conforto.

O empenho do poder, propondo a mudança, não obtém resultados, quando toca, de modo inadequado, nas Mg. O medo da dor e do desconforto continuam tão fortes quanto os mecanismos subjetivos, criados pela ficção, para atenuá‑los ou confundi‑los. É possível compreender, nesse ponto, a fantástica relação entre a dor e o prazer com o nascer da consciência, diferenciando o cérebro da mente, traduzindo uma etapa significativa da corrente, entrelaçando a natureza, o social e a História nas MSGs.

O castigo, necessariamente carregado de sofrimento doloroso, é imposto pelo homem ou pela divindade, nos espaços sagrado e profano, para gerar obediência. O medo, advindo da ameaça   da dor física, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos violentados, do permitido e do proibido.

O arcabouço da dor física na MSG, transposto para o sofrimento coletivo, moldou a dor histórica na MSGC. É o grito humano pela vida, pela liberdade, pela saúde, pelo conforto, pela dignidade, pela paz e pela ruptura das correntes que prendem o homem à tirania dos outros homens e dos deuses. É a razão por que sempre existiu a procura de uma ética na conduta humana, ligada à sobrevivência comum, registrada nos códigos de postura.

O sagrado ficcional como mecanismo inato para compensar a dor, ativando os mecanismos endógenos da analgesia, encontrou resposta no brado dos espoliados. O exercício do poder, impondo o castigo doloroso aos resistentes, resultou nos princípios da dinâmica social, onde a coesão e a dissolução, em equilíbrio dinâmico, são dependentes, respectivamente, do predomínio do conforto e da dor, em determinado segmento da sociedade. Os contestadores, compreendidos como agentes da dissolução ou pecadores, são punidos com o pior dos castigos: a exclusão pela enfermidade, mensageira do sofrimento e da morte.

Os curadores assumiram um papel de realce. Eram capazes de atenuar a dor e adiar a morte temida. Os livros sagrados, referência maior da ambigüidade sagrado-profana, são claros quanto ao destaque do curador   na ordem do espaço ocupado. Os mais antigos registros escritos são contundentes. Os assírios e babilônicos entendiam o pecador como o rebelde possesso da antidivindade. As palavras sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos. Os atos coletivos, empregados para modificar a realidade, têm de estar, obrigatoriamente, assentados em pressupostos teóricos, ligados às  MSGs. A coerência ao ato apreendido passa nas pontes que interligam o sistema nervoso central e o sistema nervoso periférico.

Quem está vendo a dor da fome, estampada no rosto de penúria dos entes queridos, ou sentindo a ferida não cicatrizada, está sempre pronto para seguir qualquer proposta para finalizar o sofrimento. De modo semelhante, quando as aspirações são satisfeitas, a tendência é afrouxar a crítica.

Os anseios dos homens e das mulheres, presentes nas MSGs, para reforçar o conforto, são um dos fatores que provocam o movimento social. Quando as idéias são desarmônicas com o anseio, nem mesmo os mais brutais meios de repressão conseguem mantê‑las ativas.

O poder ordenador, mesmo sem saber por quê, percebeu o valor dos registros sócio genéticos. Os seus agentes, os políticos vestidos de curadores, investem na conquista dos grupos sociais, através das mensagens repletas de dádivas que tocam profundamente as MSGs: as variações simbólicas da sexualidade, da terra e do alimento.

SER-TEMPO E SER-NÃO-TEMPO

           

No intervalo de tempo entre esses dois pontos da consciência do tempo, o início e o fim da vida, o homem convive com a certeza da doença e da morte. Nas poucas dezenas de anos que o homem consegue viver, gasta grande parte dormindo e na procura incessante do conforto, da saúde e da justificativa mais coerente da imaginável vida após a morte.

Depois de estabelecer ao longo de milhares de anos as relações dor e prazer, saúde e doença e vida e morte, o homem desenvolveu e acumulou historicamente conhecimentos objetivando vencer a dor, aumentar o prazer e prolongar o tempo de vida.

A grandeza biológica do material genético humano sobre a de todas as outras espécies do planeta se completa com o renascimento após a morte.

Esta busca da imortalidade é tão antiga quanto os registros paleoantropológicos que   chegaram dos nossos ancestrais. Pode ter sido a responsável pelo aparecimento da especialização social que deu origem a procura sistematizada do conforto físico e da saúde e também forneceu as bases teóricas da prática médica como nós a entendemos hoje.

A crença no ser-imortal gerou a dualidade matéria-espírito para transpor a inexorabilidade da putrefação do corpo desmemoriado. O espírito intemporal, como ficção, prolonga até o infinito a vida das pessoas queridas. Para dar sentido coerente ao renascimento, foi idealizado uma imagem corpórea – a alma ou o ser-não-tempo – como o elo entre o visível e o invisível, rejeitando a morte.

Como o pensamento está, sem dúvida alguma, dependente do sociocultural, os homens e as mulheres têm grande dificuldade para articular a linguagem fora do conhecimento patrocinado pela MSG. Deste modo, os seres-não tempo (deuses, duendes, demônios, almas, espíritos), mesmo recheados de variações, são vistos e sentidos com cabeças, braços e pernas. Os seres-não tempo foram formados à semelhança do corpo visível, dotado de comunicação, movimento, pureza e impurezas.

É impossível imaginar a existência do ser-tempo individual fora da natureza, da História e do social. O homem e a mulher estão há muito, muito tempo, atados ao conjunto gregário, augurando o ideal deslocado, pela força da ficção, para o ser-não-tempo. Nunca deixaram de amar e sofrer, de ligar a reprodução sexuada à fertilidade da terra, olhar e admirar o desconhecido, dar nomes à natureza visível, especular o invisível, acumular e reproduzir saberes.

O cuidado com a saúde pode ter começado em qualquer ponto da escala genealógica e certamente se iniciou na procura do conforto físico. A retirada de espinhos e parasitas da pele em forma individual ou coletivamente com a ajuda de outros membros da comunidade foi a primeira forma de assistência prestada nos nossos ancestrais. Esta assimilação da conduta social foi fundamental para o desenvolvimento e sobrevivência da espécie.

Os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, com 97 % de se-melhança genética, são capazes de se tratarem mutuamente lambeando pequenas feridas da pele, retirando parasitas e espinhos que penetram acidentalmente no corpo. Não se trata de simples catação. É indício de verdadeira assistência médica, porque envolve atividade consciente e dirigida a um determinado ponto onde está ocorrendo desconforto físico.

A partir do aparecimento da consciência do tempo no homem, reveladora da sua impotência frente a ocorrência das doenças que levavam à morte, multiplicaram-se as explicações transcendentes, míticas e religiosas a aceitação coletiva do desconhecido. O ponto de conver-gência deste caminho que moldou o pensamento criativo do homem foi o fantástico número de deuses e outros personagens com poderes de curar e ressuscitar que a história registrou.

Desta forma, sob o ponto de vista histórico é impossível dissociar a história da Medicina das relações médico-míticas.

O ponto de convergência que moldou o pensamento do homem foi o aparecimento da consciência do tempo, reveladora da sua impo-tência frente a morte inevitável. Em conseqüência, engendrou um fantás-tico número de deuses e outros personagens com poderes de curar e ressuscitar.

Os milhares de deidades, espalhadas nos quatro cantos do mundo, foram substituídas, nos países cristianizados, pelos santos que operam milagres   capazes de modificar a relação dor e prazer, vida e morte e saúde e doença.

Essas figuras humanas e míticas carregavam com elas uma capa-cidade intrínseca capaz de ressuscitar certos mortos e a cura de alguns doentes. As doenças escolhidas foram sempre as que determinavam impacto nas relações sociais. Já foram lepra, a loucura, a sífilis e a tuberculose. No momento, é a AIDS e os canceres.

Nas intrincadas relações que o homem desenvolveu com essas doenças, sempre as fez porque desconhecia a etiologia e o tratamento. A impotência humana foi buscar no transcendente a aceitação para o desconhecido. Para sustentar a atávica fixação de sua grandeza biológica, é imperativo ao homem transferir   o impossível para o personagem divino antropomórfico, com poder sobre-humano capaz de resolver todas as aflições da sobrevivência.

Como foi possível aos agentes da cura do passado e como é aceito pelos médicos, na atualidade, essa relação médico-mítica que envolve comportamentos diferentes no trato do ser-tempo e do           ser-não-tempo?

Foram as buscas dessas respostas, algumas vezes angustiantes na sua totalidade, passando necessariamente pela história do próprio homem ligada na temporalidade da existência humana os responsáveis pelos pequenos avanços que a humanidade fez na busca da razão da vida ligada à consciência do tempo.

A dificuldade, quase intransponível, de se alcançar mais rapida-mente as explicações, reside no fato de que as crenças e as ideias não são fossilizáveis. Quando a arqueologia escava um túmulo e junto com a paleontologia começa a estudar o esqueleto e os utensílios encontrados, farão importantes conclusões de muitos aspectos relevantes que ajudarão a compreender o grupo social do morto, porém a maior parte dos valores e pensamentos dele continuarão perdidos em mar de conjecturas. Estas dificuldades são proporcionalmente maiores na medida que recuamos no tempo.

A conquista do fogo e as consciências do tempo finito, ligada ao ser-tempo, e do tempo infinito, unida ao ser-não-tempo assinalaram a separação definitiva dos nossos ancestrais dos seus antecessores.

A mais antiga comprovação da utilização do fogo data de 600.000 anos. Os usos racionais do fogo aliado com a busca pelo conforto físico contribuíram decisivamente para a sobrevivência dos nossos ancestrais.

A imaginável vida depois da morte tem acompanhado o homem na sua busca para prolongar ao máximo o seu tempo de vida. Possivelmente esta fantástica busca começou com a idéia religiosa arcaica de que é possível, ao animal, renascer a partir dos ossos.

Neste sentido é conhecida e valorizada a citação do Antigo Testamento (Ezequiel, 37:1-8):

”A mão do Senhor veio sobre mim, e me tirou para fora pelo espírito do Senhor: e ela me tirou no meio de um campo, que estava cheio de ossos. E ela me levou por toda a roda deles. Eram, porém, muitos em grande número os que se viam sobre a face do campo, e todos sobremaneira secos. Então me disse o Senhor: Filho do homem, acaso julgas tu que esses ossos possam reviver? E eu lhe respondi: Senhor Deus, tu o sabes. E ele me disse: vatici na acerca destes ossos, e: Ossos secos ouvi a palavra do Senhor. Isto diz o Senhor Deus a etes ossos: Eis aí vou eu a introduzir em vós o espírito e vós vivereis. E porei sobre vós nervos, e farei crescer carnes sobre vós, e sobre vós estenderei pele: e dar-vos-ei o espírito e vós estenderei pele: e dar-vos-ei o espírito e vós vivereis e sabereis que eu sou o Senhor”.

Esta preocupação com os ossos e o conhecimento da decom-posição do corpo após a morte influenciaram decisivamente no comportamento do homem em relação ao processo do sepultamento ritualístico.

Os documentos arqueológicos mais antigos e confiáveis desse estudo são as ossadas. O início do sepultamento ritualístico data entre 70.000 e 50.000 anos. Em esqueletos e restos de ossos deste período, foram encontradas a ocra vermelha (argila colorida pelo óxido de ferro com várias tonalidades pardacentas), que substituiu o ritual do sangue como símbolo da vida, sugerindo a crença, já naquela época, de que a existência de nova vida após a morte era considerada não só possível, mas alcançável através de práticas coletivas que envolviam o tipo de sepultamento das pessoas.

Somente a esperança da imortalidade pode justificar a preocu-pação que acompanha o homem, desde a sua origem, na ritualística do sepultamento das pessoas amadas.

É difícil aceitar essa parte vital das relações humanas como exclu-sivamente social ou, simploriamente, ligada à reprodução das imagens oníricas.

Entre os sepultamentos ritualísticos, datando entre 70.000 e 50.000 anos, melhor estudados, constam:

  • No sítio arqueológico Lemoustier, na França, um esqueleto de adoles-cente do sexo masculino, girado sobre o seu lado direito como se estivesse dormindo, com o crânio repousando sobre pilha de sílex servindo de travesseiro e tendo ao lado um machado de pedra cuidadosamente esculpido próximo a vários ossos de gado selvagem, sugerindo que foi enterrado com grande quantidade de carne para servir de alimentação na sua nova vida após a morte;
  • Em Teshid Tash, na Ásia Central, a ossada de criança jazia sobre os ossos de uma rena cujos chifres formavam espécie de coroa ao redor da cabeça da morta;
  • Na caverna de Shanider, no monte Zagros, no Iraque, o esqueleto de um homem adulto sobre uma enorme quantidade de pólen fossilizado de flores de diferentes espécies vegetais. A análise desse pólen mostrou tratar-se de plantas medicinais, ainda hoje utilizadas, pelos habitantes daquela região, no tratamento de diversas doenças. É provável que o homem enterrado tivesse sido o médico-feiticeiro do grupo social e as plantas colocadas no túmulo para que ele continuasse o seu trabalho específico na outra vida após a morte;
  • Na gruta Chapelle-aux-Saints, na França, foi encontrado o esqueleto do homem adulto acompanhado de vários utensílios de sílex com pedaços de ocra vermelha.

Não pode haver dúvida que a busca da explicação do sentido da vida e da morte sempre acompanhou o homem. A presença de utensílios, que eram enterrados junto com os nossos antepassados distantes, está diretamente relacionada com a crença no renascimento após a morte e não somente isso, mas acompanha a certeza de que o morto continuará a sua principal atividade na nova vida após a morte. A maioria desses corpos foram enterrados voltados para o leste, definindo a intenção de unir o renascimento com o curso do sol, símbolo da vida e da interminável renovação da natureza.

CURADORES E ADIVINHOS

As fronteiras entre adivinhação e medicina são tão vagas que não nos surpreenderá encontrar num tratado médico um prognóstico aventureiro e, num tratado de adivinhação, um diagnóstico médico pertinente. ”  Janine Carrier

A história, mesmo quando abordada como pretensa sucessão imparcial dos fatos históricos, está repleta de dados confirmando a exis-tência, desde tempos imemoriais, dos curadores e adivinhos. A maioria desses trabalhos está colocada na polaridade estática que favorece o maniqueísmo.

Transcrevem em análise elogiosa quando eles estão apoiando o poder dominante ou, simplesmente, despreza-os quando representam a resistência.

Entendemos o papel social dos curadores e adivinhos como situado em contexto muito mais amplo. É necessário estender a historiografia no tempo, sob o enfoque dinâmico da luta travada pelos grupos na ocupação dos espaços sociais e políticos, para que possamos compreendê-los como, agentes de coesão social.

E até possível que as pessoas especializadas em curar e adivinhar tenham uma qualidade especial própria – o dom –  que as distingam dos outros mortais.

É notório, há milhares de anos, o reconhecimento coletivo da existência de homens e mulheres com capacidades especiais, de possível natureza transcendente, para curar e adivinhar, intermediando a vontade da Divindade.

Infelizmente, continuamos sem compreender o seu significado biológico. Permanece sem resposta a indagação: será que o curso da vida pode ser modificado por esse dom?

Enquanto não temos outra resposta, continua prevalecendo o sentido bíblico (CTG. 1,17), largamente difundido depois da cristianização do Ocidente:

Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das luzes”.

Tanto nas sociedades ágrafas como nas que desenvolveram a linguagem escrita, é possível identificar uma intricada relação de dependência entre essas pessoas especiais com os diversos segmentos sociais das comunidades onde atuavam.

Esse nó, relacionado com a capacidade humana em abstrair o pensamento para enfrentar a doença e o futuro, está envolvido no processo de ligação humana com o transcendente através da experiência religiosa com o sagrado.

É possível que essa complexa manifestação social tenha começado no desconhecimento causal das intempéries naturais e alimentado pela necessidade do controle social pelos que detinham o poder político e militar.

A maior pane da comunicação religiosa acabou sendo feita sobre a regra binário do prêmio-castigo. A saúde e a bonança eram os prêmios pelo cumprimento das ordens, a doença e o mau tempo representavam o castigo pela desobediência.

Por essa razão, o aliado do poder dominador que curasse a doença e previsse os infortúnios, representava a divindade. Ao contrário, quem não reproduzisse a mensagem dominadora, mesmo que sarasse e adivinhasse com a mesma competência, era identificado como a anti-divindade.

É também possível evidenciar que os curadores e adivinhos, em muitos contextos históricos, exerceram função equivalente na organização social. É por essa razão que os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde os primeiros tempos.

É lógico pensar que a posse do dom sempre deu mais poder a quem o possuía, colocando-o em destaque na comunidade, sempre aparecendo na História como conselheiro prudente ao intermediar a vontade divina e.

Nas suas práticas, eles utilizaram esse poder e os saberes historicamente acumulados no trato da doença para manter os seus privilégios ou estruturar certos núcleos de resistência em situação de adversidade.

A segunda possibilidade se dá, fundamentalmente, quando o poder, nas suas diferentes manifestações de força, tenta impor novas concepções escatológicas, como etapa indispensável da substituição cultural da luta entre dominador e dominado.

A linguagem do dominador para manter o projeto político de mudança do antigo pelo recente é de fundamental importância. Ela deve trazer, de modo transparente a mensagem de esperança requerida pelos anseios coletivos anteriores à conquista. Só assim, será competente para seduzir e minimizar a resistência no povo conquistado.

Nas circunstâncias que seguem o jogo de força entre conquistador e conquistado, a resistência nasce e manifesta-se na razão inversa da sedução exercida pelas novas propostas de vida e morte ao fazer surgir outros conceitos de salvação pessoal e coletiva.

A relação do poder dominante com as idéias religiosas é caracterizada pela tendência marcante, sempre que possível, para substituir o conjunto das crenças do povo subjugado.

Quando esta alternativa se toma impossível de ser realizada em curto prazo, são impostas as alianças culturais através do sincretismo religioso, determinadas pelos núcleos de resistência.

Alguns reis citados no Antigo Testamento, como Baal e As tarte cultuados na Mesopotâmia, foram identificados pelo judaísmo como cura-dores e adivinhos representantes da anti-divindade.

A História está repleta de exemplos das tentativas de substituição das crenças e das idéias religiosas.

A dura condição de vida imposta aos povos conquistados pelos monarcas pré-cristãos contribuiu para o aparecimento de vários heróis mítico de salvação durante a dominação romana na Palestina.

O surgimento do cristianismo pode ser inserido nesse contexto, onde muitos povos, desgastados com as suas antigas crenças, foram buscar na nova mensagem cristã as forças da libertação.

O processo de substituição cultural nunca se dá em linha reta. E efetuado em dois momentos distintos: o novo sendo difundido a partir da desmoralização do antigo.

A complexidade aumenta no embate das forças de pressão e contrapressão dos grupos que digladiam para ocupar os espaços. Todavia, é somente no segundo instante que a conquista se consolida, justamente quando pode aparecer o herói mítico de salvação para satisfazer as aspirações coletivas imediatas.

Existiram muitos heróis míticos na História das crenças e das idéias religiosas. Jesus Cristo, fundador do cristianismo, é identificado como um dos mais importantes.

A mensagem cristã de libertação modificou completamente a estrutura sócio-política do mundo Quase dois mil anos depois, continua tendo uma sedução irresistível, capaz de penetrar na profundidade do sentimento humano.

De acordo com os Evangelhos, Jesus Cristo veio ao mundo como o filho encamado de Deus, com poderes de curar e ressuscitar a fim de anunciar uma nova mensagem escatológica.

É claro que não podemos deixar de pensar na existência de outras condições sócio-políticas para sedimentar a incrível sedução que acompanhou a mensagem salvífica anunciada pelo cristianismo primitivo.

A miséria tinha atingido um patamar insuportável para o povo ouvinte das primeiras mensagens cristãs. Há 1900 anos, a população do Império Romano foi calculada na ordem de 65 a 70 milhões e somente perto de quatro milhões, segundo os dados demográficos levantados pelo imperador Augusto, eram cidadãos romanos.

Os hebreus, no Oriente helênico, que já adoravam um Deus único centenas de anos antes, chegavam à proporção significativa de um para cada dez habitantes daquela região.

Destituídas do mínimo para sobreviver como escravos, durante muitas gerações as oposições foram impiedosamente esmagadas pelo poder dominador. Elas resistiram utilizando artifícios de simulação, quase sempre refugiadas em guetos, onde a organização social rígida em imperativa para a sobrevivência do grupo.

As comunidades hebraicas faziam parte desse bizarro mosaico de mentalidades. Elas reproduziram, ao longo de três mil anos, as próprias experiências sagradas através de três elementos de coesão social organizados pelos seus representantes da Divindade: a fé monoteísta, a sinagoga e sábado. Esse conjunto, em grande parte oriundo da memória oral, foi transcrito para os livros sagrados (Tora e Talmude) e utilizado como instrumento de organização social.

A tradição semita vivia uma religião de fé em Deus e a esperança no futuro capaz de modificar. Ò intolerável jugo estrangeiro contestador dos elementos da coesão social.  A promessa de Divindade aos profetas transformou os hebreus no povo do futuro que desfrutaria da terra prometida farta que mana leite e mel. Assim, o judaísmo rompeu com no tempo cíclico e estabeleceu a crença num tempo final.

E evidente que as idéias religiosas se manifestam no coletivo de modo sincrético, sem que se possa estabelecer limites precisos onde começa uma expressão de religiosidade e termina a outra. O cristianismo primitivo, nascido no seio das mamas populares perseguidas pela implacável dominação romana, foi aquecido pelas crenças mais antigas do judaísmo, que continuava esperando o seu herói mítico de salvação (Jo 1,49):

Então Natanael exclamou: Rabí, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel?”

Ainda nesse ponto de sua história, o cristianismo era uma manifes-tação religiosa de povos oprimidos, desesperados para minorar os sofrimentos, porque estava pleno de sincretismo, onde os curadores e adivinhos de todos os matizes tinham espaço.

Era indispensável que fosse consolidada a mudança. Os primeiros padres da cristandade, cumprindo o processo de substituição cultural do velho pelo novo, deslocaram grande parte da antiga escatologia judaica e passaram com nitidez de uma concepção coletiva para valorizar mais o individual, onde a confissão a Jesus era a única salvação.

Com a sua passagem de religião dos desprotegidos para dar legitimidade ao dominador, iniciou o longo processo de dominação por meio da catequese. Todos e tudo que se colocavam entre o Cristo crucificado e os projetos dominadores deveriam ser eliminados.

O pajé, esteio da coesão tribal, foi uma das tristes vítimas dessa escolha. Apesar de ter sido brutalmente desmoralizado pela sanha colonial durante quatro séculos, continuou resistindo nos. confins das florestas.

O padre salesiano Bruzzi, depois de conviver durante mais de duas décadas num povoado do grupo Tukano, no Amazonas, é testemunha viva desta resistência:

 “É talvez o maior sacrifício que a catequese católica impõe aos indígenas cristãos, a renúncia à crença no poder do pajé. Em alguns casos, só o consegue parcialmente”.

Uma parte significante do clero católico continua combatendo os curadores populares nascidos das tensões sociais. Sem compreendê-los como agentes de coesão social, não está conseguindo processar uma linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos nascidos nas contradições do subdesenvolvimento.

Essa dissociação entre a hierarquia eclesiástica e a concepção do sagrado das massas culminou, na Idade Média, com o brutal assassinato de milhares de pessoas nas fogueiras de lenha verde, acesas pela insanidade da Inquisição.

Nesse período, entre os anos 900 e 1600, quando se consolidou o cristianismo como religião dominante, no Ocidente, o processo abandonou os cuidados coletivos com a saúde, alimentação e higiene recomendados pelos livros sagrados do judaísmo e pela cultura greco-romana. Como a nova religião não teve tempo para sedimentar outras regras, a maior parte das massas populares ficou sem parâmetros para enfrentar as dificuldades resultantes da urbanização desordenada.

O triste resultado se revelou no tipo de arquitetura centrada sobre a catedral com o completo desprezo das regras de saúde coletiva e pessoal adotadas no mundo greco-romano. Provavelmente, este fato contribuiu para a disseminação das grandes epidemias que sangraram a Europa no mesmo período.

Com a mesma abordagem é também possível enfocar alguns aspectos do processo colonizador brasileiro, onde o sincretismo religioso se fez muito forte todos os estratos sociais.

A força dos núcleos de resistência à substituição cultural imposta pelo colonizador cristão no Brasil, em diferentes épocas, obedeceu às tendências das quatro tradições religiosas lideradas pelos seus agentes, atuantes simultaneamente como curandeiros e adivinhos, mais ou menos valorizados ou combatidos pelo poder dominador de acordo com os componentes da tensão social:

  1. Indígena – o pajé;
  2. Africana – o pai de santo;
  3. Cristã – o padre;
  4. Kardecismo – o médium.

O catolicismo romano ao combater os curadores populares, nascidos nas tensões sociais e sem compreendê-los como agentes da coesão social, não está conseguindo processar uma linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos erguidos pelos agravos da miséria social que domina o subdesenvolvimento.

A persistência desse divórcio entre a hierarquia eclesiástica e a concepção do sagrado das massas populares é, em parte, responsável pelo esvaziamento das paróquias. Por outro lado, se reflete na gradativa diminuição da fé cristã católica.

Do outro lado, as novas igrejas cristãs, frutos da atomização do poder da Cúria Romana, divulgam mensagens mais sedutoras, promovendo as sessões de curas e catarses ao som dos cânticos de louvor à divindade, entoados por milhares de fiéis.

Com essa estratégia, elas penetram com maior facilidade na vontade popular e ocupam os espaços sócio-políticos nascidos do desencanto, da insatisfação e da miséria.

Os curandeiros e adivinhos tomaram-se elementos de coesão social ao aperfeiçoarem o trato com o sagrado, resistirem às conquistas e impulsionarem o homem e a mulher em direção da liberdade.

Esta entrada foi publicada em ÉTICA MÉDICA-BIOÉTICA. Adicione o link permanente aos seus favoritos.