O ATO DE ESCREVER E AS MEMÓRIAS SÓCIO GENÉTICAS

Prof.  Dr.  HC João Bosco Botelho

  1. O desvendar do corpo e o ato de escrever.

Um dos aspectos mais intrigantes e, ao mesmo tempo, fascinantes, no estudo da neuropsicologia, é como ocorreu, no corpo, desde tempos imemoriais, o processo de adaptação que culminou no acervo, guarda e reprodução do conhecimento historicamente acumulado, através das linguagens oral e escrita.

Na realidade, o maior obstáculo do pesquisador continua sendo estabelecer, no método científico, as correlações entre a forma e a função, no sistema nervoso central, em níveis macroscópicos (órgão), microscópico (célula), ultramicroscópico (molécula), atômico e subatômico.

Dito de outro modo, se a observação empírica é suficiente para comprovar que o ser humano é capaz de falar e escrever, torna‑se obrigatório existirem áreas anátomo‑funcionais, nos níveis acima mencionados, responsáveis por aquelas ações.

Os entraves aumentam na razão direta do avanço dos estudos na direção da menor estrutura. O desconhecimento fica mais denso a partir da molécula, portanto ainda muito distante da unidade massa‑energia, no interior do átomo, objetivo maior da investigação científica.

A convicção de um evoluir temporal impõe, de modo contundente, o estudo das mudanças corporais estendidas no tempo.  Assim, sob a guarda da anatomia, no nível macroscópico, e da fisiologia do sistema nervoso central (SNC) humano, é possível ensaiar, através da paleopatologia    com razoável margem de acerto, a análise das impressões determinadas pelo cérebro dos hominídeos, na face interna dos crânios fósseis.

As transformações sofridas na forma do sistema nervoso central (SNC), há milhares de anos, e, consequentemente, o modo como o órgão se mantinha, em contato com os ossos do crânio, estão, sem qualquer dúvida, relacionadas, também, com a atual capacidade de falar e de escrever.

Alguns antropólogos1 afirmam que as moldagens endocranianas dos Pitecantropos (Homo eretos viveu há 300. 000 anos) evidenciam, na superfície cortical, marcas das áreas identificadas, hoje, como responsáveis pela linguagem falada. Nesse sentido, é razoável pensar que esse antepassado humanoide já possuísse algum tipo de fala.

Os atos de falar e de escrever estão unidos em complexa ponte, envolvendo a maior parte do SNC com a vida de relação, principalmente certos segmentos do córtex, identificados com a capacidade de imaginar e representar a ficção, isto é, a coisa não percebida na materialidade espacial.

Admite‑se a existência de um cérebro primitivo onde estariam escritas as memórias indispensáveis à sobrevivência da espécie2. A convicção dessa herança primitiva é apoiada em estudos da embriologia, capazes de afiançar a incrível semelhança na forma entre embriões de diferentes espécies, com até três semanas de vida intrauterina. Essa similitude impôs o conhecido pressuposto: a ontogenia segue, em determinado tempo, a filogenia.

Um dos principais alicerces da ponte entre o passado muito antigo, contido no cérebro primitivo, oriundo da filogenia comum, e o cérebro atual, resultante do processo evolutivo é a insubstituível polaridade entre a dor e o prazer3.

Fugir da dor e buscar o prazer continua sendo a mais forte das ordens filogenéticas. Todos aos animais, de qualquer espécie, organizam‑se com o objetivo de evitar a dor de qualquer natureza e ativar, sempre que necessário, as fontes naturais produtoras de prazer. Entre as mais importantes estão a sexualidade e o alimentos, ambos acompanhados das derivações simbólicas.

As contradições contidas nos dramas sociais, provocados pela luta em torno da sobrevivência dos antepassados humanoides, induziram, pouco a pouco, modificações na forma do corpo e, especificamente, na do SNC, ajustando as metas das novas funções.

Aceitar o prazer e recusar a dor parece ter sido um ponto comum de incontestável relevância no projeto da vida humana no planeta. Todo o corpo foi adaptado a esse determinante sócio genético.  Incontáveis terminações nervosas livres mantêm todas as estruturas corporais atentas à dor e ao prazer. Pode‑se afirmar, sem receio de estar cometendo um exagero, que a vida humana, nos moldes hoje aceitos como reais, não teria sido possível, sem essa adaptação neurossensorial.

Acoplado à forma primitiva, como fruto do processo de humanização, formou‑se, no SNC, o neocórtex, adicionando um ajuste entre o passado remoto e as emoções, atualizadas, pouco a pouco, na temporalidade das relações sociais.

O neocórtex é um conjunto heterogêneo de áreas encefálicas, relacionado com o comportamento emocional e, desta forma, com a capacidade humana de reproduzir, também, o ato ficcional. Entre as suas estruturas mais importantes, estão tronco encefálico, hipotálamo, tálamo, área pré‑frontal e sistema límbico.

Desde 1937, graças aos estudos de James Paez, ficou demonstrado que as emoções estão, na maior parte, relacionadas com as estruturas do sistema límbico, do hipotálamo e do tálamo, conhecido, posteriormente, como circuito de Paez.

Até hoje, não foi possível separar a linguagem emocional (choro, riso, gestos, postura corporal, a mímica do prazer e da dor, o olhar, etc.), com origem, predominantemente, límpida, da linguagem voluntária, cuidada no vocabulário, armazenado no neocórtex.

A cirurgia experimental evidenciou, definitivamente, a importância do sistema límbico nas emoções. Após a retirada cirúrgica bilateral da parte anterior dos lobos temporais, em macacos Réus, lesando hipocampo, giro parahipocampal e corpo amigdaloide, os animais modificaram o comportamento, nos seguintes pontos:

  1. a agressividade foi substituída pela passividade;
  2. passaram a comer alimentos antes recusados;
  3. incapacidade de reconhecer objetos, como ferro em brasa, e outros animais, como escorpiões e cobras, antes, determinantes de dor física e medo;
  4. aumento da atividade oral levando todos os objetos à boca, mesmo aqueles que poderiam causar a morte;
  5. aumento desordenado da atividade sexual, levando os animais a tentarem o ato sexual com parceiros de outras espécies e a de se masturbarem continuamente.

Fora da conhecida conjunção genética, sem que saibamos por quê, a lateralização funcional dos hemisférios cerebrais indica o esquerdo, nos indivíduos destros, como o predominante na linguagem e no controle da atividade gestual proposital.

O hemisfério cerebral direito é o responsável pela apreensão viso espacial, pelas atividades musicais e pelo reconhecimento da forma fisionômica. Assim, identifica e classifica, através da análise da forma, sem que o nome do objeto, na linguagem oral, ou a palavra, na linguagem escrita, necessitem ser expressos.

Nos primatas, a vocalização organiza‑se na face interna do lobo frontal. No rastro da ontogênese, esse controle se torna, gradualmente, mais complexo e é possível, no homem, determinar uma área especializada, na convexidade do córtex frontal, mantendo conexões sinápticas, no sentido crânio‑caudal, no nível rinencefálico, reticular peduncular, bulbo e órgãos fonadores.

Graças a essa interligação, entre outras determinantes, os humanos são capazes de reagir, seletivamente, ao sinal emitido pelos semelhantes e reproduzir, pela imitação, a mensagem ouvida.

Como sequência, as linguagens oral e escrita guardam, nas origens, a profunda marca da vida afetiva, onde as emoções sentidas ou friccionadas são armazenadas numa memória, infelizmente escondida nas dimensões molecular e atômico‑corpuscular.

Um dos produtos finais da interligação das estruturas cerebrais com a vida vivida é reproduzida na consciência de si mesmo, impondo aos homens a incrível condição de depositário e herdeiro das gerações anteriores, transmitida, inicialmente, pela oralidade e, depois, seguida pela linguagem escrita.

A maior parte dos pesquisadores concordam em que a linguagem, para se manifestar, estabelece estreitas correlações sinápticas em todo o encéfalo, passando no neocórtex associativo, com o objetivo de manter ativa a percepção do circundando e a expressão das emoções vividas na interpretação do ato apreendido.

Na dimensão macroscópica (órgão), os pontos cerebrais em torno dos quais se organiza a linguagem são a área de Broca, a área motora responsável pelo controle fonético da expressão, e a zona de Herschel, de natureza receptiva, onde a mensagem é decodificada.

Os dois hemisférios cerebrais não participam, igualmente, desse complicado mecanismo neurofisiológico. A dominância do esquerdo, como nas atividades manuais, é programado, geneticamente. Por outro lado, sabe‑se que o hemisfério cerebral direito não é desprovido de função linguística. Apesar de não ter acesso à palavra, é capaz de manter a informação em torno de frases curtas e pode decifrar a linguagem escrita.

Sem que possamos estabelecer as causas, o hemisfério direito, mesmo anatômico e funcionalmente menos adaptado para exercer o domínio da linguagem, poderá substituir o esquerdo, no caso de uma lesão irreversível, antes da idade de cinco anos.

Talvez essa similitude escondida na forma e trazida à tona na necessidade da função suprimida por causas não congênitas, esteja relacionada com certos aspectos moduladores do discurso que interagem os dois hemisférios cerebrais, traduzidos na linguagem escrita, com os advérbios e as locuções exprimindo reserva e acentuação.

Do mesmo modo, é razoável supor, mesmo não sendo ainda possível realizar demonstração em laboratório, que o processo evolutivo determinou também modificações fundamentais a nível celular e molecular capazes de ajustar as funções cerebrais às necessidades sociais.

Essa afirmativa é incisiva e incontestável em outras partes do corpo. Por exemplo, a diminuição gradativa da arcada dentária em função do menor uso do esforço mastigatório. A partir do uso do fogo4, mais ou menos em torno de trezentos mil anos, ocorreu um conjunto de fatores, incluindo o cozimento dos alimentos, tornando‑os mais macios, ocasionando a redução da potência da musculatura mastigatória e, em consequência, do tamanho e número de dentes reptos, na maturidade.  Essa seria uma explicação dos terceiros molares permanecerem inclusos.

Infelizmente, a maior parte do SNC permanece desconhecida a nível molecular e dificulta o estudo nos moldes do método experimental.

É inconcebível pensar no ato de escrever ligado somente às trocas metabólicas físico‑químicas, no nível biológico‑molecular, ou na exclusiva origem social.

É tempo de interagir a natureza, o social e a História com a genética. A força mental que impulsiona a repetição e molda a ficção é muito forte para ser exclusivamente sociocultural.

O conjunto das reações neuroquímicas, ligando o ser ao objeto, só é consolidado nas mentalidades ─ memorizado e reproduzido ─ quando for elaborado em estreita consonância com as necessidades pessoais e coletivas, requeridas no processo societário.

O ser é biológico e social; ele não existe sem as relações de trocas e estas não seriam possíveis sem ele. Logo, todas as ações por ele apreendidas, inclusive a escrita, também seguem o mesmo concatenamento.

As análises históricas, pretendendo compreender e transformar a sociedade, e as teorias pedagógicas, desprezando um dos componentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e o intrínseco (a genética) tem pouca possibilidade de resistir à crítica.

Por outro lado, os indicadores mostram que todas as teorias pretendendo desvendar os mistérios da vida de relação ‑ nas quais estão incluídas as que tratam da fantástica capacidade de escrever ‑ valorizando a natureza humana pendular entre o objetivo e o subjetivo, contida nos determinantes intrínsecos e extrínsecos, acima citados, oferecem maior possibilidade de acerto.

Entretendo, o conjunto formador que gera a ação apreendida não se dá sobre o nada. As estruturas nervosas, centrais e periféricas, responsáveis pela intercomunicação entre a memória, a linguagem, os sentidos e o social ligam‑se ao córtex cerebral, através de bilhões de sinapses. É a prisão mental de cada um. É a jarra de Pandora de onde já saiu, na oralidade, e continuará brotando, na linguagem escrita, todos os infortúnios e todas as esperanças da humanidade.

A vida de relação, registrada no ato de escrever, está sob o constante crivo neurológico‑funcional. Não existe qualquer dúvida das conjunções anatômicas e funcionais, unindo como gêmeos xifópagos, a forma e a função, mesmo que até hoje não estejam bem explicadas.

Entretanto, estão identificados, pela cirurgia experimental, alguns centros neurológicos específicos, relacionados com o comportamento emocional. Quando estimulados artificialmente por corrente elétrica, nos animais de laboratório, são capazes de os impelir às expressões de sono, agressividade e medo ou fazer o animal assumir posição de cópula ou de choro.

Há de existir algum tipo de coerência funcional a nível celular, molecular e em dimensões ainda menores, na conjunção massa‑energia, no interior do átomo, ligando o ser ao objeto, transcrito no ato de escrever.

Logo, a capacidade individual para sentir e expressar as emoções, nas linguagens, nasceriam como consequência das relações biológico‑sociais.

Vez por outra, o lento desvendar avança, apoiado no estudo dos achados acidentais. Foram descritos dois casos clínicos, na literatura especializada, relacionados com os núcleos cerebrais da linguagem, atendidos por pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e do Hospital Maggiore, Bolonha, na Itália.

No primeiro, um homem com 62 anos, depois de sofrer um derrame cerebral, não conseguiu mais escrever as vogais; as palavras eram escritas em perfeita simetria com o pensamento expresso oralmente, porém só com as consoantes. O paciente não conseguia simbolizar as cinco letras. Não resta mais dúvida de que a escolha dos caracteres, para compor a linguagem escrita, está contida num segmento específico do cérebro.

O segundo relato diz respeito ao paciente do sexo masculino, 32 anos, norte‑americano, que depois de ser acometido por acidente vascular cerebral, perdeu a familiaridade com o inglês, sua língua materna, e passou a acrescentar vogais às palavras, resultando num sotaque escandinavo. A cura do distúrbio deu‑se na medida da recuperação da área cerebral danificada pela isquemia.

É precisamente nessa convergência, entre o físico presente na estrutura celular e o crivo do genético‑social, dando forma à função, que ocorre a maravilhosa e intrigante materialidade da ideia invisível, capaz de nominar, desvendar, criar e transformar o objeto.

Por essa razão não existe discurso sem a linguagem impregnada do saber acumulado historicamente5. No contexto da multidisciplinaridade, as gramáticas são, na essência, ideológicas, porque expressam um tipo de posse do real e as características pessoais que marcam, profundamente, nos corpos, os prazeres e as dores sentidos e imaginados.

Por essa razão, a busca da verdade opera‑se no conflito entre o objetivo e o subjetivo (de certa forma, confundindo‑se com o sagrado e o profano), refletindo o estado da coisa numa determinada temporalidade. A variante do tempo impõe‑se, por estar contida na essência que torna perceptível a forma e a função do ser vivente.

O objetivo primário da ação neurológico‑motora (a ideia seguida do movimento do corpo), motivada pela mensagem atávica‑social, responde, por si mesmo, ao mais fundamental sentimento mantenedor da sobrevivência: a cooperação unindo os grupos para fugir à dor e desfrutar do maior prazer. Algo que poderia ser chamado de crítica da proteção pura.

Todos os seres vivos, sem exceção, desejam o abrigo protetor. Não se trata, exclusivamente, do viver. O morrer pode representar, em certos instantes, o ato cooperativo dominante e, nesse caso, a morte representará a proteção pura.

O anseio para compreender as diferenças entre o constatado pelos sentidos (objetivo) e o imaginado extra‑sensorial (subjetivo), propiciou interdependência muito forte entre elas. Em certas etapas do processo, é impossível saber onde começa uma e termina a outra.

Não existiram partidas independentes. A realidade, vivida pelos humanos com os outros animais, dividindo o meio ambiente comum, contribuiu para fortalecer profundas imitações simbólicas, presentes como marcas profundas do tempo passado, na consciência coletiva.

Muitos inventos e expressões estéticas, no passado e no presente, projetadas pelo aprimoramento da técnica, acabam sendo facilmente identificadas no meio comum partilhado.

O ímpeto para reproduzir os elementos visíveis, tirando deles a utilidade para sustentar o conforto (aqui compreendido como a fome e a sede saciadas, o alívio da dor e o abrigo contra o frio e o calor), influenciou as primeiras interações entre o pensamento, o ato e o social.

O fato dos nossos ancestrais longínquos terem aprimorado as cópias do perceptível na natureza circundante6, animais e coisas, nos abrigos das cavernas, há milhares de anos, representa a certeza da profunda coerência entre a forma e a função no corpo.

  1. As memórias sócias‑genéticas3

Apesar de os estudos da anátomo‑fisiologia terem desvendado alguns aspectos importantes da forma e da função do SNC relacionados com as linguagens oral e escrita, estamos longe, muito longe de compreender a maior parte das dúvidas.

A principal barreira é a fantástica multiplicidade das formas, no ser vivente, gerando funções semelhantes. Apesar de os homens e as mulheres possuírem áreas anátomo‑funcionais semelhantes, relacionadas com a linguagem, jamais se expressam igualmente.

As maneiras de articular as palavras, formando as frases e as ideias ficcionais são infinitas.  Cada ser humano possui, como produto da interação genético‑social, a própria marca na linguagem utilizada. Apesar de a gramática ser finita, a língua gerada por ela é incomensurável.

O produto final das linguagens oral e escrita é, consequente, um dos vetores que modulam os componentes extrínsecos (a natureza, o social e a História) e os intrínsecos (os padrões genéticos herdados na reprodução sexuada).

O estudo das mentalidades, em diferentes períodos, mostra um histérico repetir coletivo, a partir da ordem vinda de um ponto perdido na escala filogenética, atrás dos anseios fundamentais, ditados por uma categoria nominada neste ensaio de memória sócio genética (MSG). É traduzida na vida de relação, desde os tempos imemoriais na liberdade para buscar, mais e mais, o conforto físico e emocional (aqui compreendido como a liberdade de ir e vir, de falar, de explorar e, sobretudo, a sede e a fome saciadas, o abrigo do calor e do frio) nunca resolvidos para a maior parte da humanidade.

Todos fogem da dor e procuram o prazer. A polaridade entre o conforto e o desconforto, sentido no corpo, são as chaves acionadoras da MSG. Todas as relações pessoais e com a natureza, com ou sem ajuda da técnica, que resultem prazerosas são acatadas, sem esforço, pela maioria. Sempre que a ordem social insiste em limitá‑las, ocorre resistência. A rebeldia contra o sexo limitado e seus símbolos, em todas as variáveis, o alimento escasso e a incrível sedução pelas drogas proibidas são partes importantes do mesmo universo.

A constância transmitida aos descendentes, pela reprodução sexuada, dos pontos comuns das memórias sócio genéticas pessoais, forma a memória sócio genética coletiva (MSGC), contida no cérebro primitivo, herança do traço filogenético comum.

Com reserva por ser mais abrangente e estar contida numa base anátomo‑funcional, a MSGC pode englobar a categoria jungia-a do inconsciente coletivo.

As mensagens escritas ou orais, estruturadas na ambiguidade objetivo‑subjetivo ou, sob certas leituras, do sagrado‑profano, trazendo a esperança (não é necessário a certeza, basta o leve indicativo da possibilidade) de amenizar a dor e o sofrimento, são sempre bem aceitas e festejadas pela MSGC.         Os acontecimentos, no Leste europeu, entre 1989 e 1992, são adequados para avaliar quanto o poder político age, sem obter êxito, sobre a informação consentida, tentando mudar a MSGC7.

Nenhum poder ordenador amparado pela força explícita conseguiu conter, apesar da brutal repressão nos porões da intolerância de todos os matizes, a expressão clara da MSGC, oriunda dos tempos arcaicos, ativada pelo choque das ideias.

O estudo dos regimes autoritários, em todos os tempos, mostra a ordem mais forte criando, pela ficção, alternativas para influenciar e manter, pela coação, o pensamento idêntico.

A diversidade manifestada na linguagem, através da interpretação do subjetivo é a primeira grande vítima. Os discordantes são perseguidos pela implacável caça ao dissidente8. Considerados loucos, os corpos perdem o valor de identidade e o confinamento compulsório, sob a guarda do poder, retira‑os da cena.

Nada mais esclarecedor do que o politicamente correto9, guiando a conduta da maioria, modificando a linguagem superficial e as atitudes, convencida da verdade na nova postura.

A capacidade de convencimento, fazendo parte da ideia institucionalizada, assenta‑se, sobretudo, na história das representações, das ideologias e das mentalidades constituídas a partir do saber acumulado e sobre ele9. Por essa razão, continua muito significativo, junto às massas populares, a sedução exercida pelos políticos, prometendo maior conforto.

Os saberes pós‑industriais, baseados nos pressupostos da racionalidade, aqueles considerados durante longo tempo como garantia de progresso e abandonados depois de Auschwitz, Hidroxila e das denúncias acerca dos porões da intolerância das ditaduras de direita e de esquerda, não mais capazes de negar o quanto o corpo sofre durante as emoções violentas.

O empenho do poder, ordenado para orientar a mudança, não obtém resultados, quando toca, de modo inadequado, na memória das lembranças historicamente acumuladas. O medo da dor e do desconforto continuam tão fortes quanto os mecanismos subjetivos, criados pela ficção, para atenuá‑los ou confundi‑los.

As investidas políticas‑ideológicas para remodelar o mundo, tentando suprimir as lembranças das Mg, fracassaram. A História também mostra que nem a ameaça da morte coletiva é capaz de desestimular a resistência10.

O ato de escrever acoplado à transformação tecnológica, adaptou‑se, continuamente, a esse querer coletivo: aumentar o conforto e afastar a dor.

Mesmo contestados pelas observações corriqueiras, muitos continuam resistindo à ideia da estreita dependência entre o subjetivo‑emocional (o mundo das ideias) e o objetivo‑biológico (o corpo).

É possível compreender, nesse ponto, a fantástica relação entre o ato de escrever com o nascer da consciência, diferenciando o cérebro da mente, traduzindo uma etapa significativa da corrente, entrelaçando a natureza, o social e a História nas MSGs.

Ao mesmo tempo, colocou o homem e a mulher numa condição singular e difícil: possuir a inteligência diferenciada e manter as mesmas características biológicas dos outros animais menos inteligentes, ligados no elo comum da filogênese. Enquanto procuram identificar‑se entre si, baseados nesse pressuposto, têm a plena certeza de que, mesmo fabricando os artefatos mais sofisticados, também precisam eliminar os excrementos pelos orifícios do corpo, exatamente como o símio preso entre grades no zoológico.

A consciência da vida confortável atingida trouxe a inconformidade com o desprazer. Sendo mais inteligente, não poderia ter a mesma importância das bestas.  Logo, é inaceitável uma morte nos moldes da dos outros animais. Tornou‑se imperativo friccionar o conforto também após a morte11.  Mas, não para todos.  Somente os aliados e os concordantes com a ordem teriam um repouso perfeito depois da vida.

Nos tempos primordiais, as mudanças operadas no corpo, causando a angústia da deformidade dolorosa, eram as primeiras evitadas. A barriga eviscerada no acidente de caça ou nas disputas pela liderança, ligava o consciente à dor e à morte e era parte do mundo temido.

O prazer, capaz de descontrair o músculo enrijecido, trazia sempre a lembrança do evento agradável. A estrutura dos neurônios foi continuamente adaptada para identificar, na MSG, a polaridade entre prazer e dor, como o caminho mantenedor da vida.

O castigo, necessariamente carregado de sofrimento doloroso, era imposto pelo homem ou pela divindade, nos espaços sagrado e profano, para gerar obediência. O medo, advindo da ameaça ou da dor física, passou a ser o limite de cada pessoa, expresso no alarma dos sentidos violentados, do permitido e do proibido.

O arcabouço da dor física na MSG, transposto para o sofrimento coletivo, moldou a dor histórica12 na MSGC. A coesão do grupo atingido é reforçada ao identificar as causas e, assim, orientar, através das linguagens, o caminho para eliminá‑la da ordem social.

A categoria denominada dor histórica é o grito humano pela vida, pela liberdade, pela saúde, pelo conforto, pela dignidade, pela paz e pela ruptura das correntes que prendem o homem à tirania dos outros homens e dos deuses.

É a razão por que sempre existiu a procura de uma ética na conduta humana, ligada à sobrevivência comum, registrada nos códigos de postura, presente no Código de Hamurabi e nos livros sagrados de todas as expressões de religiosidade.

O sagrado ficcionado13 como mecanismo biológico moldando a forma com a função para compensar a dor, imponderável por si mesma, encontrou unissonância no brado dos espoliados em nome do território e do alimento negados.

Não é intenção simplificar processo de tamanha complexidade. A partir de determinada referência, impõe‑se a crença numa memorização lenta e gradual, onde as necessidades básicas para sobreviver desempenharam um papel fundamental.

A bioquímica da memória é um dos pontos mais angustiantes do saber acumulado, abriga a quase completa ignorância de como funciona o sistema nervoso humano. Contudo, as informações articuladas com o movimento social mostram a fascinante anatomia funcional no cérebro. A procura das soluções, há mais de quinhentos mil anos, para os problemas enfrentados pelos nossos ancestrais, fez‑se em etapas.

Os instrumentos foram aparecendo, ao mesmo tempo em que ocorriam mudanças significativas no cérebro, identificadas nos crânios fósseis. Todavia, o avanço foi descontínuo. A arqueologia não deixa dúvida da coexistência entre formas diferentes de artesanato num mesmo período, ajudando a superar as novas dificuldades, impostas pelo aumento gradual das trocas com o meio circundante.

As primeiras evidências do surgimento das ideias estéticas e religiosas são encontradas no Paleolítico Superior. Apesar da impossibilidade de rastrear os sistemas religiosos na pré‑história, antes de 10. 000 anos, tudo indica que o homem, no Neolítico, se comportava como o atual: dominava os mais fracos, modificava a natureza para obter o alimento, fugia da dor e da morte.

Inicialmente, foram atribuídos à divindade os anseios da vida. Como a escolha não satisfez as exigências da crítica e não ressoava no observável, iniciou‑se a longa caminhada de conflitos para achar outras vertentes capazes de responder às indagações.

O exercício do poder dos representantes da divindade, os sacerdotes e as sacerdotisas, misto de curadores e adivinhos, impondo o castigo doloroso aos resistentes, resultou nos princípios da dinâmica social, onde a coesão e a dissolução, em equilíbrio dinâmico, são dependentes, respectivamente, do predomínio do conforto e da dor, em determinado segmento da sociedade.

Os contestadores das autoridades dominadoras, compreendidos como agentes da dissolução ou pecadores, eram punidos com o pior dos castigos: a exclusão pela enfermidade, mensageira do sofrimento e da morte.

Inicialmente, a linguagem oral e, depois, a escrita retiraram a doença do mundo abstrato. Passou a ser nominada e evitada pela obediência obsequiosa.

A parte significativa da MSGC, ligada à sobrevivência comum, aperfeiçoada durante centenas de gerações, foi transcrita na passagem da oralidade para a escrita. Os adivinhos, encarregados de prever os malefícios mandados, como castigo, pelos homens ou pela divindade, assumiram um papel destacado no poder político.

Os livros sagrados, referência maior da ambiguidade sagrado/profana, são claros quanto ao destaque do curador e do adivinho no controle das mentalidades e na ordem do espaço ocupado.

A adivinhação e a cura sempre estiveram associadas ao mesmo universo de ideias. Elas impõem duas vertentes de abordagem: como atitude mental dos usuários, agente e cliente, e como instituição social. Não existem separadas; são associadas e dependentes.

A reprodução de um evento, exigindo conduta específica para mudar o cotidiano, só é consolidada, se houver a prévia coerência com os registros memorizados. É exatamente o que acontece com a prática divinatória. Pouco importa a veracidade individual do ato. O peso da representação está no convencimento dos atores, amparados pela aceitação coletiva onde atuam.

De modo semelhante, o cientista, hoje, trabalhando no espaço profano, pode também mitificar a inabilidade da ciência, adotando postura igual, com as mesmas implicações sócio‑políticas, iguais às operadas no espaço sagrado.

Os mais antigos registros escritos, feitos na Mesopotâmia, são contundentes.  Os assírios e babilônicos entendiam o pecador como o rebelde possesso da antidivindade. Nos textos cuneiformes, as palavras sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos14.

O conflito gerado na convivência dos nossos ancestrais no espaço sagrado, onde a coisa séria engendrada pela divindade, e no espaço profano, com o predomínio do conhecimento empírico, determinou os rumos escolhidos.

A cultura grega antiga, notadamente a da época hipocrático‑platônica, portou-se como o marco divisor da necessidade de distinguir a opinião do conhecimento15. Não bastava mais alguém achar, era imperativo acrescentar os argumentos demonstrativos da linha condutora do evento.

Naquela ocasião, foi mais bem delimitada a materialidade do espaço profano, onde iria florir, com maior vigor, os saberes para iniciar o moroso processo tentando desvendar o corpo e as coisas.

Com esse suporte epistemológico, os médicos gregos, particularmente os das Escolas Médicas de Cós e de Nido, começaram a usar a linguagem escrita para decompor a doença e retirá‑la da primazia divina16.

No livro A doença sagrada, escrito em torno do século IV a. C, atribuído a Hipócrates, esta questão está transparente: “Quanto à doença que chamamos sagrada, eis aqui o que ela é: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que o resto das doenças e por origem as mesmas causas que cada uma delas. “

A linguagem escrita, como a oral, está entrelaçada no conhecimento historicamente acumulado das MSGs. Por essa razão, os gregos hipocráticos foram buscar, nos elementos de Empédocles ‑ terra, água, ar e fogo ‑ a justificativa das mudanças determinadas pela doença no corpo.

O filósofo de Agrigento, pretendendo a renovação da imagem do mundo, fundamentou a sua teoria em concepções mais antigas, que sustentavam, desde a oralidade, a importância do fogo, da terra, do ar e da água, na sobrevivência do homem.

Como a doença e a morte são as duas instituições mais marcantes do universo cultural, nada mais sedutor do que a tarefa de desvendá‑las para vencer a vontade divina sobre os corpos17.

A teoria dos Quatro Humores, refletida nos elementos empedoclinianos, defendida pela escola de Cós, concebia o ser humano formado de quatro humores: sanguíneo (ar), fleumático (água), bilioso amarelo (fogo) e bilioso preto (terra). A saúde seria o resultado da perfeita harmonia entre eles e a doença apareceria, quando um deles prevalecesse sobre os outros18.

            Os jônicos, diversamente, admitiram muitos outros elementos interferindo na saúde. Os filósofos, notadamente o autor desconhecido de um dos mais célebres livros da antiguidade clássica, Da natureza do homem, recusavam‑se a crer na esquemática regra da teoria dos quatro humores.  Contudo, o mais compreensível, associado com o saber acumulado, defendido pelos hipocráticos, acabou prevalecendo.

Os atos coletivos, empregados para modificar a realidade, têm de estar, obrigatoriamente, assentados em pressupostos teóricos, ligados à MSGC. É no SNC que a forma e a função se completam, dando coerência ao ato apreendido. Quem está vendo a dor da fome, estampada no rosto de penúria dos entes‑queridos, ou sentindo a ferida não cicatrizada, está sempre pronto para seguir qualquer proposta para finalizar o sofrimento.

O brutal mecanismo de forçar o convencimento pela força, sempre utilizando o castigo doloroso, colocado em prática pelo cristianismo como religião do Estado, a partir de Constantino, no século IV, não foi suficiente para apagar da memória coletiva o mundo sagrado oriundo dos tempos arcaicos. O povo continuava cultuando as festas equinociais e os deuses planetários metamorfoseados com a proposta de salvação cristã.

A alternativa para manter a unidade e seduzir os resistentes foi iniciar um claro movimento em torno do sincretismo, retomar a MSGC, mantendo na linguagem escrita o antigo sob nova roupagem.

Os deuses pagãos e cultos agrários, da Trácia e da Frígia estavam entre os mais solicitados nos altares romanos.  Foram os primeiros atingidos pelo lento processo de mudança gradual da imagem para receber outro nome.

As divindades, que até aí contribuíram para explicar a ideia e a morte, oriundas do universo mítico babilônico, egípcio e grego foram, pouco a pouco, sendo substantivadas como antidivindades e aglutinadas no novo espaço, o inferno, adotado pela escatologia cristã, destinado aos transgressores e punidos.

A parte do povo, infelizmente a maioria, desde os tempos remotos, alheia aos determinantes profundos do movimento mítico que fortalece a consciência social, tende a aceitar a verdade sempre do lado do vencedor.

Para o simplório copiador das tabelas dos arquivos, admirador incondicional da história escrita pelo vencedor, e para aqueles que manipulam as leis em benefício próprio, os homens e os deuses vencidos são mentirosos e condenados.

Os livros escritos pelos médicos professos do cristianismo, foram adotados pelos doutores da Igreja como a nova verdade oficial. Podiam ser lidos, nunca questionados. A saúde e a doença, a vida e a morte, componentes essenciais do controle social, passaram para as mãos do Deus cristão.

O primeiro e mais importante deles, Cláudio Galeno, foi o continuador das ideias da escola de Cós. Durante toda a Idade Média e uma parte da Moderna, quem ousasse duvidar das teorias de Galeno, mesmo comprovando o disparate entre a afirmação e o observável, era considerado louco varrido. Os ensinamentos galerianos foram repassados, no mundo cristão, como uma verdade religiosa.

A repressão ideológica, patrocinada pela Igreja Católica, para manter e reproduzir os princípios do médico romano, criou uma insanidade coletiva semelhante ao que aconteceu com os escritos de Karl Marx, no Leste europeu, e entre os intelectuais da esquerda latino‑americana, nas décadas de sessenta e setenta, ao defendê-los como verdades acabadas.

A paixão dos marxismos pós‑Marx, fruto da leitura das orelhas dos livros de ciência política, ao enveredar pela mesma trilha dogmática, contribuiu para agravar a crise de subjetividade que acelerou a derrubada do Muro de Berlim. Alcançou os limites de insanidade, quando afirmou ser o amor materno pela cria, um dos traços mais claros da filogenia, simples manifestação burguesa19.

A primeira mudança de peso na abordagem das relações entre a forma e a função do SNC (uns cortes epistemológicos na linguagem bacelariam) ocorreu vinte séculos depois dos estudos hipocráticos, na ilha de Cós, na Grécia. O estudo da micologia de Marcelo Malpighi (1628‑1694) iniciou o deslocamento da função dos humores hipocrático‑galênicos para o interior da célula, trazendo a forma e função para o nível celular.

Novas perspectivas foram abertas pelo descortinar da microestrutura celular. A maior parte do ensino e da prática dos saberes da atualidade está estruturada no universo da microscopia.

Pouco mais de duzentos anos se passaram, desde o corte malpighiano, para que as relações entre a forma e a função alcançassem a estrutura molecular do genoma, no núcleo da célula (nível molecular).

As pioneiras publicações do frade dominicano Gregor Mendel (1822‑1884), demonstrando a importância das características genéticas de certos vegetais, foram aplicadas na nova busca da origem do pensamento, nas moléculas do ADN.

Hoje, a crítica do observável mostra a inoperância das três teorias ‑ humoral, celular e molecular. São frágeis e inconsistentes para explicar as dúvidas que persistem, tanto no pensamento lógico quanto no ficcional expresso nas linguagens.

Na distonia entre o visível e o lido nos compêndios, está o polo central das contradições do ato de escrever. A fraqueza do saber, avolumando as dúvidas nas dimensões extremas da matéria, oferece o suporte para a teoria das memórias sócio genéticas.

Os anseios dos homens e das mulheres, presentes na memória sócio genética coletiva (MSGC), para reforçar o conforto é um dos fatores que provocam o movimento social. Quando as ideias são desarmônicas com o anelo, nem mesmo os mais brutais meios de repressão conseguem mantê‑lo ativo.

A História recente evidencia, com transparência, um desses momentos marcantes da resistência: o desmoronamento da ordem socialista, no Leste da Europa. Aqueles povos demonstraram que a insatisfação com os limites da ideia não é obstruída pela oferta generosa do trabalho, da moradia e da comida. A necessidade atávica para buscar o conforto está além, muito além, da fome contida. É mais um indício da extraordinária ordem em que se processa o pensamento coletivo, quando se trata da sobrevivência comum.

As ideias arcaicas, amparando a sobrevivência, foram armazenadas, como parte dos mecanismos cerebrais primários, em algum lugar do cérebro. A capacidade de reproduzir a ideia ficaria por conta das leituras, no sistema nervoso central, identificando a proposta como algo capaz de aprimorar o conforto.

A característica pessoal, única e intransferível, processada pelo córtex cerebral, com a marca biológico‑molecular nos genes, transmitida com a reprodução sexuada, ficaria dependente da experiência vivida no conjunto social. É como nascem e se reproduzem todos os saberes.

Apesar de a unidade ser mantida, teria traços comuns muito fortes. A dor e o desconforto seriam dois deles. Qualquer variável circunstancial, capaz de ser entendida pelo ser como sensação dolorosa, produziria resposta somático‑neurológica imediata buscando, na intimidade da memória acumulada, todos os mecanismos cerebrais para impedir ou atenuar o desconforto.

A dificuldade para moldar o pensamento coletivo, de acordo com a conveniência do poder, reside nessa barreira: é impossível encontrar duas estruturas biológicas exatamente iguais.

Por outro lado, quando o dominante compreende o valor dos registros genéticos, principalmente a subjetividade, nascido na ficção, para suportar o desconforto e a dor, investe na conquista das mentalidades, através das linguagens oral e escrita, seduzindo a partir da valorização deles.

Existe uma inegável dificuldade para se ter acesso ao cérebro humano, não só porque se desconhece onde e como, mas também pelos limites impostos pela ética da pesquisa científica.  Contudo, os casos clínicos, de achado acidental, são capazes de levar aos grandes progressos.

Os estudos desenvolvidos na Universidade Western, Ontário, sobre a consciência não manifestam (ou aparente descompasso entre o comportamento manifesto e a memória) são importantes para compreender a hipótese das MSGs3, 20.

A doente, estudada pelo grupo de pesquisadores, no Canadá, tinha sofrido dano cerebral por intoxicação de monóxido de carbono. Quando se recuperou, a sequela neurológica ficou localizada próxima ao córtex visual primário. Os testes seguintes mostraram que era incapaz de identificar uma xícara de chá, todavia os movimentos para pegar a mesma xícara e levá‑la à boca eram normais.

Esse tipo de comportamento alterado reforça a existência de, pelo menos, duas formas diversas do reconhecimento visual: uma dependente da percepção e a outra das funções motoras.

O outro relato significativo foi feito pelo psicólogo suíço alaparde, no início do século. As análises foram concluídas numa paciente, portadora de severo distúrbio para assimilar os fatos recentes. Na entrevista, ao apertar a mão do entrevistador, teve a sua furada, intencionalmente, por um alfinete. No dia seguinte, ela não reconheceu ninguém, porém se recusou a repetir o gesto que provocou desconforto.

A parte ativa da consciência, alerta mesmo em situação psicótica, a lembrança do desconforto da dor, está atada ferozmente aos laços genéticos e é, incomparavelmente, muito mais forte do que a banalidade motora de levantar um objeto.

Todas as tentativas de efetivar o controle social, pelo poder dominador giram nesses dois pontos comuns e antagônicos: oferecer o prazer e a dor, respectivamente, como prêmio e castigo pela obediência.

Qualquer moção lembrando a possibilidade para atenuar a dor histórica e fortalecer a partilha igualitária, sentida pelas sucessivas gerações dos esfomeados de pão e de justiça, terá uma sedução irresistível, ao resgatar os símbolos comuns da MSGC.

As teorias políticas e práticas religiosas para interferir no curso do movimento social utilizaram, em maior ou menor escala, os seguintes pontos, como variáveis dos remédios para sarar as dores e das fórmulas para aumentar o conforto:

  1. promessa de prolongar a vida;
  2. acesso à sociedade onde o trabalho é ameno, a comida é farta e a prática sexual é liberta das amarras da conduta;
  3. a inconformidade com a morte antecipada pela doença, pela fome e pela injustiça;
  4. um espaço sagrado (templo) ou profano (partido político) para defender a causa comum e julgar os resistentes;
  5. aumento da proteção individual;
  6. melhoria das situações temidas, causadoras de desconforto: a fome e o frio.

Algo muito poderoso se passou na intimidade da memória acumulada na espécie humana.  Ainda não podendo afirmar que as ideias são transmitidas de modo semelhante às características físicas, resta‑nos o êxtase do quanto fascinam os homens e as mulheres alegorias simbólicas que ligam o passado remoto ao presente vivido.

Por tudo isso, a escrita consolidou, nas mentalidades, o divino e a posse do território como os mais poderosos resultantes da ficção. Os dois ordenaram, no mundo objetivo, de acordo com a conveniência temporal do poder as duas mais importantes fontes de prazer: a sexualidade e o alimento.

O divino é, intrinsicamente, forte e sem a sua ajuda não teria sido possível manter a atual ordem espacial, prevalente no mundo. Em qualquer hora, seria capaz de impor a dor e modificar a arqueologia do prazer, contra todos os ritmos esperados da natureza. Os mortais, feitos à imagem e semelhança da divindade, são, ao mesmo tempo, os instrumentos e as vítimas. A dádiva ou o castigo divinos não ficam restritos somente à vida; prolongam-se após a morte. Dependendo da obediência aos preceitos, o renascimento será confortável ou aflitivo.

O Livro dos Mortos, conjunto de textos funerários gravados nas paredes da Pirâmide Real do antigo Egito, com origem no reinado de unas (2345 a. C.), último rei de V dinastia, é composto de hinos e receitas mágicas para garantir o renascer protegido.

As obras de Platão21, interpretando pensamentos muito mais antigos, espelho fiel das angústias existenciais não resolvidas, contribuiu para manter o interesse especulativo, no Ocidente cristianizado, sobre o sentido da vida, partindo do esperado depois da morte.

O cinema, como uma das expressões de arte mais significativas do nosso tempo, continuou o movimento e mostra o quanto é robusto, no inconsciente coletivo, a sedução para continuar vendo os matizes da dualidade prêmio/castigo na vida e na morte22.

O controle social, imposto em diferentes momentos do processo de humanização, mesmo utilizando os recursos mais indignos da perseguição, do assassinato e do patrulhamento ideológico, não conseguiu remover das MSGs à resistência à inevitabilidade da morte.

O político, compreendido como o sucessor do intermediário da divindade, travestido dos antigos poderes de curar e adivinhar os males da sociedade, está inserido na coerência genético‑social.  A contínua penetração do seu poder espelha a força da MSCG na ordem social.

O avanço organizado para consolidar o cristianismo como religião universal foi muito bem estruturado em torno da doença como mal pessoal e social, interpretado a partir da leitura da Bíblia judaico‑cristã. O mundo cristianizado está atado nesse registro arcaico da memória coletiva, alcançando todos, independentemente da condição socioeconômica.

O cristianismo, ao contrário do rígido monoteísmo judaico, sobreviveu porque continua lembrando a metamorfose do politeísmo. Substituíram os antigos fetiches e amuletos pagãos pela água‑benta, o sinal da cruz, as velas da Ascenção, as palmas do domingo de Ramos, os rosários, as medalhas, os santinhos colocados no pescoço.

A legitimidade da doença e do sofrimento como instrumentos de castigos e ameaças de dor, aperfeiçoados pela linguagem escrita, está inserida no exercício do poder.

Na crítica da proteção pura3, a relatividade do tempo é reafirmada, à medida em evidencia a fantástica coerência existencial entre o visível e o invisível.

O binômio tempo/espaço, fracionado unicamente pelo pensamento, é o começo, o meio e o fim da interação ajustada entre o ser e o objeto através das MSGs. Como unidade indissolúvel e inseparável, abriga e vivifica a diversidade das aspirações humanas arcaicas para viver sem dor e adiar a morte.

A posse do território e a divindade são as mais importantes ficções, trabalhadas ambígua e alternadamente no profano e no sagrado. A ordem social, desde o passado ágrafo, foi montada entre a terra, morada dos homens e das mulheres, e o céu, abrigo dos deuses.

Os sacerdotes e os políticos, travestidos de curadores e adivinhos, como agentes das religiões e das ciências, continuam sendo os instrumentos legítimos, usados pelo poder, para imobilizar o tempo e separar os espaços, com o objetivo de ordenar as mentalidades.

A competência do controle das sociedades está no modo como é tocada nas MSGs. É na entranha do corpo, nos limites desconhecidos da massa com a energia, no interior das células, que o poder aperfeiçoa as ferramentas para moldar a estratégia de sedução, atualizando as projeções mentais muito antigas sobre as novas verdades e estimulando a cooperação.

O conflito das contradições, gerado pelo choque das ideias orais e escritas, é a única alternativa para afrouxar a dominação e o apagamento das MSGs.

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