Medicina como especialidade social

 

Medicina como especialidade social

 

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Ações intencionais e repetidas nos corpos com intenção de empurrar os limites da vida: relações com as crenças e idéias religiosas

 

Entre os anos 1960 e 1970, de modo geral, nos países industrializados, os cursos de Medicina, desvincularam-se ainda mais das relações históricas do doente e das doenças. Esse fato pode ter contribuído para acentuar a desinformação sobre quanto representa o papel da Medicina, desde a pré-história, no processo de busca, para manter a solidariedade na relação médico-paciente, aumentar a materialidade e diminuir a abstração na abordagem da saúde e da doença.

O processo que culminou com a Medicina como especialidade social, com avanço e recuos, tem proporcionado:

– Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;

– Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;

– Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.

É mais difícil ao médico da atualidade compreender a Medicina, sem o olhar para trás e apreender a dinâmica social co-relacionada às práticas de curas.

Esses saberes históricos, negligenciados pelos que optaram exclusivamente pela tecnologia médico-hospitalar, facilitam o entendimento da função do médico, como um dos especialistas sociais que trabalha para evitar a dor e empurrar os limites da morte.

Sob esse enfoque – as práticas de curas – não comportam a dissociação entre o presente e o passado distante. As práticas de curas constituem história de longa duração, iniciado na pré-história, antes de a nossa espécie ter promovido o sedentarismo. Os registros arqueológicos daquela época se mostram suficientes para que as análises paleopatológicas possam caracterizar algumas ações intencionais e repetidas do ancestral sobre o corpo do outro o fito de adiar os limites da vida.

É possível que as comunidades ágrafas de caçadores e coletores tivessem na busca da sobrevivência cotidiana e na observação das mudanças, em torno da natureza circundante e do corpo, grande parte da atenção. As relações entre a vida-morte e saúde-doença deveriam estar entre as mais significativas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva. Esse conjunto pode ter provocado a especialização de alguns membros, que se interessaram em controlar as situações de risco à vida.

Nessa fase, quando o nosso ancestral começou a tentar modificar o processo dos binômios vida-morte e saúde-doença, iniciou o extraordinário processo com o objetivo de diminuir a abstração e aumentar a materialidade das ações que pudessem evitar a dor e empurrar os limites da vida.

Essas pessoas diferenciadas fizeram-se curadores!

Naquele contexto, os nossos ancestrais distantes, marcados pela generosidade e cooperação como instrumentos mentais que os distinguiam dos outros animais, alguém que cuidava do outro, fragilizado ou ferido, impossibilitado de se movimentar ou cuidar da própria segurança, iniciou a construção dos elos de confiança entre o curador e o doente, bases sustentadoras da Medicina como especialidade social.

Os registros paleopatológicos indicam a existência de práticas de curas, na pré-histórica, alguns milhares de anos antes dos documentos escritos na Mesopotâmia. Um bem documentado data de aproximadamente 45.000 anos, no Pleistoceno Superior. Trata-se do esqueleto de um Neandertal, descoberto no monte Zagros, no Iraque, com traços de amputação intencional, no braço direito, com a marca indiscutível de o osso ter sido seccionado com a ajuda de objeto cortante e, no coto amputado, sinal de crescimento ósseo, comprovando que o hominídeo viveu muito tempo após a amputação, suficiente para proporcionar o crescimento ósseo do úmero. Sem que jamais saibamos a razão pela qual o hominídeo teve o braço amputado, comprova que um ou mais membros praticaram a ação dirigida no corpo de outro, para adiar os limites da vida.

Existem outras ações curadoras bem documentadas, como a encontrada no osso rádio de ancestral que viveu em torno de 25.000 anos, com sinal de fratura traumática consolidada após ter sido reduzida de modo correto e imobilizada, demonstrando que recebeu ajuda por outro membro do grupo social.

Sem dúvida, fora das lesões determinadas pelos traumas, acidentes e embates dos nossos ancestrais entre eles e com outros animais, doenças causadas por vírus, fungos e bactérias deixaram marcas nos ossos dos pré-históricos que existiram antes da nossa espécie.

A questão maior é tentar desvendar como esses grupos de caçadores e coletores se relacionavam com as doenças na luta pela sobrevivência.

A análise do registro paleopatológico pode estabelecer paralelismos da ação curadora exercida pelo homem pré-histórico com outras, que até poucos anos, podiam ser observadas em grupos humanos de caçadores e coletores, como os bosquímanos, na África, e grupos indígenas no noroeste do Amazonas.

A paleopatologia mostra que os homens e mulheres pré-históricos estavam sujeitos a diversas doenças semelhantes as do homem moderno. A fratura traumática constituiu uma das doenças mais freqüentes nos fósseis estudados, em algumas delas, foram confirmados sinais evidentes de infecção do osso, a osteomielite, lembrando as encontradas nos hospitais de hoje.

Do mesmo modo, se comprovou a existência de doenças sistêmicas, não traumáticas, como a denominada gota das cavernas, uma espécie de reumatismo do homem pré-histórico que certamente dificultava a locomoção. Nesse caso, alguém fornecia o alimento e a guarda desse elemento fragilizado, sugerindo ação plena de generosidade e cooperação.

Com exceção do corpo congelado de um caçador, que viveu em torno de 6.000 anos, encontrado nos Alpes, na Suíça, as pesquisas arqueológicas jamais encontraram outros corpos ou órgãos anteriores a essa época. Por outro lado, foram identificadas várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica no homem atual, existe desde o Pleistoceno Médio, isto é, há mais de 100.000 anos. A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico freqüente nos países subdesenvolvidos, foi documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico dessa doença.

A ocorrência de moléstias na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para controlar a dor, conservar a saúde e empurrar os limites da vida. Sob essa perspectiva, é possível articular respostas comparativas com o comportamento de certos animais, quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem limpeza mútua e comem plantas eméticas. Parece lógico pressupor que o homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira: lambendo a área ferida, pressionando o local para parar a hemorragia dos ferimentos traumáticos e utilizando recursos da natureza circundante para interromper a dor, como a amputação intencional realizada no hominídeo encontrado na sepultura pré-histórica do monte Zagros.

Perdura a questão de quando iniciou, na pré-história, uma das mais importantes mudanças no sistema nervoso central capaz de construir as concepções abstratas, que poderiam ter culminado nos rituais mágicos, ligado à busca de cura das doenças.

Na gruta de Trois Frères, nos Pirineus franceses, continua desafiando a imaginação coletiva a pintura do personagem, em movimento de dança, datada de 10.000 anos, travestido de cervo, em atitude que sugere uma espécie de ritual, semelhante aos movimentos do chamam, na dança dos bisões, dos índios, no norte dos Estados Unidos, e do pajé, no norte do Amazonas, ambos em cerimônias simbolizando o poder animal na cura das doenças.

O conjunto das informações paleopatológicas, no Neolítico, em torno de 10.000 anos, sugere fortemente a efetiva incorporação de métodos empíricos estruturando a ação intencional do homem sobre outro homem. Essas atitudes, algumas vezes foram muito agressivas, como a trepanação do crânio com instrumentos suficientemente fortes para cortar regularmente os ossos do crânio em formas geométricas bem definidas. Essa extraordinária prática é facilmente comprovada por meio do estudo dos fósseis. E mais, alguns desses homens pré-históricos que sofreram essa cirurgia sobreviveram muito tempo após a realização, o suficiente para favorecer o crescimento do osso cortado.

É interessante assinalar que craniotonias semelhantes as do Neolítico europeu, também foram executadas, até o século 16, em outras sociedades que não tiveram contato interétnico, como as da Polinésia francesa e as do  altiplano peruano nos tempos pré-coloniais.

Restará sempre a dúvida do por que as craniotomias terem sido realizadas. De qualquer modo, não há como negar que representou conjunto de ações absolutamente extraordinárias, na medida em que uma parte do corpo, o conteúdo do crânio, foi exposta intencionalmente, desvendando o escondido atrás da pele e do osso.

É possível que o curador pré-histórico tenha exercido, simultaneamente, funções de liderança. Essa demonstração explícita de poder – um homem mortal igual aos outros, intervindo no corpo do outro – resultaria em grande destaque no grupo social.

Respeitando as devidas proporções, essa relação de dominação do curador sobre o objeto da sua prática – o doente –, sob alguns aspectos, perdura até os dias atuais. Esse poder do curador, na pré-história como nos dias atuais, poderia aumentar o nível de persuasão sobre o doente, tendo como base dois dos pontos de maior sensibilidade humana: o pressuposto de a ação intencional do curador pode interromper a dor fora de controle ou aumentar os limites da vida.

Esse processo complexo, da fuga da dor e da morte, pode ter sido um dos pilares sustentadores que edificaram os ancestrais distantes para aperfeiçoar a linguagem e transmitir os saberes.

Com o sedentarismo avançando, no Neolítico, importantes modificações foram se processando nos grupos sociais que habitavam as terras férteis da Mesopotâmia e do Egito. Essas sociedades arcaicas iriam absorver parte da experiência acumulada. Nessa fase, ocorreu o início da modificação da economia produtora, passando do nível de subsistência coletiva à concreta divisão do trabalho, com o aparecimento do excedente de produção e das trocas comerciais. As sociedades mostravam-se francamente hierarquizadas. Também surgiram as propriedades privadas, que possibilitaram os assentamentos duradouros dos antigos grupos de caçadores e coletores, evoluirido para a organização das primeiras aldeias.

As cidades foram sendo formadas e fortalecidas, nas margens de lagos e rios piscosos, nas rotas de migração dos grupos caçadores e coletores. Entre as mais festejadas, destacaram-se as que obtiveram avanços na guarda territorial e poder de guerra de conquista de novos territórios: a babilônia e a egípcia. Esses povos, mesmo mantendo importantes diferenças, decididamente influenciaram as culturas posteriores.

As civilizações regionais assimilaram, ao longo de vários milênios, diferentes formas de governos, predominando o teocrático de regadio e mercantil-escravista. Nessas sociedades rigidamente hierarquizadas, moldaram a ação dos curadores em torno de três vertentes, sem que existissem limites precisos:

– Apreensão do conjunto de conhecimento historicamente acumulado, oriundo da pré-história, voltado às ações que poderiam interromper ou amenizar a dor fora de controle, que podem ser compreendidos como agentes da Medicina-empírica, como as parteiras;

– Utilização de ritos das idéias e crenças religiosas, para buscar a cura: agentes da Medicina-divina;

– Processo formador, nos templos das divindades dominantes, sob a guarda do poder político, capaz de transmitir e registrar nas respectivas linguagens escritas, os saberes envolvendo os dois anteriores acrescidos de outras observações das doenças e dos doentes: agentes da Medicina-oficial.

As guerras ofereceram saques, novos escravos e territórios, fortaleceram a troca de conhecimentos entre os agentes de curas.  É muito provável que os mais destacados tenham sido absorvidos nas sociedades vencedoras. Por outro lado, os traumas provocados pelo combate corpo a corpo, acrescentaram outros saberes, principalmente, no manuseio das grandes feridas, incisão de abscessos, imobilização das fraturados e nas amputações dos membros dilacerados.

Os metais foram fundidos e o cobre utilizado em várias atividades produtivas. A mecanização da agricultura tomou corpo com os arados primitivos. Apareceu o barco com vela e o uso do ferro. Esses fatos da nova vida social contribuíram para aumentar as trocas do excedente da produção, fortalecendo a maior especialização e a propriedade privada dos mais poderosos..

Outro extraordinário desdobramento da construção do pensamento subjetivo, a crença no renascimento após a morte, conduziu ao sepultamento ritual das pessoas prezadas, acompanhado de grandes quantidades de carne e artefatos de pesca e caça junto aos esqueletos, de acordo com o professor Leroi Gurhan presente desde 20.000. Esse cuidado importou manuseios específicos do corpo morto, junto aos rituais religiosos, para a conservação após a morte. Essa conduta alcançou níveis de grande sofisticação entre os egípcios.

Nas sociedades que floresceram, em torno de 4.000 anos, nas margens dos rios Tigre, Eufrates, Nilo e Indo, além dos agentes da Medicina-empírica e Medicina-divina, os registros identificam os médicos, como agentes da Medicina-oficial, nominados de acordo com as funções e especialidades e remunerados pelo poder político dominante,

A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários segmentos sociais, suficiente para originar conflitos muito freqüentes, gerando mal-estar social e obrigando o legislador intervir. O rei Hammurabi (1728-1688 a.C.), da Babilônia, dedicou vários parágrafos do seu famoso código para disciplinar o exercício da Medicina, impondo prêmios e castigos. Nos parágrafos 218 a 223, está claro que: o médico era reconhecido e ocupava espaço importante nas relações sociais numa sociedade claramente hierarquizada.

Somente é possível entender as severidades das penas como espelho do problema social gerado pelo grande número de conflitos oriundos da má prática, todas oriundas de procedimentos cirúrgicos:

218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos de cidadão) uma incisão difícil com uma faca de bronze e o causou a morte do awilum ou abriu o nakkaptum (sobre a sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão;

219 – Se um médico fez uma incisão difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto;

220 – Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele pagará a metade do seu preço;

221 – Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico 5 ciclos (cerca de 40 gramas) de prata;

222 – Se foi filho de um muskenum: dará 3 ciclos (cerca de 24 gramas) de prata;

223 – Se foi um escravo de um awilum: o dono de escravo dará 2 ciclos (cerca de 16 gramas) de prata.

Com isso o Código de Hammurabi firmou conceito e jurisprudência de dois pontos cruciais da ordem médica:

– Sanções que os médicos devem receber pela má prática;

– Honorários diferenciados pela prática de bons resultados em pessoas dos diversos grupos sociais.

Tanto as sanções quanto as punições eram diretamente proporcionais ao enquadramento social e financeiro do doente, quando mais próximo do poder dominador estivesse o doente, maior o honorário pela prática de bom resultado e mais severa a penalidade pela prática que resultasse em sequela incapacitante ou morte, incluindo a amputação das mãos. Ao contrário, se o doente fosse um escravo, a remuneração era menor e o castigo mais brando.

Os registros apontam não terem ocorrido grandes diferenças entre as ações médicas nas sociedades que se desenvolveram nas margens dos rios Tigre, Eufrates e Nilo, no segundo milênio a.C. Nessas civilizações regionais, apesar dos avanços, não existia nenhum esboço teórico desvinculado das idéias e crenças religiosas para compreender a saúde e as doenças. Cada moléstia era compreendida como unidade única com indissolúvel componente dependente da vontade de um ou mais deuses ou deusas. Como conseqüência da divinização da saúde e da doença, só outra ação divina ou humana ajudada pelo deus ou deuses protetores poderia desfazer o nó causador de sofrimento.

Um dos antigos documentos escritos que registra a participação do médico, no antigo Egito, data de início do segundo milênio a.C., na estela funerária de Was-ptah, onde está descrita uma morte por colapso cardíaco. Ainda no Egito, nesse período, já existia diferenças entre as práticas médicas, traduzindo certa especialização. Um médico da corte Khaui, na IV Dinastia, faz clara distinção entre cirurgiões e médicos, que se dividiam em três especialidades: os que tratavam das doenças dos olhos, dos dentes e do corpo.

Os documentos com inestimáveis informações médicos, no Egito antigo, são os papiros de Ebers e o de Edwin-Smith, datando aproximadamente 4.000 anos. Nesses registros constam os nomes de dezenas de doenças e os respectivos tratamentos com extraordinário bom senso.

Apesar desse fato, refletindo a ausência do processo teórico para entender a saúde e a doença fora do panteão, é mantida com veemência a dependência dos médicos aos deuses e deusas protetoras.

De modo geral, o conhecimento historicamente acumulado moldando os saberes empíricos da natureza circundante, sob a guarda dos médicos, estava presente nas terapêuticas contidas nesses papiros. Mesmo à luz dos conhecimentos atuais, não há como duvidar da extraordinária eficácia, entre outros exemplos:

– Recomendação do chá de sementes da papoula aos recém-nascidos insones;

– Digital aos idosos com taquicardia e edema nas pernas;

– Identificação dos diferentes tipos e sequelas dos traumas crânio-encefálicos;

– Imobilização dos membros fraturados.

Não é demais repetir que nessas culturas regionais também está clara a inter-relação de três Medicinas-divina, Medicina-empírica e Medicina-oficial, sempre atadas entre si, sem que seja possível estabelecer os limites onde uma começava e a outra terminava:

– Medicina-divina: com indissolúvel aliança com deusas e deuses protetores e taumaturgos;

– Medicina-empírica: utilizando o conhecimento historicamente acumulado a partir dos recursos terapêuticos da natureza circundante;

– Medicina-oficial: representada pelas práticas de curas realizadas médicos, desfrutando de reconhecidos e remuneração pelo poder dominante.

Apesar da utilidade prática dos monumentais conteúdos dos papiros de Ebers e de Edwin-Smith, a prática da Medicina-oficial egípcia estava longe de constituir um sistema organizado. Não é demais repetir a ausência de estrutura teórica para explicar a saúde e a doença fora do domínio das crenças e idéias religiosas. A resultante dessa condição estava atrelada no fato de cada doença ser considerada uma entidade mórbida em si mesma.

Além de a Medicina praticada no Egito, a que era feita na Babilônia, também apresentava característica semelhante: ausência da estrutura teórica para entender a saúde e a doença fora dos domínios do sagrado.  Entre muitos exemplos, a Medicina-divina babilônica considerada as doenças como castigo do deus Shamash, que presidia a justiça.

As práticas médicas que se desenvolveram nessas cidades-estados, mesmo com a estrita vinculação religiosa, todas apresentam notáveis registros da eficácia dos saberes historicamente acumulados articulando o uso empírico dos recursos da natureza circundante. Confirmando que, paralelamente, existia as Medicina-empírica e a Medicina-oficial que utilizavam remédios oriundos de plantas medicinais: beladona, anis, óleo de rícino, gengibre, hortelã, romã e a papoula, que continuam sendo utilizados até hoje, por milhões de pessoas em vários continentes.

Nessa fase, em torno da primeira metade do segundo milênio, as pesquisas arqueológicas nas principais cidades, mostraram importantes mudanças introduzidas para melhorar as condições sanitárias, pelo menos nas partes mais ricas, próximas aos palácios da administração: redes de esgotos, abastecimento de água potável, de fazer inveja as periferias urbanas de muitos países.

Não há porque duvidar que essa melhoria arquitetônica, mesmo que somente voltada aos mais ricos e influentes, também fora relacionada às informações patrocina pelo sedentarismo, nas margens dos grandes rios e lagos, e com a efetiva participação dos médicos interessados em diminuir as doenças observáveis nas partes urbanas, onde não existiam cuidados com os excrementos e sem água potável.

É importante salientar que o progresso na melhoria da condição de vida das pessoas que podiam desfrutar da água potável e do esgoto sanitário, nas próprias casas, certamente, não acessível aos mais pobres e escravos, não estava estritamente ligado às idéias e crença religiosas; se tratavam de objetivos concretos ligados à saúde e à doença.

Existe, no Museu de Louvre, em Paris, um vaso achado na região de Lagash, apresentando o símbolo do deus da cura – Ningishzida – com dois dragões coroados e duas serpentes entrelaçadas num bastão. É possível que a solidez desse símbolo mítico – a serpente – ligado à cura de doenças de alguma forma já estivesse fortemente presente nas gerações anteriores. Só assim é possível explicar por que tenha sobrevivido durante tanto tempo, metamórfica, na Medicina greco-romana, na serpente entrelaçada no bastão, representando Asclépio, o deus grego da Medicina, e adotada pelos médicos até hoje.

Essa solidez simbólica pode estar acoplada ao fato de a serpente ter relação com a requerida transcendência humana, podendo renascer após a morte: a cobra pode viver acima e abaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos, e, especialmente, como nenhum outro animal, de tempos em tempos, substitui a pele, marcando a capacidade de renascer em vida.

A grande mudança das práticas médicas, no Ocidente, pelo menos a partir de Péricles, na primeira metade do século 5, ocorreu na consolidação da cultura grega ligada à cidade-estado (do grego = pólis) com estrutura político-jurídica defendendo a liberdade de escolha do cidadão.

Nesse conjunto, sobressaindo Hipócrates e seus seguidores, na ilha de Cós, entre outros extraordinários filósofos, constituiu o esplendor da nova visão das relações do homem com a saúde e a doença.

 

Conflito de competência entre a Medicina e a religião.

Busca da materialidade da saúde e da doença: primeiro corte epistemológico.

 

Na Escola Médica de Cós, na Grécia, Políbio, o genro de Hipócrates, baseado nos quatro elementos de Empédocles (terra, fogo, ar, água), descreveu o primeiro processo teórico capaz de compreender os binômios saúde-doença e vida-morte fora dos domínios dos panteões das divindades protetoras e vingadoras: a teoria dos Quatro Humores, preconizando a saúde como resultado do equilibro de quatro humores – bilioso preto, bilioso amarelo, sanguíneo, fleumático:

“Quanto à doença que nós chamamos de sagrada (epilepsia), eis o que ela significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; ela tem a mesma natureza que as demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens atribuíram-lhe uma natureza e uma origem divinas por causa da ignorância e do assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras”.

 

 

Ar

Fleuma

Água

Bile amarela

Fogo

Sangue

Terra

Bile preta

 

 

Desse modo, Políbio firmou a correspondência estrutural da teoria dos quatro elementos fundamentais da natureza defendida por Empédocles com a teoria dos Quatro Humores fundamentais do corpo humano. Sem que até hoje saibamos, exatamente, o que representavam os humores, a idéia revolucionária dos médicos gregos da Escola Médica, na ilha de Cós, representados por Hipócrates, ficou conhecida como teoria dos Quatro Humores. Sob essa formidável concepção teórica, que dominou as práticas da Medicina-oficial até o século 17, o corpo humano seria constituído de quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile preta.

O equilíbrio entre a quantidade e qualidade dos humores seria o responsável pela saúde. Ao contrário, os desequilíbrios entre eles provocaram as doenças. Como conseqüência imediata, esse sistema teórico permitiu aos médicos hipocráticos explicarem a origem das doenças e, pela primeira vez, iniciar o conflito de competência entre a Medicina-oficial com as crenças e idéias religiosas, quando a saúde e a doença começaram a ser compreendidas pelo pequeno grupo de médicos da Escola de Cós, sob a liderança de Hipócrates como consequência do desequilíbrio dos humores.

O ponto inicial do conflito pode estar contido na nova abordagem da epilepsia, na época, até então conhecida como “doença sagrada” A epilepsia, tida como doença sagrada, de natureza divina, nas palavras de Hipócrates, foi arrancada do domínio abstrato dos deuses e conduzida na trilha da busca da materialidade:

“Quanto a doença que nós chamamos de sagrada, eis o que significa: ela não me parece nem mais divina, nem mais sagrada que as outras; tem a mesma natureza das demais doenças e se origina das mesmas causas que cada uma delas. Os homens lhe atribuíram natureza e origem divinas por causa da ignorância e assombro que ela lhes inspira, pois em nada se assemelha às outras.”

Sob a leitura de Bachelard, é possível entender esse extraordinário avanço para retirar dos deuses e deusas o destino dos homens e das mulheres como o primeiro corte epistemológico da Medicina.

 

Teoria dos Quatro Humores = primeiro corte epistemológico da Medicina.

 

Estava iniciado o longo caminho, que perdura até os dias atuais, para desvendar a materialidade das doenças, isto é, entender a saúde e a doença sem a interferência dos panteões. Essa busca da materialidade indicava por meio da teoria dos Quatro Humores que o tratamento de qualquer doença deveria forçar o equilíbrio dos humores por meio de atitudes induzidas para eliminar os líquidos e excreções corpóreos. Os métodos de tratamentos da Medicina-oficial utilizaram a sangria e as substâncias provocadoras do vômito, da diurese, do suor e da diarréia.

Hipócrates, o líder da Escola de Medicina de Cós, teria nascido no ano 460 a.C., na ilha de Cós, nessa Grécia que vivia a organização política de Péricles no esplendor da polis. Considerado o pai da Medicina ocidental, foi contemporâneo de Sócrates, Platão e dos magistrais sofistas Górgias e de Demócrito, com quem teria tido relações pessoais e profissionais em Abdera.

Sem dúvida, além de Hipócrates representar para a Medicina símbolos semelhantes dos de Platão para a filosofia, também iniciou as bases da atual ordem médica, representada pela incessante determinação de diminuir a abstração e aumentar a materialidade na compreensão da saúde e da doença.

Sabe-se que alguns livros atribuídos a Hipócrates, foram escritos por outros médicos da Escola de Cós. Não há dúvidas da participação de Hipócrates, direta ou indiretamente, na elaboração dos seguintes:

– Epidemia;

– O Prognóstico;

– Tratado Cirúrgico;

– Tratado Dietético;

– Tratado Nosológico;

– Tratado Ginecológico;

– Tratado Ético.

Mesmo que não existam documentos com relatos explícitos, é possível que o conjunto da Medicina, praticada na Grécia, desde os tempos da guerra de Tróia, descrita por Homero, fosse permissiva na relação médico-paciente e que muitos tratamentos, especialmente os cirúrgicos, resultassem em maus resultados e na morte dos doentes, provocando conflito social junto às autoridades administrativa e política. Essa possibilidade explicaria o destaque que a Escola de Cós dedicou à conduta do médico. De modo explícito ou entre as condutas técnicas, seis livros do conjunto teórico conhecido como “Corpo Hipocrático” tratam da ética:

– Juramento;

– Da Lei;

– Da Arte;

-Da Antiga Medicina;

– Dos Preceitos do Médico;

– Da Conduta

Como ocorreu plena aceitação da sociedade grega, inclusive com elogios de Platão, já no auge da fama, é possível concluir que existia espaço social e político para as recomendações éticas elaboradas na Escola de Medicina de Cós.

Na mesma época em que Demócrito lançava as bases do atomismo – tudo é formado por átomos que são partículas indivisíveis e invisíveis, eternase imutáveis – oferecendo pela primeira vez a possibilidade da materialidade das sensações sem volume do odor, cor e sabor, a Escola de Cós difundia o trabalho de Políbio – teoria dos Quatro Humores – para explicar o aparecimento de doenças.

Entre dezenas de ensinamentos hipocráticos, sempre reforçando a determinação de aumentar a materialidade e diminuir a abstração para compreender a doença e o doente, é possível destacar como atuais os conceitos de diagnóstico, prognóstico e tratamento, distinção entre sintoma e doença e, muito especialmente, os três aforismos: o médico e a sua arte, o doente e a sua natureza individual e a doença.

Esses conceitos, apesar de terem sofrido reconstruções ao longo dos séculos, continuam válidos e utilizados, mesmo com toda a tecnologia da Medicina-oficial.

Alguns instrumentos cirúrgicos que foram utilizados pelos médicos gregos são semelhantes aos de hoje: sondas, bisturis, trépanos, pinças e afastadores. A concepção teórica dos instrumentos médicos é semelhante a dos artefatos construídos pela inteligência humana: ajudar os dedos na determinação de transformar ou aniquilar o visível.  A mudança dos materiais além de aumentar a velocidade do ato humano,  substituiu as mãos e os sentidos natos.

As observações do corpo humano, desvendando e materializando o escondido atrás da pele, foram responsáveis por descrições minuciosas e maravilhosas da anatomia, como as de  Herófilo, contemporâneo de Hipócrates, que distinguiu o cérebro do cerebelo, identificou as membranas meninges e o líquido cérebro-raquidiano, as funções motoras e sensitivas dos nervos periféricos e o sistema linfático, todos seriam “redescobertos” nos séculos 17 e 18.

Mesmo com o grande avanço para entender a saúde e a doença como partes do conjunto do corpo, com textos claramente dirigidos para retirar dos deuses e deusas os destinos da saúde e da doença, não ocorreu ruptura com as idéias e crenças religiosas que conviviam com as mentalidades da época. Aconteceu, sim, o início do conflito de competência entre a Medicina-oficial com as idéias e crença religiosas. É possível que essa conciliação cautelosa de Hipócrates e de outros médicos da escola de Cós, reconhecendo a materialidade das doenças sem atacar o panteão taumaturgo tenha contribuído para que mantivesse o prestígio social e evitasse o mesmo destino de Sócrates.

A postura cautelosa dos médicos da Escola de Medicina de Cós em relação ao panteão, certamente, contribuiu para manter intocável a extraordinária fama taumaturga de Asclépio, o deus da Medicina-oficial, Medicina-divina e Medicina-empírica gregas, Desse modo, o templo dedicado ao deus Asclépio, anexo à Escola de Medicina, continuou com o prestígio junto aos doentes. .

Segundo a mitologia grega, Asclépio era filho de Apolo e da ninfa Coronis. Apolo matou Coronis e entregou o filho aos cuidados do centauro Quiron, famoso médico, que instruiu Asclépio na arte de curar e na delicadeza dos movimentos das mãos do cirurgião. Finalmente, Asclépio se consolidou como o principal deus protetor das Medicinas e dos médicos. Em sua homenagem foram construídos muitos templos. O mais famoso deles é aquele de Epidauro, na ilha de Cós, ao lado da Escola de Medicina, cuja reconstrução arqueológica mostrou salões, vestiários e alojamentos para médicos e doentes, salas de banho e teatro para a recreação onde eram encenados as comédias e dramas destinados à recuperação dos doentes.

É interessante assinalar que a fama de grande curador de Asclépio atravessou o mundo grego e, em certo tempo, reconhecido como o único deus capaz de ressuscitar certos mortos. Em consequência desse poder sem limites, o deus dos deuses, Zeus, no majestoso trono no Olimpo, preocupado com a possível mudança na ordem no mundo, entendendo que a morte inevitável participa da vida que continua, fulminou Asclépio com os raios das Cíclopes. Assim, o mundo continuou carregando o mesmo drama atávico: a doença podendo representar essa morte temida.

É certo que a figura do médico, como especialista social, dependente das crenças e idéias religiosas tenha chegado aos gregos com poucas mudanças, oriunda de tempos muito anteriores. Quando a Escola de Cós já estava no apogeu e Hipócrates reconhecidamente autoridade médica, havia harmoniosa convivência entre a nova Medicina, proposta por meio da teoria dos Quatro Humores e as práticas da Medicina-divina e Medicina-empírica, exercidas pelos benzedores, rezadores e sacerdotes dos templos de Asclépio. Como inequívoca comprovação do fato se destacam as várias estelas de mármores e argila, encontradas no templo de Epidauro, na ilha de Cós,  dedicado a Asclépio, com inscrições de agradecimento pela cura obtida.

É pertinente, mais uma vez, assinalar que o conjunto teórico atribuído a Hipócrates e aos seus discípulos mesmo obtendo importantes avanços em comparação às práticas médicas das cidades-reinos do Egito e da Mesopotâmia, não provocou explicitamente ruptura com as crenças e idéias religiosas do panteão grego. Essa situação de convivência harmônica entre médicos, que provocaram o início do processo para materializar a saúde e a doença, e os devotos de Asclépio, o principal deus voltado à proteção da Medicina, despertou interesse coletivo e recebeu críticas ácidas, como as atribuídas a Aristófanes, o irônico comediógrafo de Atenas, que encenava peças ridicularizando os agentes da Medicina-divina, em especial, o médico-sacerdote de pouco escrúpulo que se afanava de curador de todas as doenças.

A idéia cristalizada que perdura no pensamento ocidental de como o médico deve agir, falar, vestir e trabalhar, inclusive a relação da Medicina com as idéias e crenças religiosas, é também uma das conseqüências da assimilação, no Ocidente, do “Tratado Ético hipocrático”. Reforça este raciocínio o primeiro parágrafo de “A Lei” inserido no Tratado Ético: “A Medicina é de todas as profissões a mais nobre…“.

Essa distinção da Medicina das outras profissões foi adotada por Galeno, no século 2, em Roma, considerado o sucessor de Hipócrates, na sua afirmação: “Todo médico deverá ser filósofo”.

A correção concluída por Galeno é significativa para a reconstrução de como o médico, agente da Medicina-oficial, era entendido nos tempos hipocráticos e platônicos, exatamente porque os filósofos eram considerados possuidores de saberes superiores em relação aos outros homens. O tema é claramente expresso no “Fédon”, de Platão, quando trata do “Mito do Destino das Almas”, no diálogo entre Sócrates e Símias:

“E, entre estes, aqueles que pela filosofia se purificarem de modo suficiente sem os seus corpos, durante o resto do tempo, e a residir em lugares ainda mais belos que os demais”.

O juramento original contido no “Tratado Ético”, de Hipócrates, começa assim: “Eu juro por Apolo, médico, por Asclépio, por Hígia e Panacéia, por todos os deuses e todas as deusas…”, mantendo evidente relação com as idéias e crenças religiosas daquele tempo. Essa posição, de modo espetacular, atravessou os séculos e foi mantida, de diferentes formas, até hoje.

Também é importante assinalar que Hipócrates conviveu a morte de Sócrates e, possivelmente, esse fato tenha contribuído para evitar rupturas traumáticas com as idéias e crenças religiosas, capazes de gerarem trágicas consequências, semelhantes as sofridas pelo filósofo.

Desde então, mesmo após as incontáveis mudanças e reconstruções das idéias e crenças religiosas, sociais, políticas e econômicas, especificamente, incluindo as decisões de assembléias médicas que trataram da conduta do médico frente ao doente:

– Juramento de Montpelier, no século 14;

– Conclusões da Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, em 1994;

– Associação Médica Britânica, em 1997;

– Carta da Profissão Médica, em 2002, publicada nas respeitadas revistas científicas “The lancet”e “Annals of Internal Medecine”;

Mantiveram os preceitos fundamentais do “Juramento”, da Escola de Medicina de Cós:

– Prioridade do bem-estar do doente, relacionando a boa-prática com os bons resultados do tratamento;

– Autonomia do doente;

– Justiça social.

Os compromissos unindo o “Juramento”, da Escola de Medicina de Cós, às reconstruções dos avanços tecnológicos, compreendem as exigências que interferem na boa-prática, como pressuposto dos bons resultados beneficiando o doente:

– Competência profissional;

– Sinceridade com os doentes;

– Sigilo profissional;

– Apropriado relacionamento na relação médico-paciente;

– Qualidade das práticas médicas;

– Facilidade de acesso aos recursos da Medicina;

– Distribuição justa dos recursos destinados à saúde pública;

– Responsabilidade profissional no atendimento do doente, antes durante e após o tratamento executado;

A análise do conteúdo ético do juramento de Hipócrates constitui claríssima conduta com o objetivo de evitar a prática médica prejudicial aos doentes, de certo modo semelhante ao código de Hammurabi, porém sem a agressividade punitiva babilônica.

A aparência do médico também foi prevista pelos ensinamentos hipocráticos. No capítulo “Do Médico”, no “Tratado Ético”, lê-se: “A norma do médico deverá ter boa cor e bom aspecto… Pois será de grande utilidade para si colocar-se elegantemente e perfumado agradavelmente… e tudo isto agradará ao doente”. Continua sendo essa imagem exigida do médico ideal, em algumas circunstâncias, independente do destaque no domínio do conhecimento.

 

Influência da Escola de Cós na Medicina romana

 

É indiscutível a influência da Medicina grega no vasto domínio territorial romano. Após a terceira guerra púnica, os romanos consolidaram o grande império no Mediterrâneo. Nos anos seguintes, alguns destacados intelectuais resistiram à Medicina grega hipocrática. O historiador romano Marco Pórcio Catão, no século 2 d.C., expôs a sua opinião: “Os gregos decidiram matar todos os bárbaros com a Medicina e a ainda cobram por isto”. E em carta dirigida ao seu filho foi enfático: “Proíbo-te de recorrer aos médicos.”

O espírito legislador romano alcançou, claramente, as atividades médicas. Com a regulamentação romana, os médicos constituíram categoria profissional definida, tanto entre os homens livres quanto entre os escravos. As obrigações do médico eram estipuladas pelo Estado romano que pagava pelos serviços profissionais.

Sob o império de Adriano, no século 2 d.C., os médicos eram dispensados do serviço militar e quase todas as cidades romanas dispunham de assistência médica pública.

Em torno do século 4 d.C., possivelmente, consequente ao grande volume de conflitos induzidos pela má prática, também expostos por Marco Pórcio Catão, a profissão médica foi severamente fiscalizada e foi instituído rigoroso exame para todos que quisessem exercer a profissão. Nesse novo contexto, para melhorar e expnadir o atendimento médico nos territórios conquistados, o império romano subvencionou os estudantes de Medicina, mas em troca eram obrigados a prestar assistência aos pobres.

Existem registros da proibição do aborto e, especialmente, de o médico negar o atendimento a qualquer doente, sob risco de castigo corporal e multa.

Nessa mesma época, sob o império de Diocleciano, no ano de 300 d.C., ainda procurando melhorar o atendimento médico e, em consequência, evitar os conflitos sociais que poderiam alcançar a administração, um édito do Imperador impunha como condição para entrar na escola de Medicina, a apresentação de certificado de boa conduta fornecido pelo comando militar da cidade de origem.

A diferenciação entre médicos e cirurgiões, claramente exposta no genial “Ilíada”, recebeu reforço da administração romana. É possível que essa separação tenha paralelo com as más práticas, desde o Código de Hammurabi, descritas exclusivamente entre os cirurgiões.. Nesse sentido, Cícero falava dos médicos verdadeiros, o que corresponderia aos clínicos gerais de hoje. Em seus versos, o erudito romano registrou as especialidades médicas: “Cascelio extirpa ou cura os doentes; tu Igino, queimas os cílios que irritam os olhos, Eros elimina as tristes cicatrizes dos servos e Hermes goza de fama de ser o Podalírio das hérnias.”

Os historiadores da Medicina acreditam que o grande número de especialistas na Medicina romana tenha sido conseqüência não somente dos progressos técnicos, mas principalmente porque as especialidades eram mais lucrativas para quem as exercia.

Alguns médicos especialistas romanos como Stertínio, conseguiram formar grande fortuna como fruto do trabalho médico. Provavelmente, em conseqüência dos abusos nos lucros obtidos por alguns médicos, no ano de

368 d.C., o imperador Valentiano proibiu que os médicos empregados do Império recebessem dinheiro dos doentes pobres.

Os problemas éticos e pecuniários não impediram o aparecimento de grandes expoentes na Medicina romana. Entre eles, um dos mais destacados foi Galeno, considerado o sucessor de Hipócrates e que influenciaria decididamente a Medicina medieval. Esse famoso médico romano, professo do monoteísmo, elaborou a teoria dos Quatro Temperamentos, como seguimento à teoria dos Quatro Humores.

De certa forma, Cláudio Galeno reforçou a teoria hipocrática admitindo que a predominância constante de determinado humor provocasse o aparecimento de um tipo específico de temperamento que marcaria, definitivamente, as relações entre a saúde e a doença das pessoas na vida social: Desse modo, materializou no cotidiano social a teoria de Polípio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Teoria dos Quatro Humores – séc. 4 a.C. – Políbio, Grécia
Fleuma

Teoria dos Quatro Temperamentos – século 2 d.C – Galeno, Roma

Fleumático

Bile amarela

Colérico

Sangue

Sangüíneo

Bile preta

Melancólico

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cláudio Galeno nasceu em Pérgamo, na Ásia Menor, no ano de 130 d.C. Sem dúvida, o mais famoso médico daquele tempo. Os seus livros abordaram questões da anatomia, fisiologia, patologia, sintomatologia e terapêutica. A maior parte livros foi reeditada, em Veneza, no ano 1538, e constituíram as principais consultas dos médicos medievais.

O outro médico romano de grande destaque foi Sorano, nascido em Éfeso. Os escritos dele que foram contêm informações de extrema lucidez e bom senso. Esse médico notável descreveu a experiência dos parteiros, que deveriam ser numerosos, semel

 

hantes às parteiras da atualidade, e os que faziam abortos, proibidos pela lei romana. Os aborteiros eram punidos com o degredo, quando o conflito determinado pela morte da grávida passava ao conhecimento público.

Entre as obras de Sorano destaca-se o “Manual de Ginecologia”, que serviu de orientação para os médicos durante quase quinze séculos, praticamente sem qualquer contestação. Nesse livro, descreveu com absoluta precisão as posições anormais dos fetos no útero grávido:

– Podálico com os pés unidos;

– Podálico com um só pé;

– Ajoelhado;

– Sentado;

– De ombros.

Essas posições anômalas do feto, no desenvolvimento do parto, ainda hoje, representam maior atenção para os obstetras, mesmo com todos os recursos.

Sem dúvida, o Império Romano permaneceu atento às práticas médicas e por meio de leis constituiu o serviço público amplo na maior parte das cidades do Império. Esse projeto de saúde pública, que incluiu drenagem de pântanos, construção de amplos esgotas e abastecimento de água potável, se iniciou partir da melhora da assistência médica às militares das legiões, que foram as primeiras beneficiárias, com a construção de hospitais militares em diferentes regiões do imenso Império Romano. O mais famoso deles, o de Vindonissa, em Windish, na atual Suíça, com sessenta quartos e capacidades para 480 doentes distribuídos em enfermarias.

É inquestionável a preocupação com a saúde pública, entre as diferentes fases do império romano. Entre as providências mais competentes figura “A Lei das Doze Tábuas”, que remonta aos primórdios da República, estabelecendo normas para o sepultamento e queima dos cadáveres fora dos muros da cidade e a construção dos esgotos, como a Cloaca Máxima, em Roma, que ainda é utilizado na parte antiga da cidade.

As autoridades públicas fiscalizavam o cumprimento das normas que regulamentavam a higiene pública. Os grandes arquitetos romanos, como Vitrúvio, recomendavam a escolha de lugares ensolarados para a construção das casas.

Além dos cuidados com a organização das cidades, foram construídas centenas de banhos públicos estimulando a higiene pessoal. Essas termas, algumas recuperadas pelos trabalhos arqueológicos, como o de Diocleciano, em Roma, contavam com médicos e podiam obrigar em diferentes piscinas e salas de ginásticas centenas de pessoas ao mesmo tempo.

Com a divisão do Império Romano, iniciada pelo Imperador Constantino, e consolidada por Teodósio, em fins do século 4, o Império Romano do Ocidente fixou a capital em Milão, na Itália, e o Império Romano do Oriente, em Constantinopla, atual Istambul, capital da Turquia.

O Império Romano do Ocidente sofreu profundas transformações sociais e políticas nos anos que se seguiram, notadamente, em conseqüência:

– Invasão dos visigodos;

– Cristianização;

– Gradativa mudança do sistema mercantil-escravista para o feudal,

Como não poderia deixar de ser, a prática médica foi envolvida e reconstruída nas mudanças em curso. Com a cristianização do Império Romano do Ocidente, a influência exercida pela Igreja Católica na Medicina foi se fazendo de forma gradativa e irreversível.

Na realidade, a raiz dessa interferência remonta ao tempo pré-cristão, quando o pensamento judaico associava o aparecimento das doenças aos pecados cometidos, gerando o castigo vindo por meio da cólera de Deus, semelhante às culturas egípcias e babilônicas. Progressivamente, a doença passou, novamente, de modo predominante representar espécie de pecado e o único tratamento possível para curar o sofrimento seria obter o perdão por meio das rezas e penitências dirigida à Trindade cristã, santos e mártires.

Essa relação do homem romano com a doença, consequente do pecado, após a cristianização, evoluiu sem alteração e se consolidou, no Ocidente, atada à ação evangélica de Jesus Cristo, que incluía a capacidade de curar milagrosamente inúmeras doenças, cujos relatos repassados nas gerações seguintes, por meio do Novo Testamento, pelos apóstolos Marcos, Mateus, Lucas e João.

Entre os depoimentos dos apóstolos de curas milagrosas que Jesus Cristo realizou, é possível citar a cura do paralítico (Mt 7,32-35), do louco (Mt 20,30-34), do surdo-mudo (Mc 7,32-35), do epilético (Mc 9,16-26) , chegando a ressuscitar o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-25) e Lázaro, já em processo de decomposição do corpo (Jo 11,17-44).

É interessante assinalar a semelhança da mitopoese do destino de Asclépio, por ordem de Zeus, morto com os raios das Cíclopes, após ressuscitar alguns mortos, e a crucificação de Jesus Cristo, que também ressuscitou certos mortos. Essa similaridade se torna ainda mais impactante na escultura, com trinta centímetros de altura, descrita por Castiglione, onde é possível verificar, na base de apoio, o nome de Jesus Cristo escrito sobre o de Asclépio riscado.

A leitura cristã da relação entre doença e pecado permaneceu inalterada, na Idade Média, fazendo com que a atividade médica perdesse grande parte das conquistas alcançadas no período greco-romano, interferindo diretamente no enfraquecimento da Medicina-oficial, seguido do absoluto predomínio da Medicina-divina.

As pressões políticas e clericais atuaram para o gradual fechamento das escolas de Medicina, seguido da escassez de médicos, a partir do século 5. O atendimento médico passou às mãos despreparadas de padres e freiras, de diferentes ordens religiosas, dentro dos muros das abadias e dos conventos, fortalecendo a Medicina-divina e a Medicina-empírica..

Entre os muitos mosteiros que se destacaram no exercício da atividade médica, sob a égide da caridade cristã, se destacaram: Monte Cassino, na Itália, construído sobre antigo templo de Apolo; Montpelier, Paris e Toulousse.

A substituição por igrejas dos tempos dedicados aos deuses do panteão greco-romano se tornou objeto de clara determinação das autoridades cristãs. As edificações eram conservadas e, na maior parte das vezes, ampliadas, e as antigas imagens dos deuses do politeísmo eram substituídos pelos do cristianismo. Os santos protetores cristãos tomaram os lugares dos deuses e deusas curadores greco-romanos.

Ao mesmo tempo, multiplicava-se o uso de relíquias para a proteção das doenças. Exemplos marcantes dessa prática essencial da Medicina-divina podem ser sentidos nas palavras de Santo Agostinho: “O perfume de azeviche afugenta os demônios e seu uso desata e desfaz o quebranto, ligaduras e encantamentos e todos os fantasmas tristes e melancolia”

Do mesmo modo, a forte presença cristã conduzindo a Medicina-divina também é clara na descrição da peste negra feita por Boccacio: “No ano de Nossa Senhora de 1348 ocorreu em Florença, a mais bela cidade de toda a Itália, uma peste terrível, que seja, devido à influência dos planetas, ou seja, como castigo de Deus aos nossos pecados…”.

Cada vez mais presente a caridade cristã impôs nova concepção da pratica médica: o melhor médico seria o que atendesse segundo o Evangelho, sem remuneração, como Jesus Cristo, pleno de bondade atendeu todos sem pensar em pagamento. Dessa forma, o processo da cristianização da Medicina culminou no entendimento do trabalho profissional remunerado, presente desde a Mesopotâmia, para outro, como ação sacerdotal, não remunerado. Também por essa razão, a Medicina passou a ser exercida quase exclusivamente por religiosos no interior das abadias e mosteiros.

Existem muitas manifestações artísticas, em pinturas e esculturas, nos principais museus do mundo, produzidas entre os séculos 12 e 15, saudando e estimulando a prática médica como atividade religiosa não remunerada, simplesmente objetivando o bem do próximo, como na parábola do Bom Samaritano. No mesmo período, não por simples coincidência, ocorreu maior especialização dos santos que poderiam concretizar a cura de determinada doença.

Respondendo às necessidades das populações próximas às abadias, dos mosteiros e conventos, os padres exerceram a Medicina fora dos muros da proteção clerical. Algumas igrejas foram depredadas e queimadas pelo povo enfurecido em conseqüência dos atritos criados pelas graves complicações dos atos médicos desqualificados, em especial, as muitas mortes e outros danos causados nos doentes, como a sangria mal conduzida. A administração romana respondeu, rapidamente, com Bulas papais, editadas nos Concílios de Remis (1131) e de Roma (1139), proibindo os religiosos de exercer práticas curadoras fora de qualquer construção católica.

Nessa fase, especialmente, entre os séculos 10 e 11, apareceu o cirurgião-barbeiro, de grande importância social, drenando abscessos, amputando membros gangrenados extraindo dentes apodrecidos pela cárie, que também cortava cabelos e fazia barbas, preenchendo o espaço vazio deixado pela Medicina-oficial e amenizando a incompetência da Medicina-divina e da Medicina-empírica.

É possível que o cirurgião-barbeiro tenha sido esculpido a partir de muitos vetores sociais e políticos, entrecortados às necessidades médicas imediatas das populações que só contavam com os religiosos, nessa época, proibidos de exercer a Medicina fora dos muros religiosos:

– Fechamento das Faculdades de Medicinas oriundas do período greco-romano;

– Europa central fragmentada em muitos reinos, sob forte influência da hierarquia cristã, em contínuo desestímulo à Medicina-oficial;

– Proibição do manuseio do sangue por meio da Bula “Igreja abomina o sangue”;

– Necessidades médicas das populações, representada por desabrigados e famintos perambulando entre as terras de senhores implacáveis no controle do território;

– Feridas traumáticas produzidas nos torneios da nobreza, guerras intestinas e nas mais ambiciosas para conquistar territórios.

Dessa forma, alguns cirurgiões-barbeiros, tão mal preparados quanto os agentes da Medicina-divina, também provocaram fortes conflitos resultantes dos maus resultados, eram obrigados a fugir rapidamente para evitar que fossem linchados pela população enfurecida. Alguns registros apontam para o fato de eles terem sido claramente tolerados pela Igreja, possivelmente, pelo fato de terem absorvido os escaramuças antes dirigidas para os padres curadores que se aventuravam fazer sangrias e amputações nas comunidades próximas das abadias e mosteiros.

Como forma de resistência a absoluta falta de médicos qualificados, as cortes dos reinados e principados mais ricos contrataram médicos judeus e árabes, que não eram obrigados seguir as normas conciliares e que receberam forte educação médica nos países fora da orbita cristã.

As pressões sociais pela mudança da incontornável ausência de Medicina-oficial evoluiu para a formação das universidades. As primeiras, como Paris, Salerno, Montpelier e Toulousse, foram edificadas próximas às igrejas que abrigaram destacados núcleos de Medicina-divina.

A Escola Médica de Salerno, no Sul da Itália, fundada ao lado de um convento beneditino, foi uma das primeiras em receber a participação de médicos laicos, sendo responsável perante a História pela famosa frase: “Primo, nou nuocere” ou “Em primeiro lugar, não façam mal”, restaurando um dos fundamentos mais importantes da Medicina hipocrática.

A Escola Médica de Montpelier, na França, reteve as mesmas características da italiana: os fundamentos do ensino da Medicina baseado nos livros de Hipócrates e Galeno. O grande expoente desse ensino, em Montpelier, Guy de Chauliac (1300-1370), autor do livro “Grande Cirurgia”, difundido na Europa, até o Renascimento.

A cátedra universitária remonta a este período. O professor ficava sentado numa grande cadeira, daí o nome de cátedra, e ditava a aula aos alunos calados e atentos, ávidos de conhecimentos, sem questionar as exposições do catedrático.

 

 

 

 

Determinação para desvendar do corpo humano: desobediência à Igreja

 

Nesse período, começou outra reconstrução da presença eclesiástica por meio dos escritos de Thomás de Aquino (1225-1274). Como professor em Montpelier reformulou o pensamento aristotélico que dominava a teologia medieval e retomou a relação entre a fé e a razão iniciada por Abelardo (1079-1142). Nas considerações filosóficas em torno do “será”, Thomás de Aquino afirma que a perfeição máxima não é a idéia de ser, mas o ato de ser e rejeita a interferência de Deus na auto-suficiência do conhecimento humano. Com esta nova visão teológica o caminho para novos conhecimentos e indagações estava aberto, mesmo que de forma restrita, culminando com a criação de outras universidades, incluindo Bolonha e Paris.

Os estudos da anatomia humana foram retomados por Mondino de Luzzi (1270-1326), professor da Universidade de Bolonha, tendo realizado, em 1315, sua primeira dissecção humana. Como fruto das muitas observações anatômicas, desacreditou publicamente alguns preceitos de Galeno, mantidos intocáveis durante dez séculos.

Os estudos de anatomia de Mondino receberam importante complemento nos de Vesálio, em 1543, que publicou o seu maravilhoso tratado de anatomia humana “Human Corporis fabrica”.

As mudanças trazidas com o desvendar dos corpos pela anatomia e a posição dos filósofos, mesmo com a condenação de Galileu, em 1633, instigam novas leituras dos dogmas cristãos, acompanhadas de inevitáveis rupturas com o passado hipocrático-galênico-cristão.

Destacam-se, no século 17, o médico inglês Harvey, em 1628, com a publicação do “Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in anima”, como Mondino, demonstrando outros erros cometidos por Galeno, dessa vez, sobre a circulação do sangue.

 

Busca da doença na micrologia – pensamento micrológico = segundo corte epistemológico da Medicina

 

De modo genial, Marcelo Malpighi  (1628-1694), em 1666, com o livro “De viscerum structura” retirou a doença dos humores de Hipócrates e recolocando-a na microestrutura, estabelecendo o segundo corte epistemológico da Medicina como especialidade social: o pensamento micrológico, que mudaria quase tudo nos selos seguintes ate a atualidade.

O resultado foi a instituição do pensamento micrológico, inaugurando o desvendar da multiplicidade das formas e das funções escondidas dos sentidos natos, numa dimensão invisível aos olhos desarmados.

Pouco a pouco, o estudo da célula dominou os meios acadêmicos. Hoje, é o sustentáculo do atual ensino da Medicina-oficial. Mesmo nos hospitais mais bem equipados, na atualidade, nos tratamentos dependem do diagnóstico microscópico quantitativo e qualitativo das células corporais. Isso significa que a estrutura teórica dos saberes médicos, em pleno final do século 20, em grande parte, se alicerçada sobre os princípios teóricos da patologia celular oriunda do século 17.

O pensamento micrológico enfraqueceu as teorias greco-romanas de Hipócrates e Galeno, entendidas como dogmas das universidades, no medievo europeu. Não muito depois, pouco a pouco, os processos teóricos que amparavam a micrologia, a busca da materialidade da doença na microscopia, substituíram as idéias da Escola de Cós.

Os sistemas teóricos interligados e dependentes de Hipócrates e Galeno, capazes de explicar a saúde, a doença e a expressão do ser no social, mostraram-se tão adequados ao observável que dominaram as regras do diagnóstico, da terapêutica e as bases do ensino da Medicina-oficial no Ocidente durante vinte séculos.

Ao lado dessa forte relação em torno das teorias hipocrático-galênicas que atravessou a Idade Média, alguns religiosos, como Miguel Servet, estudante da Universidade de Tolousse, em 1530, imbuído da leitura dogmática bíblica, ao procurar explicação para o sopro de ar que deu vida ao primeiro homem, no livro “Christianismi restituio”, descreveu a pequena circulação coração-pulmão.

Contudo foram os estudos de Hipócrates e Galeno que suplantaram todas as outras correntes cientificas. Alcançaram o Brasil Colônia e os médicos da corte portuguesa. Durante vinte e três dias de febre e convulsão que antecederam a sua morte, a Princesa Paula Mariana, filha do primeiro Imperador do Brasil, foi submetida às chupadas de quarenta sanguessugas, onze vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres, prescritos pela equipe de dez médicos que se revezaram à cabeceira real.

As teorias greco-romanas continuaram influenciara a Medicina-oficial até o século 19. É interessante assinalar que as idéias alcançaram não só os médicos da Coroa portuguesa, mas também os viajantes, do século 18 que estiveram no Brasil. O médico e viajante Carlos Von Martius, em 1844, descreveu os índios brasileiros sob a perspectiva greco-romana, associando a teoria dos Quatro Humores de Hipócrates à teoria dos Temperamentos de Galeno.

 

 

Pensamento molecular = terceiro corte epistemológico da Medicina

 

Os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822-1844), mesmo não sabendo a grandeza da sua descoberta, abriu as portas da dimensão molecular, provocando nova reconstrução da Medicina como especialidade social, voltada ao desvendar da saúde e da doença nas menores dimensões da matéria viva..

Os hospitais dos países industrializados utilizam, na rotina diária, os resultados trazidos pelo pensamento molecular, acrescentado ao pensamento celular. Com o propósito de diagnosticar ou tratar certa doença, colocando a materialidade da saúde e da doença na dimensão molecular, são analisadas as quantidades e as qualidades de uma ou mais moléculas, entre as centenas de milhares que compõem a célula corporal.

O pouco tempo para a adequada disseminação dos saberes da Medicina-oficial na dimensão molecular, o alto custo e as dificuldades da tecnologia hospitalar de sair da célula para a molécula restringem esse avanço em poucos hospitais e instituições de ensino nos países em desenvolvimento.

Como uma das conseqüências do pensamento molecular, da Medicina-oficial, a clonagem estreitou, geneticamente, a multiplicidade das formas e das funções, criando em laboratório seres idênticos a partir de células retiradas de um indivíduo adulto.

Apesar de assustador, o produto do clone não humano, do mesmo modo como todos os animais nascidos da reprodução sexuada, ao longo do processo de amadurecimento, sofrerá a incisiva influência do social. Desta forma, no momento, não existe perspectiva de eliminar a multiplicidade geradora das respostas do ser vivente frente aos desafios da sobrevivência.

Mesmo sendo teoricamente possível, a clonagem de seres humanos é inconcebível. Não existem na linguagem oral e escrita para preencher a repulsa contra o alucinado ensaio de eliminar a principal característica do planeta: a multiplicidade.

Com mais liberdade para teorizar, se pode pensar que a busca da materialidade não será interrompida na molécula. Nada nos impede de pensar na possibilidade de avançar na direção do átomo.

Se assim ocorrer, a Medicina-oficial na dimensão atômica, no futuro, acrescentará novas construções complementando dados identificados no pensamento celular e pensamento molecular.

 

 

 

Reflexões finais

 

A Medicina como especialidade social, especialmente, a Medicina-oficial por ser a única que sustenta processos teóricos para desvendar a saúde e a doença, em permanente reconstrução por meio dos acréscimos da ciência e tecnologia: os três cortes epistemológicos.:

– Teoria dos Quatro Humores, século 4 a.C., dimensão corporal, primeiro corte epistemológico;

– Micrologia, dimensão celular, século 17, segundo corte epistemológico;

– Ultra-micrologia, dimensão molecular, século 19, terceiro corte epistemológico.

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REFERÊNCIAS

           

BOTELHO, João Bosco. Medicina e religião: conflito de competência. 2ª Ed. Manaus. Valer. 2005.

BOTELHO, João Bosco. História da Medicina: da abstração à materialidade. 2ª Ed. Manaus. Valer. 2011..

Botelho, João Bosco. Epidemias: a humanidade contra o medo da dor e da morte.  Manaus. Valer. 2008.

BOTELHO, João Bosco. Arqueologia do prazer. Manaus.Metro Cúbico. 1992.

BOTELHO, João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Plexus. 1998.

BOTELHO, João Bosco. O Deus-genético. Manaus. EDUA. 2000.

HIPOCRATES. Sobre a Medicina Antiga. In: Tratados Hipocráticos. v. 1. Madri: Editorial Gredos. 1990.

SOURNIA, Jean-Charles. Histoire du diagnostic en Medecine. Paris. Editions de Santé. 1995.

HIPPOCRATE. L’Ancienne Médecine. Paris. Les Belles Lettres. 1983.

HIPOCRATES. Sobre a Doença Sagrada. In: Tratados Hipocráticos. v. 1. Madri: Gredos. 1990.

GALIEN. Oeuvres médicales choisies I. Paris. Gallimard. 1994.

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